Postado em 22/01/2011
Luzes, câmera, ação. As famosas três palavras que anunciam o início da cena, nos sets de filmagem, não apareciam sozinhas na produção francesa da segunda metade da década de 1950. Com elas, vinham estúdio, maquiagem, divas, galãs, plumas, paetês, caras e bocas.
Ou melhor dizendo, o modelo hollywoodiano das superproduções tinha invadido a cinematografia daquele país devastado pela Segunda Guerra Mundial. Até que, por volta de 1958, um grupo de rapazes resolveu sacudir a poeira. No lugar de atores-medalhões, rostos novos; no lugar do set abafado com a maquiagem derretendo, as ruas de Paris como cenário; em vez de um produtor como eminência parda manipulando o diretor – que ainda tinha que seguir a obra de um roteirista –, o cineasta como senhor absoluto de sua obra.
Surgia na França o cinema de autor. Uma nova onda, como batizou a escritora Françoise Giroud – ou, em bom francês, une nouvelle vague. “Um grupo de jovens, críticos que viram cineastas e começam a fazer filmes com uma pegada totalmente diferente”, explica o professor de História, Teoria e Crítica do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) Cristian da Silva Borges.
“Filmes altamente autorais, pessoais, e que tratavam de questões mais cotidianas, dos jovens da sua época, questões em geral muito banais, muito mundanas, em sua grande maioria, urbanas.” A tentativa era se opor às produções comuns na época. “Adaptações de clássicos da literatura, filmes muito pesados, pomposos, com muitos recursos, muito dinheiro”, complementa.
Jovens críticos
A trupe se reunia na mítica Cahiers du Cinèma – cadernos de cinema em francês –, bíblia da crítica cinematográfica. Um ambiente em que o sacerdote-mor era André Bazin – “um dos maiores críticos que já houve na história do cinema”, segundo o professor da ECA, e que apadrinhou os iniciantes em suas primeiras incursões por trás das câmeras. Eram eles, segundo o estudioso: François Truffaut (1932-1984), Jean-Luc Godard, Claude Chabrol (1930-2010), Éric Rohmer (1920-2010) e Jacques Rivette.
A grande referência era o chamado neorrealismo italiano, escola que tem entre seus maiores expoentes os diretores Federico Fellini, Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti. “Quando a gente fala de modernidade cinematográfica, a primeira escola de cinema é o neorrealismo italiano, que surge no final da Segunda Guerra Mundial”, explica o historiador de cinema Wagner Pinheiro Pereira.
“Alguns apontam 1943, o ano em que Luchino Visconti filma Obsessão, outros apontam 1945, que é o ano do Roma Cidade Aberta, do Roberto Rosselini.” Segundo Pinheiro Pereira, depois dos italianos, foram os jovens franceses da nouvelle vague a ditar, na Europa, a nova forma de filmar, por meio da chamada “política dos autores”, expressão criada por Truffaut.
A primeira produção dessa nova ordem não é consenso entre os especialistas. Para Pinheiro seria Os Incompreendidos, de François Truffaut, de 1959, já para Cristian da Silva Borges é Nas Garras do Vício, de Claude Chabrol, de 1958. O que se pode ter como verdade é que os primeiros filmes desses cineastas fazem parte do movimento. O que inclui Paris Nos Pertence, de Jacques Rivette, de 1961; Acossado, primeiro longa de Godard, de 1960, e O Signo do Leão, estreia em longas-metragens de Eric Rohmer, de 1962. São considerados como parte da nouvelle vague também produções de nomes que foram se identificando com a nova estética, como Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais, de 1959.
Vale ressaltar que embora essas obras apontassem para o lado contrário do “cinemão” francês e norte-americano de então, nem tudo era ruptura. A nouvelle vague tinha grande interesse pela obra do francês Jean Renoir (1894-1979) e pelo trabalho autoral dos norte-americanos David Griffith (1875-1948), Orson Welles (1915-1985), John Ford (1894-1973), Frank Capra (1897-1991), William Wyler (1902-1981), e pelos filmes do britânico, que produziu nos Estados Unidos, Charles Chaplin (1889-1977).
Estéticas e temáticas
Para o cineasta Carlos Reichenbach, a nouvelle vague foi “uma das maiores revoluções” do cinema contemporâneo. “Depois do neorrealismo, logo após o fim da guerra, talvez tenha sido o movimento cinematográfico mais importante para a consolidação de uma dramaturgia, de um estilo, de uma proposta cinematográfica, de uma visão que veio a influenciar todo o cinema moderno”, afirma.
O professor Borges, da ECA-USP, chama a atenção para a agilidade da produção que se opôs à opulência do que os jovens cineastas-críticos chamavam – possivelmente com certa ironia – de “cinema de qualidade” francês ou ainda de “cinema do papai”, conforme explica o estudioso. “[Os filmes da nouvelle vague] têm uma movimentação muito grande”, prossegue Borges. “As câmeras vão para as ruas, para os carros.
