Postado em 01/01/2011
por Miguel Nítolo
Não é novidade para ninguém que o presidente do Paraguai, Fernando Lugo, faz tratamento no Brasil e tem viajado a São Paulo, com certa constância, por conta de um câncer linfático. Como se trata de um tipo de notícia que não frequenta com assiduidade as páginas dos jornais, é possível que o fato tenha despertado interesse e mesmo curiosidade, em especial naquelas pessoas que, por falta de informação, ainda seguem imaginando que o destino de muitos indivíduos bem posicionados e portadores de doenças graves é, invariavelmente, um hospital no exterior.
De fato, a recepção a doentes importantes de fora ainda é uma coisa relativamente nova no campo da medicina brasileira, embora – é sabido – representantes do mundo artístico e mesmo pacientes com lesões deformadoras tenham desembarcado aqui há tempos, muitas vezes no anonimato, com o propósito de se socorrer dos bisturis de nossos cirurgiões plásticos. Muitos vêm atrás do rejuvenescimento e não são poucos os que viajam para cá desejosos de eliminar a careca por meio de implante capilar.
Nos últimos tempos, contudo, tornou-se crescente a quantidade de estrangeiros que se valem de nossos profissionais para se livrar de males de toda ordem – e não apenas os relacionados à estética – e já deixou de ser incomum a presença desses viajantes nos consultórios das grandes estrelas da medicina nacional. São pacientes que chegam até aqui estimulados por informações transmitidas por parentes e amigos, indicações de médicos particulares, notas na imprensa ou na internet e descobertas feitas em congressos médicos. Afora a cirurgia plástica, que começou a ganhar projeção aos olhos do mundo décadas atrás, pelas mãos do cirurgião Ivo Pitanguy, o país também é referência mundial em cardiologia, cirurgia bariátrica, neurologia, odontologia, oncologia, ortopedia e reprodução humana.
Assim como aconteceu no exterior, a presença de clientes internacionais traz, agora, os grandes hospitais para o centro das atenções. Em decorrência do bom atendimento médico que encontra aqui, o doente que vem de longe está começando a fazer uso dos serviços de algumas casas de saúde top do Brasil, permitindo, assim, que o país ingresse, definitivamente, na rota do chamado turismo médico ou turismo de saúde. Esse é um negócio em ebulição nos quatro cantos do planeta, que, especula-se, estaria movimentando em torno de US$ 60 bilhões anuais – valor que não se restringe ao tratamento médico em si, incluindo também os desembolsos relacionados a compras, gastronomia, hotelaria, transporte etc.
Potencial
Números que circulam no mercado são reveladores do potencial desse segmento e das possibilidades que se abrem à medicina brasileira. Segundo eles, anualmente 750 mil americanos procuram tratamento fora de seu país (dados de 2007), com a justificativa de que alguns centros médicos estrangeiros oferecem o mesmo serviço e cobram por ele um preço inferior, isso sem falar, é claro, da oportunidade que se abre de fazer turismo. A fila de espera e o alto número de pessoas sem plano de saúde também poderiam explicar a revoada protagonizada pelos conterrâneos de Obama rumo ao exterior.
O Brasil ainda está debutando nesse mercado, mas tem recebido cada vez mais gente de outras partes: além dos americanos, que já chegam em grandes levas, o país se converteu, também, no destino de adeptos do turismo médico da África, da América Latina e da Europa. “Os pacientes que vêm da América Latina e de Angola nos procuram pela excelência do atendimento, pela facilidade da língua e pela proximidade”, ressalta Claudio Luiz Lottenberg, presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein. “Já entre os provenientes da América do Norte e da Europa encontramos muitos estrangeiros com residência no Brasil há menos de um ano”, revela.
Entre 2007 e 2009, segundo cálculos de especialistas, em torno de 180 mil turistas estiveram aqui com o propósito de cuidar da saúde, um resultado excepcional, porém ainda tímido diante da quantidade de pacientes internacionais que procuram a Tailândia (mais de 1 milhão em 2007) e a Índia (450 mil). “Num único hospital tailandês o faturamento registrado pelo serviço de atendimento a estrangeiros chega a corresponder a 55% de sua receita total no período”, diz Mariana Palha, da Medical Travel Brazil, empresa envolvida com o desenvolvimento, a estruturação e o fomento do mercado de turismo médico no país.
Por razões óbvias, tem aumentado o interesse de hospitais brasileiros por esse atraente e cada vez mais disputado negócio. “Estamos diante de um assunto relativamente novo para nós”, comenta Mariana, a idealizadora do Medical Travel Meeting Brazil, evento realizado em agosto do ano passado, em São Paulo, e que contou com a participação de hospitais de todo o país, além de fornecedores de serviços especializados nas áreas médicas e afins. Ela esclarece que o encontro, que vai ganhar uma segunda edição em 2011, nasceu com a intenção de conceder às operadoras de saúde, empresas corporativas, agentes, brokers e facilitadores internacionais meios de conhecer a excelência da medicina brasileira e de suas instituições hospitalares, fazer negociações diretas com os principais players, descobrir novas oportunidades e tomar pé das questões éticas e legais locais.
