Postado em 22/01/2011
Professor de cinema da Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e autor de uma obra ensaística diversificada sobre a produção nacional, Ismail Xavier se formou na primeira turma de cinema da ECA. Parte de uma geração que fez o curso de cinema no final dos anos de 1960, ele conta que pegou uma fase de transição em que os cinemas e cinematecas passaram a dividir com as universidades o papel de formação e canal de cultivo da cinefilia.
“Eu faço parte de uma geração intermediária, porque antes de entrar na universidade, em 67, como aluno, já era frequentador da cinemateca, minha cinefilia começou lá e em cineclubes que já existiam em São Paulo, depois é que veio a experiência universitária”, diz.
Autor de diversos livros sobre a produção cinematográfica nacional, como Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal (Editora Brasiliense, 1994) e Sertão Mar: Glauber Rocha e a Estética da Fome (Cosac Naify, 2007), Xavier explica que, apesar de ter um gosto particular pela vertente vanguardista, um aspecto fundamental no tocante à crítica de cinema é saber fazer a leitura de um filme em seus diferentes padrões de concepção cinematográfica: “Não vejo motivo para ser maniqueísta, no sentido de achar que todo filme complexo é bom e que todo filme de grande público é ruim.
Não existe o espaço do bom e o espaço do ruim”, defende o professor, que, durante encontro organizado pelo Conselho Editorial da Revista E, também falou sobre os principais agentes de fomento ao cinema e à cinefilia desde as primeiras décadas do século passado.
No início eram os cineclubes
Ao longo dos anos, a história do cinema foi sendo construída por meio de canais criados pelos próprios cinéfilos. Um deles, em especial, foram os cineclubes, que surgiram no começo do século 20 e tiveram um papel muito importante no incremento da crítica de cinema e o debate. Tudo isso aconteceu praticamente na segunda década daquele século.
Eles apareceram em diferentes lugares, mas tiveram particularíssimo desenvolvimento na França.
No tocante à evolução crítica do cinema, é interessante lembrar a influência dos cineclubes e como tudo começou muito cedo. Para se ter ideia, já se fazia crítica de cinema antes da Primeira Guerra Mundial, havia revistas e os jornais davam certo espaço. Tanto é que foi um cineclubista italiano, Ricciotto Canudo, que em 1911 lançou o Manifesto das Sete Artes, que acabou por dar origem à famosa expressão já consagrada nos dias de hoje.
Ele dizia que havia três artes do espaço (arquitetura, escultura e pintura), três artes do tempo (música, dança e poesia) e o cinema, que era a síntese de todas, na medida em que era uma arte do espaço e do tempo.
É interessante notar que nesse manifesto ele não colocou a ópera e muito menos o teatro. Isso porque o teatro era inimigo dos cinéfilos, todo mundo tinha medo que se dissesse que o cinema era o teatro filmado, a íntima conexão entre essas artes era o pesadelo de todo cinéfilo.
De modo que o fato de se poder dizer que o cinema não passava de um registro de uma encenação teatral levou os críticos, teóricos, cinéfilos e diretores de cineclubes a fazer a defesa estética do cinema, o primeiro passo era justamente afirmar sua autonomia como arte.
Cultivo da cinefilia
Passado esse primeiro momento, já nos anos de 1930, época do cinema sonoro, aparece outro lugar de instituição cultural, discussão e debate do cinema como arte: as cinematecas. Alinhadas à ideia da memória e do espírito de preservação, as cinematecas criaram outro ponto importante de cultivo da cinefilia. Nos dias de hoje, esse papel de dar acesso é decisivo na formação daqueles que trabalham com essa arte e, atualmente, se assemelha ao que o próprio Sesc vem fazendo no sentido de discutir a arte, mostrar e publicar reflexões.
Ao longo dos anos, o debate cultural e de participação motivado por esses canais foi fundamental no desenvolvimento do cinema. Tanto que houve uma geração de cineastas talentosos que praticamente se formou nas cinematecas. Aliás, elas foram fundamentais para os cineastas que desenvolveram, nos anos de 1960, o Cinema Novo, a ponto de o próprio Glauber Rocha ter recebido a formação do cineclubismo.
Sob as lentes da crítica
Hoje, acho que a posição da crítica em torno das produções nacionais está mais equilibrada. Independentemente disso, acredito que ela tenha pouquíssimo poder de influência na decisão do público de assistir ou não a determinado filme. É interessante observar casos como o último filme da Laís Bodanzky, por exemplo, As Melhores Coisas do Mundo. Essa produção é a prova de como é o boca a boca que decide. Apesar de ter sido concebido com baixo orçamento e pouca publicidade, este filme já foi visto por mais de 300 mil espectadores, justamente porque na outra ponta tem-se um filme muito bem-sucedido na sua proposta. De modo que, perto do efeito gerado pela publicidade e pelo boca a boca, a crítica em si tem influência sobre um número pequeno de cinéfilos.
Estéticas cinematográficas
Acho que no âmbito da leitura crítica de cinema se deve ter muita cautela ao submeter uma obra a julgamentos e enquadramentos. Da mesma forma que um filme pode ser feito para atingir milhões de pessoas, dependendo da forma como foi concebido e mesmo da proposta estética, há obras que são para poucos mesmo. Se formos restringir a importância de um filme pelo volume de público, vamos ter que queimar Machado de Assis, Guimarães Rosa, enfim, vamos esquecer a literatura brasileira, porque ela é para poucos. Afinal, quantas pessoas ao longo de um século leram esses autores?
No tocante a esse assunto, acredito que o importante é justamente observar que se trata de dois padrões de concepção cinematográfica. Meu trabalho é muito voltado para o cinema novo, mas não posso ver um filme contemporâneo e ficar fazendo esse tipo de cotejo assim sem mais, tendo o cinema novo como gabarito, porque isso é um anacronismo, são contextos, histórias, tempos diferentes. Pegamos por exemplo essas produções recentes, como Cidade de Deus e Tropa de Elite, que não por acaso são do mesmo roteirista, um profissional de habilidade extraordinária, Bráulio Mantovani. Esses filmes são feitos segundo um padrão de dramaturgia, de concepção de personagem, de herói que pertence a um código já bem assimilado pelo público. É interessante observar que eles têm em comum o mérito de terem sido eficientes em sua proposta.
Dessas três produções que eu mencionei, o Tropa de Elite 2 traz uma característica extremamente interessante, à medida que mostra a forma inacreditável como se conseguiu pegar um melodrama familiar e juntar com toda aquela questão do tráfico e da violência social no Brasil.
Tenho um gosto particular, sou muito ligado ao pensamento de vanguarda do século 20, no sentido de ter a arte como um elemento que desestabiliza valores e referências. Ao mesmo tempo, o público tem a opção de outro tipo de produto, que, mesmo não deixando de ser arte, permite às pessoas passear por todos os mundos possíveis permanecendo sempre em casa. E aceitam com mais facilidade, porque não se sentem atingidas na sua capacidade de entender as coisas, visto que o importante é se discutir um filme dentro do parâmetro escolhido. Não vejo motivo para ser maniqueísta, no sentido de achar que todo filme complexo é bom e que todo filme de grande público é ruim. Não existe o espaço do bom e o espaço do ruim.
{O professor de cinema e ensaísta Ismail Xavier esteve presente na reunião do Conselho Editorial ?da Revista E em 18 de outubro de 2010}