Postado em 01/01/2011
por Celia Demarchi
O Terminal Rodoviário Tietê é um dos principais pontos de saída e chegada de passageiros que viajam de São Paulo para o nordeste e vice-versa. Em suas plataformas, porém, há atualmente mais nordestinos embarcando de volta às suas pequenas cidades natais – que os ônibus, e não os aviões, alcançam – do que desembarcando para recomeçar a vida na megalópole, algo inimaginável há apenas poucos anos.
Esse movimento inverso se deve ao recente aquecimento da economia do nordeste, estimulada por ações do governo federal: as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o aumento do salário mínimo – que cresceu 44,5% em termos reais entre 2003 e 2010 – e a implementação de iniciativas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Nacional (Pronaf) e o Bolsa Família, que distribuiu R$ 13,1 bilhões a 12,7 milhões de famílias em todo o país nos últimos sete anos.
Ainda assim, os efeitos dessas ações não se refletem de modo expressivo na diferença entre o aumento do Produto Interno Bruto (PIB) do nordeste – que desde a década de 1970 cresce um pouco mais que o do Brasil – e o nacional, já que a economia brasileira como um todo também deslanchou.
É consenso, porém, que as políticas públicas deram impulso à economia do nordeste. Os programas sociais representam de 4% a 5% da renda dos nordestinos – que são 28% da população do país –, enquanto equivalem a cerca de 1% da do brasileiro, explica o economista Raul Silveira Neto, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Dos trabalhadores nordestinos, além disso, quase metade recebe salário mínimo, assim como grande parte dos aposentados e pensionistas.
O aumento da renda atraiu para a região empresas fabris, do varejo e da construção civil, que criaram mais empregos e ampliaram a renda, propiciando a chegada de novos investimentos. “Passamos 50 anos em busca de melhorias, tentando atrair indústrias, mas a situação só começou a mudar com o aumento da renda”, diz Silveira Neto.
Um dos setores em evidência no país, a construção civil está abrindo mais vagas de emprego no nordeste do que nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro juntos. De acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), no período de 12 meses até setembro de 2010 foram criados na região 35,6% dos postos de trabalho que o setor abriu no país. O nordeste teve saldo positivo de 116,1 mil vagas, contabilizadas as admissões e as demissões, enquanto no Brasil esse total foi de 331,6 mil. Em São Paulo, os postos de trabalho remanescentes na construção civil somaram 55,9 mil e no Rio de Janeiro, 15,8 mil, no mesmo período.
O aquecimento do setor decorre das obras do PAC, de infraestrutura e de habitação, a maior parte relacionada ao programa Minha Casa, Minha Vida, e ainda de empreendimentos grandiosos em andamento, como a transposição do rio São Francisco e a construção da Ferrovia Transnordestina, que, juntas, devem consumir cerca de R$ 10 bilhões. Sozinho, o primeiro dos dois projetos deverá empregar 12 mil trabalhadores no pico da obra. Já a Transnordestina ocupará em torno de 7 mil em igual estágio.
Simultaneamente, a Petrobras constrói no nordeste duas refinarias e promete erguer uma terceira, em Bacabeira, no Maranhão. Nos três projetos, a companhia deverá investir cerca de R$ 90 bilhões ao longo dos próximos anos. A menor delas, localizada em Guamaré (RN), empregará mil pessoas, direta e indiretamente, durante as obras. A outra, denominada Abreu e Lima, situada em Ipojuca (PE), já ocupa alguns milhares de trabalhadores, cujo número deverá chegar a cerca de 20 mil no pico das obras, que pode ser alcançado até o fim deste ano. A construção da refinaria de Bacabeira ainda não começou, mas segundo a Petrobras dará emprego direto, indireto e por efeito renda (em decorrência do aumento do poder de consumo local) a 132 mil trabalhadores. Quando estiver em operação, a refinaria empregará 1,5 mil pessoas.
