Postado em 01/01/2011
por Cecilia Prada
“Por ordens médicas, foi forçado a parar de escrever.” A frase resume a mentalidade dos alienistas de meados do século 19 – um tempo em que para o “louco”, denominação genérica que abrangia todos os que apresentassem distúrbios mentais ou desvios de comportamento, recomendava-se repouso, boa alimentação, desligamento completo das funções sociais.
Mas o gaúcho mestre-escola que levava o nome de José Joaquim de Campos Leão (1829-83), passado à posteridade como Qorpo-Santo, para sorte dos pósteros não obedeceu em nada a essas ordens – decidiu arrostar a situação de “mentecapto” em que foi enquadrado e definido, preferiu ser interditado pela família, impedido de exercer qualquer profissão, com risco de perder seus bens e direitos civis, a deixar de escrever. Simplesmente porque era um gênio, e como tal incompreendido pelos homens de seu tempo no estreito meio provinciano em que se inserira como “professor de primeiras letras”, e depois de haver até mesmo fundado um colégio e ter sido comerciante, vereador e delegado de polícia.
Para seus contemporâneos, prova cabal de sua loucura seria, talvez, a mania de afrontar a seu bel-prazer as normas ortográficas, ostentando essa ousadia até mesmo no nome escolhido para assinar suas obras teatrais e seus poemas – que somente seriam “descobertos”, aceitos e valorizados um século mais tarde, na década de 1960. Para protestar contra sua interdição por “loucura” compôs em 1877 uma autobiografia que intitulou Ensiqlopédia (sic) ou Seis Meses de uma Enfermidade, tornando-se também tipógrafo para imprimi-la e a suas outras obras. Foram nove volumes, dos quais três desapareceram sem deixar traço e os outros seis foram preservados por colecionadores – somente um exemplar de cada. Atualmente seus escritos estão reeditados, graças a pesquisas realizadas em primeiro lugar, em 1960, por Guilhermino Cesar, e depois continuadas, até hoje, por Eudynir Fraga e Denise Espírito Santo, que se dedicou especialmente a resgatar os textos de poesia do autor. E sua obra teatral, também republicada, funciona como pretexto para enveredar pelo universo literário de uma das figuras mais intrigantes da dramaturgia brasileira.
O teatro de si próprio
Nascido em Vila do Triunfo (RS) em 1829, Campos Leão muda para Porto Alegre em 1839, onde estudaria gramática e trabalharia no comércio. Habilitado para o magistério público, percorreu várias cidades do interior antes de se instalar em Alegrete, em 1857, já casado e chefe de família. Adquiriu respeitabilidade como figura pública, escrevendo para jornais locais e ocupando cargos públicos. Em 1861 volta a estabelecer-se em Porto Alegre, com a família. No ano seguinte dona Inácia Maria, sua mulher, pede a interdição judicial do marido como maníaco obsessivo e incapaz de administrar os bens da família. Inconformado com o estigma da loucura e condenado ao isolamento social, ele luta para demonstrar sua sanidade durante toda a década de 1860. Recorre a uma junta psiquiátrica do Rio de Janeiro e obtém dela um laudo discordante da “monomania” pretextada para seu diagnóstico inicial e consequente interdição.
No ano de 1866, refugiado na escrita mais do que nunca, escreve em cinco meses todas as 17 comédias que hoje constituem um precioso legado e são reconhecidas como precursoras de movimentos teatrais que marcariam época, muito mais tarde: o teatro do francês Alfred Jarry, que 20 anos depois lançaria, com as peças do ciclo Ubu, uma campanha “contra todo o grotesco que existe no mundo”, o surrealismo de André Breton, na década de 1920, e, ainda mais adiante, o Teatro do Absurdo, movimento europeu que perdurou do final dos anos 1940 até o final dos anos 1960.
Por razões místicas que nunca chegou a explicar bem, Campos Leão passa a assinar seus escritos com o pseudônimo Qorpo-Santo. Em uma declaração sua, aos 34 anos, transparece que se acreditava imbuído de uma missão divina. Ele se comparava a Jesus Cristo e afirmava encontrar-se, pelo fenômeno da “transmigração das almas”, com o espírito de Napoleão III. Dizem alguns de seus biógrafos que teria a intenção de “viver afastado do mundo das mulheres”. Mas suas peças, pelo contrário, tinham um conteúdo erótico bem definido, chocante para a época. Seus personagens são variados e incluem, segundo Denise do Espírito Santo, algumas figuras da sociedade carioca que ele queria atacar, retratadas com nomes curiosos: Rubicundo, Revocata, Helbaquínia, Redinguínio, Ostralâmio, Lamúria, Rocalipsa, Esterquilínea e assim por diante.