“O evento é uma vitrina onde podemos mostrar ao mundo o que há de melhor em nossa medicina, desde a qualificação médica, assistencial e tecnológica à segurança do paciente”, observa Lottenberg. O presidente do Albert Einstein relata que os estrangeiros que viajam ao Brasil, segundo suas palavras uma nação que está se convertendo em referência internacional no campo da medicina, “sabem que terão aqui um atendimento de qualidade, com alta tecnologia, humanizado e diferenciado”. Destacando que o crescimento anual em torno de 15% no número de pacientes de fora que procuram pelos serviços do Einstein é o resultado dessa evolução, ele informa que, no ano passado, 4,8 mil pessoas se socorreram da instituição para tratamento por meio de consulados ou de seguros internacionais, sem contar os casos particulares.
Dificuldades
Como ocorre com todos os setores em sua fase inicial, ainda estamos longe do ideal no tocante ao acolhimento que deve ser conferido ao turista médico internacional. “Alguns obstáculos são de caráter essencialmente estrutural e dizem respeito às dificuldades enfrentadas pelo viajante na recepção do aeroporto ou ainda à obtenção do visto médico para vir ao Brasil como paciente e não como turista comum”, afirma Mariana Palha. Ela menciona também a falta de sinalização bilíngue em cidades internacionais como São Paulo, que pode criar embaraços para o deslocamento de estrangeiros pelas ruas da grande metrópole.
Mariana explica que “a solicitação das providências necessárias para o desenvolvimento e o incremento do setor está sendo encaminhada aos órgãos governamentais competentes e às empresas envolvidas”, acrescentando que o importante, agora, é obter integral apoio dos setores público e privado e esperar que o trabalho seja executado em conjunto. “O Ministério do Turismo já definiu o turismo de saúde como um dos 12 segmentos prioritários da pasta”, ela esclarece.
As perspectivas são animadoras. É o que pensa Heleno Costa Junior, coordenador de Educação do Consórcio Brasileiro de Acreditação (CBA), entidade voltada à avaliação das instituições da área da saúde. Segundo ele, o fato de o Brasil ter sido escalado para sediar dois grandes eventos internacionais nos próximos anos – a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016 – vai gerar melhorias na infraestrutura de forma abrangente, o que acabará beneficiando também o turismo de saúde.
Mariana Palha pondera que, a despeito do estágio ainda embrionário do turismo médico em território brasileiro, “o tema vem sendo tratado com mais atenção pelos setores interessados e grandes progressos serão vistos em breve”. A representante da Medical Travel Brazil garante que há tendência de um incremento sustentável dessa modalidade de turismo no país daqui para a frente. É claro que, assim como em outras áreas da atividade humana, também aqui será preciso investir no aprimoramento e na capacitação do serviço. “Estamos na fase de aprendizado”, avalia Josier Vilar, presidente do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Casas de Saúde do Município do Rio de Janeiro (Sindhrio). Ele salienta que apenas começamos a nos estruturar e que os nichos de qualidade assistencial estão sendo devidamente detectados com vistas a potencializar sua capacidade de atendimento. “De fato, é possível antever a expansão do turismo médico no país, mas vamos ter, antes, de organizar o setor”, adverte Vilar.
Além disso, segundo Fernanda Crema, gerente comercial do Hospital do Coração (HCor), em São Paulo, é essencial que esse mercado seja cuidado de forma profissional, incluindo todos os segmentos que estejam, em maior ou em menor escala, enlaçados com o atendimento da demanda. O estrangeiro que busca tratamento em outro país, afora a necessidade de socorro médico, é um turista como outro qualquer, que quer visitar lugares, passear, além do fato de se tratar de um consumidor que paga em dólares. Seu gasto médio é 35% maior que o do paciente doméstico, e acarreta reconhecimento e prestígio para os hospitais. É comum também o visitante internacional desembarcar acompanhado, o que torna a integração pregada por Fernanda absolutamente necessária. “Enfrentamos algumas dificuldades, como a falta de preparação das pessoas quanto ao modo satisfatório de receber e dar atendimento a esses pacientes, e isso se relaciona, entre outras coisas, à necessidade de treinamento no terreno do idioma e da cultura”, destaca.
Alguns hospitais estão procurando se adequar, na medida do possível, às exigências impostas pelo turismo de saúde. O próprio HCor, segundo Fernanda, dispõe de um departamento dedicado a fazer o acompanhamento dos pacientes estrangeiros, desde a marcação de procedimentos até o retorno às nações de origem. Na verdade, essa é uma prática disseminada nos hospitais envolvidos com essa modalidade de turismo. “Isso é importante porque passa segurança ao turista que chega num país que é desconhecido para ele”, argumenta a gerente comercial do HCor.