Os grandes grupos industriais também estão levando fábricas para a região. A multinacional Bunge, por exemplo, inaugurou em 2010 um moinho de trigo na área do Complexo Portuário de Suape, em Pernambuco, no qual investiu R$ 165 milhões, e que além de empregar 220 trabalhadores criou outros mil empregos indiretos, segundo a companhia. A Sadia investiu R$ 300 milhões na construção de uma unidade em Vitória de Santo Antão (PE), inaugurada em 2009, abrindo 1,5 mil postos de trabalho diretos e outros 4 mil indiretos. E a Perdigão instalou, no município de Bom Conselho (PE), com investimento de R$ 380 milhões, uma fábrica de lácteos, que gerou 3,8 mil vagas, entre empregos diretos e indiretos.
Em ambiente tão promissor, com a renda em ascensão, inúmeras empresas do varejo, pequenas e grandes, também começaram a apostar no nordeste. A região atraiu, por exemplo, as quatro maiores redes varejistas do Brasil. Em 2010, três delas – Walmart, Pão de Açúcar e Carrefour – anunciaram que priorizariam o nordeste em seus planos de investimento. O Walmart sozinho, que foi o primeiro grupo a apostar na região, ao comprar a rede Bom Preço há sete anos, prometeu investir nos estados nordestinos, até 2012, metade de todo o seu orçamento de R$ 2,2 bilhões. E as Casas Bahia, que em 2010 inauguraram dez lojas na região, anunciaram que abrirão mais seis em 2011, das dez previstas para todo o país.
Assim, percentualmente o varejo criou na maior parte dos estados nordestinos mais postos de trabalho nos 12 meses até setembro de 2010 do que no Brasil todo, que, de acordo com dados do Caged, registrou aumento de 6,7% em relação ao período anterior. Exceto na Bahia e em Alagoas, cujos índices ficaram abaixo, e em Sergipe, que obteve o mesmo desempenho, nos demais estados os índices de aumento superaram 7%. No Ceará, o varejo criou 10,11% mais postos de trabalho naquele período, na Paraíba, 9,11%, e no Piauí, 9,7%.
Retorno à origem
É nesse ambiente que a migração vem diminuindo, e uma fartura de dados demonstra isso. Com base em estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o economista Fábio Romão Silveira, da LCA Consultores, concluiu que a migração do nordeste para o sudeste caiu a cerca de metade nos últimos anos. Entre 1992 e 2002, o nordeste perdeu o equivalente a 1,5% de sua população por ano para o sudeste. Entre 2002 e 2007, porém, o índice baixou para 0,98% e chegou a 0,85% em 2008 e 2009, em média.
Outra pesquisa, esta coordenada pelo economista Marcio Pochmann, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), condiz com esses resultados: o número de pessoas, de todo o Brasil, que chegaram ao sudeste nos anos de 2001 a 2004 é menor que o daquelas que deixaram a região. Nesse período, o resultado da migração ficou negativo em 215 mil pessoas. Nos últimos quatro anos da década anterior, o saldo foi positivo, ficando próximo de meio milhão de migrantes.
São Paulo pode ter sido o estado que mais perdeu habitantes para outras regiões nos últimos anos. Tomando como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a professora Liedje Siqueira, do Departamento de Economia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), calcula que das 862 mil pessoas que se instalaram no nordeste entre os anos 2002 e 2007, 47,5% (mais de 410 mil) estavam retornando à cidade natal. Dessas, a maior parte, 61%, havia partido de São Paulo, que perdeu mais população para outros estados do que ganhou naquele período: o saldo migratório paulista ficou negativo em 135 mil pessoas.
A queda da migração também se relaciona ao fato de o sudeste não ser mais a terra de oportunidades que já foi para o nordestino. A região continua detendo de longe a maior participação no PIB nacional (cerca de 56%), mas vem se expandindo em ritmo “haitiano”, de acordo com Pochmann: no período de 1990 a 2005, Rio de Janeiro e São Paulo cresceram menos de 2% ao ano, enquanto estados como Amazonas e Mato Grosso alcançaram taxas de 7% a 8% e a média nacional ficou em 2,4%.