Seu melhor personagem, porém, parece ser ele próprio, retratado em toda a sua originalidade, e também em sua condição de pessoa massacrada e rotulada pela incompreensão e pela ignorância do preconceituoso e rígido mundo em que viveu. Eudynir Fraga, já falecido, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), diz dele, em seu livro Qorpo-Santo: Surrealismo ou Absurdo (1988): “Se o autor parece ansiar por um mundo em que prevaleçam a ordem e a obediência aos preceitos religiosos e legais, logo se insinua a malícia e o deboche, colocando em ridículo tais objetivos e mostrando a precariedade de nossos juízos”.
Critérios oitocentistas
O relacionamento entre loucura e literatura é tópico frequente nas análises empreendidas em livros de técnica psiquiátrica e psicanalítica desde o século 19. Pelos caminhos tortuosos dos cérebros desequilibrados, dos que transbordam de sensibilidade e emoção a ponto de ser obrigados a se afastar do dito “normal” convívio humano, têm inúmeras vezes, em toda a história da literatura, enveredado muitos escritores interessados em estudar a psique em seus aspectos mais intrigantes.
Os grandes personagens “loucos” ou “desviantes”, desde o Quixote até Hamlet, Policarpo Quaresma, Quincas Borba, o rei Lear, o idiota príncipe Michkin de Dostoiévski, conseguem se tornar fulcro de ação dramática, súmula das contradições, das misérias e também das grandes aspirações da humanidade. A psiquiatria, porém, seguiu e de certo modo ainda segue critérios mais rígidos, exigindo “racionalidade” dos que se legitimam como escritores. O “louco” tem sido com frequência automaticamente excluído da condição de escritor autêntico – os pacientes que escrevem estariam apenas esvaziando catarticamente o conteúdo perturbado de sua mente, em uma tentativa de resolver seus problemas psíquicos. Seriam incapazes realmente de criar uma “obra” válida.
O discurso psiquiátrico mostra ainda, muitas vezes, uma contaminação com os critérios oitocentistas de “doença mental” – responsáveis pela exclusão social e etiquetação até mesmo dos que apresentavam aquilo que era considerado distúrbio comportamental, como os homossexuais, os alcoólatras e dissidentes de todo tipo. Devemos lembrar que, em relação ao comportamento feminino, bastava a uma mulher (e isso até recentemente) apresentar rejeição ao enquadramento doméstico obrigatório, ou trair o marido, ou ter uma atitude sexual mais liberta, para ser classificada como mentalmente incapaz e até sofrer, frequentemente, internação forçada pelo marido ou por parentes.
Se esse critério prevalecesse, teríamos de excluir da história literária um bom número de escritores reconhecidos que alternaram períodos de racionalidade com outros de perturbação mental, ou que aproveitaram justamente os momentos de “exaltação cerebral” ou “confusão” para deles extrair um material inconsciente precioso, que puderam usar de maneira altamente criativa. Como “alcoólatras” teriam sido retirados do rol de escritores, para citar somente dois: o nosso Lima Barreto, que deixou inclusive duas obras fundamentais sobre o processo de internação, Diário do Hospício e O Cemitério dos Vivos, e, em âmbito internacional, o grande romancista americano William Faulkner, Prêmio Nobel de Literatura de 1949, que passou toda a existência sob o domínio etílico e teve de se submeter a vários períodos de internação.
Luciana Hidalgo, autora do livro Literatura da Urgência – Lima Barreto no Domínio da Loucura, resultado de sua tese de doutorado, enfatiza a situação por assim dizer privilegiada daquele que é tido como “alienado e irresponsável” para descrever os estados mentais alterados, a região intermediária entre o sonho, o delírio, a fantasia em vigília, separada por tênue linha da chamada “vida normal” – só ele consegue usar as faculdades que no indivíduo normal estão embotadas. Diz Luciana: “Não apenas alcança ele outros estados do ser como os transpõe para a realidade no momento da escrita. Daí o encantamento geral, fundido ao medo, diante de visionários, loucos, intermediários (os que estão-entre). Na condição de criadores (vítimas?) de delírios (ficções?), tornam-se ficções-ambulantes, ao verterem para a linguagem literária/artística outros mundos, experiências não acessíveis à maioria dos ditos normais”.