O Sírio-Libanês, por exemplo, é um dos que seguem essa trilha. “Nosso pessoal é bilíngue e assumimos a coordenação de todos os procedimentos, auxiliando, inclusive, na comunicação e tradução entre paciente ou acompanhante e hospital. O atendimento dispensado ao cliente internacional começa ainda em seu país e só termina quando ele retorna para lá”, esclarece Gilberto Galletta, gerente de Relações Internacionais do hospital. “Também trabalhamos em parceria com uma série de empresas de áreas distintas, como hotéis e firmas de transporte, com a finalidade de facilitar a vida do turista de saúde enquanto estiver em território brasileiro”, ele ressalta, acrescentando que, caso o acompanhante ou familiares desejem, “recomendamos passeios turísticos e opções de lazer”. O executivo do Sírio-Libanês relata que, recentemente, o hospital se viu na contingência de ciceronear no comércio paulistano o acompanhante de um paciente estrangeiro que ficou longos 20 dias internado.
Estrutura
Situações como essas vão sendo incorporadas ao dia a dia dos grandes hospitais e acabarão, mais à frente, ajudando a criar uma estrutura profissional, capaz de satisfazer as exigências do mercado, a exemplo do que já se vê lá fora. É sabido que todos eles estão desembolsando altas somas no aparelhamento, qualificação e ampliação do corpo clínico, entre outras medidas de importância capital para a boa imagem da medicina brasileira. Veja-se o exemplo do Hospital Samaritano de São Paulo, que, segundo Andréia Damázio, gerente comercial, tem computado 3% de pacientes estrangeiros e vem trabalhando com a expectativa de quadruplicar esse percentual até o fim de 2011. “Investimos na determinação de especialidades de interesse, tais como pediatria, cardiologia infantil, ortopedia, cirurgia plástica, gastroenterologia e procedimento cirúrgico de implante coclear infantil, além da formação de corpo clínico específico para o atendimento de pacientes com seguros internacionais ou do turismo médico”, conta Andréia.
As informações prestadas pela gerente comercial do Samaritano, na verdade, poderiam ter saído da boca de diretores de outras grandes instituições hospitalares brasileiras em que há grande atenção para o turismo médico. Um exemplo desse interesse foi a criação do BH Health Tour, um programa da Associação de Hospitais de Minas Gerais. Wagner Issa, seu coordenador, informa que a iniciativa estará em pleno funcionamento em março deste ano.
O fato é que, atentos e afinados às exigências ditadas pelo ambicioso mercado do turismo médico, os mais importantes hospitais brasileiros estão colocando a mão no bolso e se submetendo ao crivo da acreditação, processo de avaliação que utiliza padrões relacionados à qualidade do cuidado dispensado ao paciente e, por extensão, ao aperfeiçoamento das atividades clínicas e gerenciais. Trocando em miúdos: é um tipo de passaporte que facilita o ingresso dos hospitais nesse milionário negócio, um selo que funciona como um garantidor de bons serviços aos olhos do cliente estrangeiro.
“O programa de acreditação objetiva, essencialmente, a construção e a sustentabilidade de uma prática institucional sistematizada e consistente, o que torna a transformação de modelos assistenciais e de gestão um grande desafio”, observa Costa Junior, do CBA, entidade que representa no Brasil a Joint Commission International (JCI), certificadora internacional de padrões de qualidade das organizações de saúde. Deve ser destacado que além dos padrões ditados pela JCI e implementados pelo CBA, outras metodologias são utilizadas no Brasil com o mesmo propósito.
Costa Junior explica que “as agências, seguradoras e empresas que estão diretamente envolvidas com o segmento colocam como pré-requisito um certificado de qualificação para credenciar a instituição a receber pacientes de fora”. Esse, segundo ele, teria sido inclusive o teor das discussões entre os especialistas que participaram do Medical Travel Meeting Brazil. Essa preocupação explicaria o crescente interesse das instituições hospitalares brasileiras pela acreditação. “Estamos assistindo a um movimento importante na direção da qualificação, em que hospitais já acreditados pelo método nacional agora buscam, de forma objetiva, a certificação internacional como estratégia de adequação às recentes exigências do setor de saúde”, salienta.
O Paulistano e o TotalCor, vinculados à Amil Participações, são dois exemplos recentes de hospitais certificados e, portanto, prontos para disputar o paciente internacional. “O processo que culminou com a acreditação teve início há mais de dois anos, quando criamos um projeto específico para a iniciativa”, revela Marcio Arruda, diretor técnico do Paulistano. “Uma equipe de 20 profissionais respondeu pela implementação e padronização dos protocolos, que, a partir de então, passaram a ser utilizados pelos 1,2 mil profissionais dos dois hospitais”, completa Valter Furlan, diretor técnico do TotalCor.