Existe uma leveza tanto em termos de produção quanto de orçamento, porque os filmes eram muito baratos.” Wagner Pinheiro Pereira atenta para o que ele chama de uma “desenvoltura da narrativa” nos diálogos. “Uma moral provocadora, montagem com cortes secos, algo impensável para Hollywood, e colagens inesperadas.” Para o historiador, um dos melhores exemplos nesse sentido é Acossado, de Godard.
Quanto à temática, a principal característica foi abandonar o épico e voltar-se para os assuntos cotidianos que interessavam aos jovens franceses da época, categoria que incluía os próprios cineastas. “Os filmes tratam de questões banais, do dia a dia da sociedade”, afirma Borges. Pinheiro ressalta também que, ao contrário do neorrealismo italiano que tanto os influenciou, questões políticas não interessavam aos rapazes da Cahiers du Cinèma. “Eles vão se centrar antes de tudo nos problemas sociais dos personagens”, esclarece.
Espírito do tempo
A primeira metade dos anos de 1960 foi especialmente efervescente para o cinema no mundo todo. Por isso, especialistas preferem não arriscar uma classificação de influenciadores e influenciados quando se trata da cinematografia daquela época. “Era uma coisa que estava no ar, um espírito do tempo que foi ‘contaminando’ vários países, tanto da Europa quanto da Europa do Leste, que estava sob jugo comunista, e também da Ásia e das Américas”, ensina Borges.
“O neorrealismo italiano influenciou tanto os cineastas brasileiros quanto os franceses, os ingleses, os poloneses, os tchecos. Vários países tiveram isso que a gente chama de maneira mais geral de ‘cinemas novos’. A nouvelle ?vague foi o cinema novo francês.” O historiador Wagner Pinheiro Pereira aponta ainda o free cinema inglês.
Porém, é inegável que a nova onda francesa entrou para a história com um especial sabor cult.
“A França é a pátria do cinema e os franceses sempre souberam fazer isso muito bem, até hoje eles se mantêm um pouco no centro, no foco do pensamento e da discussão de cinema no mundo”, analisa Borges. “A nouvelle vague teve uma importância muito grande, e desses cinemas novos todos foi a que mais se destacou.”
Seus ecos puderam ser ouvidos também fora da França, segundo afirma Pinheiro. Inclusive nos Estados Unidos da velha Hollywood. “Inicia-se um curto período de modernidade no cinema americano [nos anos de 1960]”, diz o historiador.
“O chamado renascimento hollywoodiano, american art film.” Segundo o especialista, é nessa época que cineastas como Robert Altman (1925-2006), Francis Ford Copolla, Brian de Palma, Martin Scorsese e George Lucas começam, ao longo dos anos de 1960 e até por volta de 1975, a render homenagem à nouvelle vague – cuja produção durou até metade dos anos de 1960. “É difícil colocar uma data”, afirma o professor Borges. “Mas, como movimento, eu diria que durou até 1967.”
Presença misteriosa
Segundo professor da ECA, uma jovem fotógrafa teria surfado na nova onda antes do “clube do bolinha” de Truffaut e Godard
O nome dela é Agnès Varda, nascida em 1928, cineasta – e fotógrafa no início da carreira, em meados dos anos de 1950. Segundo Cristian da Silva Borges, professor de História, Teoria e Crítica do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Agnès foi a primeira a fazer um filme, em 1954, aplicando as técnicas e explorando a estética que quatro anos depois receberia o nome de nouvelle vague. “Ela nunca tinha feito um filme”, informa Borges.
“Na época, ela criou uma cooperativa, com alguns técnicos e atores de teatro importantes na França, e resolveu fazer um longa-metragem, sem nunca ter feito um curta, sem nunca ter trabalhado em cinema.”
A obra se chama La Pointe-Courte e hoje é considerada – “por muitos”, de acordo com o professor – precursora da nova onda do cinema francês. “Em 1954, ou seja, quatro ou cinco anos antes, ela já tinha feito um filme que tem tudo da estética da nouvelle vague, só que de uma maneira totalmente descolada daquele grupinho de rapazes, que nessa época ainda não a conheciam.”
Cinema revolucionário
Programação especial do Sesc Ipiranga traz expoentes da nouvelle vague
Em Mostra 1959: O Ano Mágico do Cinema Francês, a unidade Ipiranga do Sesc reuniu, em dezembro, algumas das mais importantes produções da nova onda da cinematografia francesa. No menu, Jean Luc-Godard, com Acossado, exibido no dia 1º; François Truffaut, que apareceu, no dia 2, com Os Incompreendidos, um dos ícones do movimento; Alain Resnais e seu Hiroshima, Meu Amor (foto), no dia 8; Claude Chabrol, que fez parte da mostra com um filme de 1960, Quem Matou Leda?, no dia 15; e um valioso agregado: Robert Bresson (1901-1999), de quem o evento mostrou Pickpocket, no dia 9.