Esse foi também o caso de uma das maiores escritoras modernas, a inglesa Virginia Woolf (1882-1941), clinicamente definida, nas primeiras décadas do século passado, como portadora de psicose maníaco-depressiva e sujeita a crises de delírio e violência. No entanto, era de sua própria doença que extraía a “sensibilidade especial que a educa ao ouvido de ritmos internos, que, por sua vez, tenta transferir para aquilo que escreve” – nas palavras de sua grande e mais recente biógrafa, Nadia Fusini. É que a racionalidade, tão prezada pelo século 19, convoca, a partir de pelo menos Freud, a fantasia, a dissolução no sonho, até mesmo o delírio, como meios de expressão do poético, da intuição que é privilégio dos artistas. A escrita woolfiana, como diz ainda Fusini, “torna-se mais intensa e profunda pelo seu desejo de registrar a extraordinária vontade de percepções, às vezes verdadeiras alucinações, outras, experiências sensoriais agudas, às quais a doença a expõe”.
Inclassificável
Embora a ressurreição dos textos de Qorpo-Santo tenha sido tentada esporadicamente desde 1925 em quatro artigos do jornalista gaúcho Roque Callage, foi exatamente um século depois do ano da composição de todas as suas comédias – datadas de 1866 – que ela realmente se deu e o autor passou a primeiro plano no debate crítico da dramaturgia nacional. Isso aconteceu graças a uma série de matérias publicadas em vários órgãos da imprensa nacional por Guilhermino Cesar, de 1966 em diante. Em 1969, Cesar organizaria também uma primeira edição do teatro de Qorpo-Santo.
Vivia então a cena internacional plenamente o movimento do Teatro do Absurdo, que contava com expoentes como Samuel Beckett, Harold Pinter, Jean Genet, Eugène Ionesco, Arthur Adamov e Fernando Arrabal. No quadro de uma dramaturgia brasileira ainda não muito representativa internacionalmente, a descoberta de todo um pacote completo de “absurdidades”, ou seja, de uma escrita em que predominava a irracionalidade e a desconstrução dos sistemas institucionais, representou um verdadeiro milagre – logo avaliado e aproveitado por jovens atores e encenadores.
No Rio de Janeiro, a montagem em 1968 da peça Relações Naturais, dirigida por Luiz Carlos Maciel, motivou acirrado debate entre o diretor teatral e o crítico Yan Michalski, do “Jornal do Brasil”. Maciel foi questionado devido à concepção esteticista do espetáculo e à “sacralização” dos textos. Já Michalski foi acusado de exagerar na louvação à anárquica obra do dramaturgo, que definia como “o inventor do Teatro do Absurdo”. A peça atraiu a atenção da polícia e acabou por ser proibida pela Censura Federal, sob o regime ditatorial em que vivíamos.
As controvérsias sobre Qorpo-Santo continuam até hoje. Em 1988, Eudynir Fraga colocava mais lenha nessa fogueira com o livro tese já citado, situando o autor mais como precursor do movimento surrealista de André Breton – surgido na década de 1920 na França – do que propriamente como antecessor dos dramaturgos que tomariam como temas os aspectos absurdos do mundo, a irracionalidade da condição humana. Segundo Fraga, a característica principal do teatro de Qorpo-Santo é a linguagem desintegrada do “automatismo psíquico”, que, no surrealismo, como também na obra do dramaturgo brasileiro, serviria ao texto criado “na ausência de qualquer preocupação estética ou moral”. Ele deixa claro, porém, que não pretende nova classificação para o autor que estuda, mas apenas aprofundar as características de sua obra total, e lembra que a atitude “surreal” diante da vida, do mundo, ocorre em qualquer das artes, antes e depois do movimento de Breton.
Outro livro importante para o estudo do autor é Os Homens Precários – Inovação e Convenção na Dramaturgia de Qorpo-Santo, de Flávio Aguiar, publicado em 1975. Em vez de se contentar em enquadrá-lo nesta ou naquela corrente europeia – uma tendência que define como incôngrua e provinciana –, Aguiar cria para sua obra a designação “teatro da paralisia”. Porque, diz, na escolha de “processos teatrais” o genial “louco” parecia hesitar entre todos eles, mas não se decidia por nenhum. Seria, portanto, mais “um precursor de si próprio”, sendo seu teatro “um cadinho onde se misturam as coisas mais diversas”.
