Postado em 10/12/2010
Minha primeira impressão foi de que as olheiras dele eram falsas. Maquiagem. Está próximo o dia em que beberemos o sangue dos nossos inimigos, ele declarou, logo de saída. Liguei o gravador. Ele sorriu. E tirou o aparelho da minha mão, com delicadeza.
Não é necessário. Você jamais esquecerá o que vai ouvir aqui. Tive trabalho para chegar até ele. Primeiro, o motorista do jornal me levou a um ponto de encontro, um bar fuleiro na Ipiranga. Lá, passei para um carro em companhia de dois sujeitos de cara fechada, e não demorei para perceber que não adiantaria fazer nenhuma pergunta.
Achei até que iam me revistar ou pôr uma venda nos olhos ou algo assim, mas nada disso aconteceu.
Rodamos um longo tempo na noite, em direção à periferia. No trajeto, a dupla trocou meia dúzia de palavras, se tanto. Um deles pediu um cigarro, o outro disse que não tinha.
Quando chegamos ao extremo leste da cidade, adentramos um trecho de casas pobres e ruas sem calçamento e de iluminação precária. O carro sacolejou por vielas muito estreitas. Um labirinto. A venda não era necessária: eu jamais encontraria de novo a rua em que paramos, nem com a ajuda do carteiro do bairro – supondo-se, é claro, que alguém naquele lugar recebesse cartas.
O que me impressionou na casa para onde me conduziram foi o número de pessoas que se espremiam em seu interior. Velhos, mulheres, crianças. Gente simples, parda, desconfiada. Me olhavam com curiosidade e silêncio. Pareciam dispostos a protegê-lo com suas vidas, se fosse necessário. Não era permitido fazer fotos. Lembrei disso e toquei a pequena câmera que levava oculta no casaco.
O homem com olheiras postiças pediu que eu o acompanhasse até um dos quartos da casa. Uma cama de solteiro, um armário sóbrio e uma cadeira. Nada mais. Na parede, pôsteres de vales ao pôr do sol e outras imagens similares. O tipo de cena fajuta que deixa a sensação de que a natureza posou para o fotógrafo – e cobrou por isso.
Ele me indicou a cadeira e sentou-se na cama. Peguei meu bloco de notas. Ele me olhou nos olhos.
Você não acredita nem um pouco, não é?
Respondi que meu interesse ali era jornalístico. No fundo, eu sabia que meu editor estava me testando ao me incumbir daquela reportagem. Colocava à prova meu ceticismo. E eu precisava ficar bem com meu editor: existia uma vaga para cobrir o conflito nas Malvinas e eu pensava em me candidatar. João, o correspondente que seria substituído, havia contraído pneumonia.
Eu não ganho nada aqui, ele disse. Não quero o dinheiro dos pobres. Dos ricos, se puder, eu tomo.
Perguntei se ele se sentia responsável pelo que tinha acontecido. O seu jornal acha que eu ordenei a matança, mas vocês estão enganados. Eu apenas transmito as palavras. Daí, cada um age de acordo com a própria cabeça.
Perguntei se ele se julgava um porta-voz de Deus. Depende. Se você estiver falando dessas igrejas que prometem o paraíso depois da morte, não. São todas uma fraude... De repente, seu rosto avermelhou-se, destacando um pouco mais as olheiras suspeitas. Ele passou a falar alto, dedo em riste:
Nosso negócio é conquistar as coisas aqui e agora.
Um dos velhos abriu a porta do quarto e nos observou. Ele fez um gesto rápido, quase imperceptível. Bastou para o velho baixar a cabeça, numa reverência, e se retirar, puxando a porta. Nunca prometi nada a ninguém, ele falou. Nenhum milagre. Perguntei se ele não temia que as pessoas presas se sentissem traídas. Como você deve saber, toda revolução tem seus mártires.
A idade dele era imprecisa, algo entre os 50 e 60. Por causa das olheiras, os olhos pareciam bem mais antigos. Não combinavam com o tempo de vida do restante do rosto. Perguntei como aquilo havia começado, de onde ele tinha vindo. Seu passado. Isso não é importante. Escreva no seu jornal que sempre estive por aí, esperando a hora chegar...
A polícia dispunha de poucas informações sobre ele; na realidade, ninguém sabia nada. Uma criatura sem passado. Mencionei as mulheres. O que que tem? Sou um homem solteiro, de vez em quando arranjo uma namorada. Você não acha isso normal? Diziam que ele vivia com várias mulheres. Ele riu. Isso é bobagem. Fantasia das pessoas. Mas cada um acredita naquilo que quer, não posso fazer nada.
Nesse momento, uma garota entrou no quarto. Era muito jovem e carregava uma bacia e uma jarra com água. Usava um vestido surrado, um lenço domando os cabelos crespos e estava descalça. Ela agachou-se diante dele, tirou seus sapatos e as meias e, depois de dobrar com cuidado as barras da calça, colocou os pés dele na bacia e começou a lavá-los. Em nenhum momento levantou os olhos para ele.
Perguntei se ele não temia ser preso. Infeliz do homem sem inimigos, ele disse. Ouvimos o ruído de um helicóptero, que se demorou sobrevoando a casa. Ele levantou suas olheiras para o teto sem forro, como se estivéssemos prestes a testemunhar um pouso forçado no telhado. A menina permaneceu ?cabisbaixa, mas interrompeu o que fazia por um instante, como se tivesse congelado.
Achei que era uma boa imagem. E enfiei a mão no bolso do casaco e apalpei a minicâmera, calculando que chances teria de registrá-la. Ele pareceu adivinhar minha intenção e se voltou para mim. Porém, antes que dissesse algo, a porta do quarto se abriu e o velho aproximou-se da cama para sussurrar no ouvido dele, com a mão em continência ao lado da boca, para proteger o sigilo do que dizia.
O helicóptero começou a se afastar, lentamente, e só então a menina retomou seu trabalho. O velho cruzou os braços e permaneceu ao lado da cama. O homem esperou que o ruído do helicóptero cessasse por completo. Então me olhou: Você deve ir agora. Tenho mais perguntas pra lhe fazer, protestei.
Ele repetiu que eu deveria sair da casa de imediato, explicando que, em pouco tempo, a casa estaria cercada pela polícia e ele não poderia garantir minha integridade. Depois, fechou os olhos, como se tivesse entrado num transe. A menina enxugava os pés dele com uma delicadeza que, de repente, se converteu num contraponto à rudeza com que o velho me puxou pelo braço.
Vamos. Antes de deixar o quarto, ainda consegui perguntar: Sobre o que vou escrever? Escreva sobre o que você não viu, ele respondeu, sem abrir os olhos. Não é isso que vocês fazem no seu jornal? O velho praticamente me arrastou para fora do quarto. Ao passar pela sala, vi que as pessoas continuavam amontoadas ali, agora um tanto alvoroçadas. Ao longe, ouviam-se as sirenes policiais.
Havia um odor pesado no ar daquela sala, um cheiro que, naquele momento, não me pareceu humano. Um cheiro do qual nunca mais me esqueci. E que até hoje me enche as narinas toda vez que sinto medo.