No estudo já citado Pochmann diz que o sudeste, principalmente São Paulo, passou por um movimento forte de expulsão de mão de obra, em especial a desempregada, constituída, em sua maioria, por nordestinos que acabaram retornando à cidade de origem ou se dirigindo aos estados que mais crescem, sobretudo Amazonas e Mato Grosso.
Quanto ao nordeste, apesar do atual crescimento econômico, está bem longe de se tornar uma região desenvolvida. Atrai investimentos, mas de setores de baixa tecnologia, que não dependem de mão de obra qualificada e empregam trabalhadores com pouca escolaridade, como lembra Silveira Neto, da UFPE, citando a indústria têxtil e de confecção, de calçados e de alimentos, além do varejo: “Acho que essas políticas públicas melhoraram o bem-estar da população, mas não são capazes de mudar a realidade do nordeste. Não haverá solução sem aumento expressivo da escolaridade e da oferta de ensino técnico de qualidade”.
As empresas que se instalam na região em geral investem pesado em capacitação para contornar essa dificuldade, às vezes ainda antes de contratar os trabalhadores. É o caso da Petrobras, que treinará os candidatos aos postos de trabalho nas obras da refinaria de Bacabeira para habilitá-los a fazer a prova de seleção, segundo José Renato Ferreira de Almeida, coordenador executivo do Prominp (Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural), do governo federal. João Menezes, gerente geral de Recursos Humanos da Vale, diz que a procura por mão de obra especializada está aumentando demais, e a base no nordeste é muito restrita: “Se não fizermos capacitação, teremos problemas muito sérios”.
Segundo o economista Biágio de Oliveira Mendes Júnior, gerente de produtos e serviços do Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (Etene), do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), a região ainda precisa de volume muito mais expressivo de investimento em máquinas. Ele vê no nordeste atual o Brasil dos anos 1960 e 70, do milagre econômico e da concentração de renda. Em sua opinião, as vagas mais qualificadas já são distribuídas entre trabalhadores de fora da região e da classe média nordestina. “É provável que a desigualdade de renda tenda a aumentar”, diz, lembrando que hoje Pernambuco é “a bola da vez” em concentração de investimentos no nordeste.
Distribuição
De acordo com dados do IBGE citados no estudo “Nordeste: Necessidades de Investimentos e Convergência do PIB per Capita”, de autoria de Mendes Júnior, o PIB per capita do nordeste equivalia, em 2007, a menos de metade do PIB nacional – R$ 6.769 e R$ 14.328, respectivamente. No trabalho o economista procura estimar o volume anual de investimento necessário para o PIB do nordeste crescer de um a dois pontos percentuais acima do PIB nacional em 2010 e 2011, e ainda o volume requerido para promover a convergência das rendas per capita dessa região e do país. Os cálculos consideram um cenário com políticas econômica e fiscal eficientes e balanço de pagamentos equilibrado, e levam em conta as previsões do Banco Central (BC) para o crescimento do PIB nacional nos dois anos considerados, além de tendências de participação dos investimentos no PIB nordestino.
Mendes Júnior lembra, porém, que hoje não se sabe quanto é investido a cada ano no nordeste, porque esses dados não são contabilizados. Ele informa que, sozinho, o BNB aplicou aproximadamente R$ 20 bilhões na região em 2010. O valor equivale a 33% dos R$ 61,5 bilhões que seria desejável que o nordeste tivesse recebido em investimentos em 2010, para que seu PIB crescesse dois pontos percentuais acima do PIB brasileiro. “O nível de investimento tem de ser alto ou ficaremos falando em desigualdade regional durante muito tempo ainda”, diz o economista.