Se o “descobridor” de Qorpo-Santo, Guilhermino Cesar, já o definia como criador extraordinário, desmedido e pessoal, afirmando: “Não conhecemos, em língua portuguesa, ninguém que se lhe compare”, ainda hoje essa opinião é unânime entre nossos principais críticos. Sábato Magaldi, por exemplo, diz dele: “Caso isolado, escrita inclassificável pelos padrões da época em que viveu, passou a perturbar os esquemas sabidos do romantismo, ou da triunfante comédia de costumes no século passado. Hoje, seria impossível descartá-lo”.
Avaliação em curso
Não há, porém, possibilidade de enquadrar todo o teatro de Qorpo-Santo como proveniente de um “automatismo psíquico” vago, semelhante àquela “inspiração” que na tradição romântica era tida como privilégio dos artistas. Desde a década de 1980 multiplicam-se as teses e discussões sobre sua obra total – pois à descoberta de suas peças teatrais seguiu-se a não menos importante de 537 poemas de sua autoria, em 1995, pela pesquisadora Denise Espírito Santo. Ela levou mais cinco anos procurando editá-los, o que só conseguiu realizar por uma pequena editora, a Contra Capa.
Na apresentação de Poemas – Qorpo-Santo, Denise encaixa a poesia nonsense do autor gaúcho em uma pouco conhecida voz autoral desse gênero, já detectada por Antonio Candido nos nossos poetas oitocentistas – do satanismo byroniano presente no jovem Álvares de Azevedo à dicção satírica de escritores como Bernardo Guimarães, Sousândrade, Laurindo Rabelo e Luís Guimarães Júnior. Usando procedimentos como o verso livre e a escrita automática, revelações do inconsciente e colagens, esses poetas “na contramão” seriam os antecessores do “desvio” que mais tarde surgiria no movimento modernista em autores como Oswald e Mário de Andrade, por exemplo.
Por outro lado, o riso grotesco característico do teatro de Qorpo-Santo não é, como se poderia pensar, apenas aquele “apanágio dos loucos” definido por Baudelaire, mas índice de uma forte sedimentação no universo da cultura popular e oral, em âmbito universal – pois ele contém toda a derrisão da sátira grega que nos vem através da antiga Roma e que esteve presente nos autos medievais, na poesia popular e, mais do que em ninguém, no genial Rabelais, que na definição de seu consagrado estudioso, Mikhail Bakhtin, celebrou o “desgoverno” e fez a apologia de “um mundo de pernas para o ar”.
No mundo particular da cultura brasileira, muito deveu certamente Qorpo-Santo aos poetas populares e artistas ambulantes ou circenses que percorriam o interior de sua província e que lhe transmitiram a intenção de retratar o cotidiano com um espírito cômico, satírico. E a outro poeta “desviante” genial do século 17, o baiano insubordinado Gregório de Matos – sendo ele homem culto, professor, consciente ou inconscientemente deve ter transportado essa influência para o fecundo tempo de sua criatividade dita “louca”. A crítica atual descobre mesmo mais razões de “normalização” para seus textos; na citada tese sobre o autor, diz Eudynir Fraga que, na essência, sua obra não está assim tão distante da comédia de costumes de sua época, pois “lá está todo o arsenal cômico vindo diretamente de Martins Pena: quiproquós, esconderijos dentro dos armários, personagens caricaturais, os mesmos velhos preconceitos disfarçados com a máscara da liberdade”.
Flávio Aguiar também sugeriu que o teatro de Qorpo-Santo podia ser entendido por sua aproximação com o do quinhentista luso Gil Vicente. Tese recente de Márcio Ricardo Coelho Muniz, da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, demonstra detalhadamente essa hipótese – o que prova que, longe de estratificada em uma auréola de estranhamento pela sua “loucura”, a obra do dramaturgo continua a ser tema palpitante e mais do que nunca atual, neste século 21 em que a irracionalidade, a desrazão, tem mais interesse, e mais seguidores, do que o empafiado e esfarrapado racionalismo convencional.