Postado em 01/01/2011
por Silvia Kocher
Os riscos trazidos pela má gestão do lixo são assustadores. Em Cubatão (SP), por exemplo, há o caso de um condomínio popular construído há mais de 20 anos sobre solo contaminado por um lixão químico, o que prejudicou a saúde de seus moradores e gerou uma série de ações na Justiça em busca de indenizações. No Rio de Janeiro, são muito comuns os casos de dengue em áreas onde se acumulam carcaças de pneus velhos, que acabam virando criadouros dos mosquitos transmissores da doença. Para evitar a repetição de eventos como esses, o Brasil está adotando a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída em agosto de 2010 pela lei 12.305.
Além de promover a sustentabilidade em termos ambientais, a nova lei também contribui para proteger a população, pois estabelece a obrigatoriedade de planos integrados de gestão de resíduos. Com isso, governo, indústria, comércio e consumidores passam a ter a responsabilidade conjunta de cuidar para que aquilo que resulta do consumo, normalmente embalagens e restos, seja recolhido e tenha destinação ambientalmente correta. Esse processo é conhecido como logística reversa, porque recolhe coisas, ao contrário da logística tradicional, que distribui produtos.
Cada item de consumo gera resíduos ao final de seu ciclo de vida – que consiste em produção, distribuição, consumo e destinação final. Entre os resíduos há materiais que podem ser reutilizados ou reciclados, como papel, metal ou plásticos de embalagens em geral. Tudo o que não tem possibilidade de reaproveitamento é considerado rejeito, e nessa categoria estão restos de comida ou produtos cuja manipulação oferece algum risco – como agulhas e seringas usadas, lâmpadas fluorescentes (que têm mercúrio líquido em seu interior) etc. A PNRS determina que os resíduos aproveitáveis sejam levados a unidades recicladoras, enquanto os rejeitos devem ser encaminhados a aterros sanitários ou incinerados, conforme o caso.
Até agora, a obrigatoriedade de recolhimento e destinação correta desses materiais se restringia a alguns itens mais críticos, como pneus e embalagens de agrotóxicos, por exemplo. Com a PNRS, dentro de quatro anos praticamente tudo o que chega ao final de seu ciclo de vida no país deve ser objeto de um plano de gestão de resíduos e ter destinação correta (do ponto de vista ambiental e sanitário). Cada setor é obrigado a implantar seu plano de resíduos, com participação multilateral: governo, indústrias, comércio e consumidores. A forma como isso será feito, porém, ainda é fonte de dúvidas, pois são processos extremamente complexos e caros.
Exemplos
O setor de agrotóxicos (produtos usados para combater pragas agrícolas) está entre os que têm um dos melhores processos de logística reversa em funcionamento no Brasil, registrando o recorde mundial de devolução de 94% das embalagens. A lei que tornou essa prática obrigatória no país é de 2000, mas sua regulamentação só ocorreu em 2002. Antes disso, em 2001, as indústrias e as principais entidades de classe do setor criaram uma instituição específica para a tarefa: o Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (Inpev).
Em 2003, o Inpev iniciou um amplo programa de educação ambiental para conscientizar seu público da necessidade de recolhimento das embalagens. Afinal, um frasco de agrotóxico ao relento poderá se molhar e espalhar o produto pelas proximidades, colocando em risco as pessoas, a terra, os animais e, se houver muitos frascos abandonados, mesmo o lençol freático. O programa instituiu várias campanhas, veiculadas desde 2004, para conscientizar os agricultores da importância da destinação correta das embalagens. Para sensibilizar o público rural, foi adotado como garoto-propaganda o simpático espantalho Olímpio, que continua a dar o recado do Inpev até hoje.
De início, o instituto divulgou maciçamente a necessidade do recolhimento na mídia especializada, em pontos de venda e mesmo em escolas, visando também as futuras gerações. Além disso, distribuiu instruções sobre locais de coleta e cuidados de armazenagem. Eventualmente, são promovidas ações como a premiação de pessoas que se destacaram na tarefa de devolver as embalagens. Hoje, 92% dos agricultores brasileiros seguem o que estabelece a lei.
O material recolhido é reciclado e transformado em produtos como dutos ou caixas de fiação elétrica, pois a meta do Inpev é tornar o programa autossustentável. A nova lei estendeu a logística reversa a embalagens de outros insumos agrícolas, como os fertilizantes, mas as entidades do setor ainda estudam alternativas para se adequar a ela.
Outros itens que já tinham recolhimento obrigatório dispõem de programas específicos. O setor de pneumáticos é um deles, e seus resíduos são usados como combustível (para fornos de cimento, principalmente) ou como material para diversos outros produtos (de solas de sapato a componente de massa asfáltica). Óleos combustíveis, pilhas recarregáveis e rejeitos hospitalares, entre outros, também contam com programas de destinação correta, uma vez que isso já é obrigatório há muito tempo.
