Postado em 03/06/2011
por João Paulo Guadanucci
Enquanto se equilibra entre sujeitos com mochilas no vagão do metrô linha-verde, você tenta terminar o parágrafo. O livro, um pocket book comprado na Avenida Paulista por doze reais, não traz uma narrativa lá muito contagiante, mas é o que dava para carregar.
Quando um assento fica disponível, você conclui que não há problemas, pode se sentar, já que não há gestantes ou idosos nos arredores. Como se fosse uma gentileza, você se oferece para carregar uma das mochilas, mas na verdade busca apenas um apoio confortável para sua leitura.
Ao seu lado, uma moça tecla insistentemente o telefone celular e distrai sua atenção do protagonista do livro. O olhar se espicha, criminoso, para a telinha luminosa – já que você não conseguirá ler o que se propôs, ao menos pode se intrometer na existência alheia.
É nesse momento que vem a surpresa: um texto curto e instigante brilha na tela sensível a dedos impacientes – estivesse impresso em papel pólen e você não hesitaria em classificá-lo como um enigmático haikai. Durante o tempo em que tenta decodificar a matéria poética reluzente (algo que rima “trigo” com “abrigo”), você procura compreender se a moça é autora ou leitora do pequeno texto. Mas é tarde, chegou sua estação.
No ascendente e apertado caminho de escadas rolantes rumo à luz do dia, você constata que a administração do metrô mantém poesias adesivadas nas paredes de concreto aparente. Pela primeira vez você não está convicto de que aquilo é uma bobagem, talvez porque o haikai do “trigo-abrigo” ainda reverbere como um mantra na sua cabeça. O último lance de escadas traz uma poesia do mesmo autor que, em prosa, tentara cativar sua atenção via pocket book. Só dá pra ler uma estrofe, solene, sobre o amor inatingível.
A rua oferece, como espetáculo para olhares atordoados, um banquete de letras nas mais diversas tipografias, cores e tamanhos – comparado a isso, o poema adesivado na parede do metrô parece acanhado. Placas de itinerário, restos de cartazes, letreiros de lojas, pichações. Sua vista, como defesa, acostumou-se a relevar quase tudo. Mas, num instante de descuido, ela se fixa numa frase escrita em um ponto de ônibus: um aforismo que comenta a suposta dor do anonimato. Algo nele lembra o lirismo do haikai no celular, a mesma suspensão do tempo, a mesma dissonância em relação ao ritmo das coisas. Será literatura?
“A literatura que escapa do livro” é uma manchete que você se recorda de ter lido em algum caderno cultural, talvez seis meses atrás. Já sentado na mesa de um bar, você força a memória – o artigo comentava a busca de escritores por novos suportes para seus textos: caixinhas de fósforo, redes sociais, neon, arquiteturas abandonadas, gelo, bordados, materiais, materiais, materiais.
As razões para essa inquietação literária aparecem de modo espontâneo, entre metrô e rua, nesse dia de coincidências; são constituídas pela experiência cotidiana, com suas novas configurações de tempo e espaço, às quais o corpo humano ora sucumbe, ora se entrega, com as quais geralmente se aflige.
Ao mesmo tempo em que o pocket book amarrotado na sua mão afirma que há lugar para o livro nos dias de hoje, uma força centrífuga leva a literatura para todo canto. Pois, assim como ocorre com outras linguagens artísticas, faz sentido que o texto vasculhe suportes que lhe caiam bem, alguns que nem foram inventados, outros que estavam lá, dando sopa.
Quando o encontro é bem-sucedido, sequer conseguimos imaginar esses entes – o texto, o suporte – existindo separadamente. É o que você pensa, enquanto gira uma bolacha de chopp entre os dedos, com uma coisa qualquer escrita.