Enquanto esse almejado volume de recursos não chega, os nordestinos que retornam para casa podem não estar conseguindo melhorar de vida. Os salários do sudeste, por exemplo, continuam sendo bem mais altos que os do nordeste. Mesmo após a média salarial ter aumentado 28,8% na região entre 2004 e 2009, passando de R$ 570 para R$ 734, ainda equivale a 58,5% da verificada no sudeste (R$ 1.255), de acordo com dados da Pnad.
Mesmo assim, os salários de São Paulo também são baixos, em especial para os trabalhadores com pouca qualificação – que por isso começam a buscar outros rumos. Na opinião do baiano Gevanildo Pereira dos Santos, “São Paulo já foi bom para ganhar dinheiro”. No começo de novembro de 2010, ele embarcou num ônibus que o levaria de volta a sua cidade natal, Crisópolis. Aos 35 anos, Santos trabalhou como frentista durante a maior parte dos 15 anos que viveu na capital paulista, e não sabe bem o que fará na Bahia. Seu último salário era de R$ 912. Por que voltou? “Estou cansado. Se der certo fico por lá, talvez consiga alguma coisa em Salvador.”
O também baiano Antonio Almeida, de 25 anos, que há quatro mora na capital paulista, se queixa do salário de R$ 900 a R$ 1.000 que recebe hoje, dependendo das horas extras, como porteiro de um prédio no bairro do Morumbi. Ele quer voltar para sua cidade, Santo Estêvão, e já poderia estar lá, pois recebeu uma proposta para exercer a mesma função com salário um pouco melhor em agosto de 2010, quando foi visitar a família. Para não perder a indenização trabalhista teve, porém, de recusá-la. “O que aborrece aqui é o salário. Achava que ia melhorar de vida mais depressa. Agora na Bahia está muito melhor”.
Já o pedreiro pernambucano José Marcos da Silva Batista, de Garanhuns, cidade natal também do ex-presidente Lula, não se queixa do salário, de R$ 1.100 mais horas extras, que ganhava no último emprego, em uma construtora, onde trabalhou por dez meses no ano passado. Sem emprego porque a obra acabou, ele embarcou em novembro de volta para Garanhuns, pela terceira vez, onde tem mulher e quatro filhos, mas diz que ainda volta para a metrópole: “A firma me chama quando precisar”.
Histórias de sucesso
É grande o número de nordestinos com histórias duras, mas também é apreciável a quantidade daqueles que conquistam sucesso no sudeste. É o caso do baiano de Vitória da Conquista Renato Fernandes, de 27 anos, que há seis vive na cidade de São Paulo. Ele se mudou para trabalhar com um conterrâneo como frentista em um posto de gasolina do bairro do Butantã. Porém, como costuma “olhar para os lados”, como diz, percebeu que o posto tinha uma área pronta para funcionar como lava rápido. Propôs um acordo ao dono e começou a lavar carros, enquanto se mantinha como frentista. Quando a demanda aumentou, Fernandes contratou auxiliares. Hoje tem quatro funcionários, que o ajudam a atender a cerca de 40 clientes por dia, com um faturamento de R$ 12 mil brutos ao mês, dos quais embolsa, líquidos, de R$ 3 mil a R$ 4 mil. “Já me estabeleci. Não volto para a Bahia, a não ser a passeio”, diz.
O maranhense Luís Carlos Ribeiro, de 43 anos, também não pensa em sair de São Paulo, onde viveu por 16 anos, até dezembro de 2009, quando voltou à sua cidade, Pinheiro, para desembarcar novamente na megalópole seis meses depois: “Adoro São Paulo. Tem de tudo aqui, e o salário é melhor”, diz. No seu caso, de fato, os vencimentos são muito maiores: ele afirma que um encarregado de carpintaria na construção civil, sua profissão, recebe de R$ 4 mil até cerca de R$ 7 mil em São Paulo, enquanto no Maranhão ganha em torno de R$ 2 mil. “Mas também tem bastante emprego por lá”, ressalva.