Definição
A grande novidade da PNRS diz respeito ao compartilhamento das atribuições em relação ao correto encerramento do ciclo de vida dos produtos. Esse é um de seus pontos positivos, na avaliação do engenheiro de materiais Sandro Mancini, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “O bom da nova PNRS é que ela, finalmente, coloca todo mundo como responsável; até o cidadão é obrigado a separar seus resíduos e encaminhá-los para reciclagem.”
Porém, é justamente a questão da definição de responsabilidades que preocupa representantes da indústria brasileira, que temem receber multas se o consumidor não fizer sua parte. Vale lembrar que a nova lei prevê, inclusive, que quem abandona resíduos ou rejeitos perigosos ou os manipula, acondiciona, armazena, coleta ou transporta de forma inadequada, seja pessoa física ou empresa, responda por crime ambiental.
A pergunta que se faz é quem será o responsável pela coordenação das várias fases do ciclo de vida de um produto, já que cada etapa é autônoma. “A PNRS tem muito impacto sobre a sociedade, que ainda não está preparada para isso”, diz o diretor adjunto do Departamento de Meio Ambiente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Raul Lerário. Ele cita o exemplo de uma empresa que colocou um espaço de sua fábrica à disposição de catadores. “A responsabilidade por um recipiente mal lavado, no entanto, acabou recaindo sobre o industrial e não sobre os catadores”, conta.
A PNRS representa um ganho para toda a sociedade, pois vai beneficiar o meio ambiente, diz Lerário, mas é preciso analisar cada caso individualmente. Há setores, como o de pilhas e baterias, que têm condições de implementar imediatamente planos de descarte, mas outros não têm estrutura para isso e necessitam de prazos mais longos. Ele lembra que hoje a indústria dá conta da destinação de seus próprios descartes, e a Fiesp, inclusive, tem uma bolsa de resíduos, que são negociados entre as empresas, já que o que uma indústria joga fora pode servir de matéria-prima para outra. A responsabilidade pela coleta dos materiais descartados pelo consumidor, porém, é dos pontos de venda, pois a indústria só tem como dar conta de sua própria parte no processo, argumenta Lerário.
Outra questão que preocupa é a dos prazos para a implantação da PNRS, que estabelece dois anos para a elaboração dos planos estaduais e municipais de gestão e quatro anos para que todos os resíduos sólidos tenham efetivamente uma destinação correta. “Seria preciso pelo menos dez anos para implantar todas essas medidas”, diz o diretor da Fiesp. O professor Mancini discorda: “Tivemos muito tempo. A PNRS ficou anos patinando no Congresso, período que poderia ter sido aproveitado para preparação, pois já se sabia o que viria”.
O secretário adjunto do Meio Ambiente do estado de São Paulo, Tércio Carvalho, diz que o gargalo da PNRS está na coleta seletiva de resíduos. “Infelizmente, estabelecer metas é responsabilidade de cada município, e o estado não tem como obrigar uma cidade a acelerar a implantação, apesar de que eu adoraria fazer isso”, diz Carvalho, que defende a cobrança de multas para apressar a implementação da PNRS. Segundo o secretário, hoje 67% dos municípios paulistas têm coleta seletiva.
Custos
A implantação da PNRS é cara, e os setores envolvidos se perguntam quem vai pagar a conta. Ao que tudo indica, boa parte do ônus financeiro ficará sobre os ombros do consumidor, mas os empresários argumentam que é preciso criar algum tipo de incentivo econômico para a implementação de planos setoriais de descarte.
As lâmpadas fluorescentes, por exemplo, contêm alto teor de mercúrio, material que provoca sérios danos ao meio ambiente e, por isso, não devem ser quebradas nem destinadas a aterros sanitários. A Associação Brasileira da Indústria de Iluminação (Abilux) calcula que mais da metade do preço de uma lâmpada dessa categoria (que inclui também as chamadas lâmpadas econômicas) representa o custo de seu descarte.
A Abilux ressalta que é preciso planejar muito bem o programa de descarte para não privilegiar nem prejudicar os concorrentes que atuam nesse mercado. O recado é motivado pelas lâmpadas importadas, que devem igualmente ser recolhidas, mas não têm uma indústria do país para pagar por essa conta. O mesmo vale para outros produtos importados ou contrabandeados, como eletroeletrônicos, baterias e pilhas recarregáveis (que também contêm metais pesados).
O secretário Tércio Carvalho afirma que São Paulo está mais adiantado que outros estados na questão de gestão de resíduos. “Saímos na frente com a adoção de um programa estadual para o setor em 2006”, diz. Carvalho enumera uma série de mecanismos financeiros que foram adotados, entre os quais uma linha de crédito, com condições privilegiadas, de R$ 600 milhões com carência de um ano e juros de 0,49% ao mês, voltada a projetos de redução de emissão de gases de efeito estufa. Iniciativas como a instalação de usinas de gás em aterros sanitários para a geração de eletricidade são alvo dessa linha de crédito. Outra medida é o Programa de Compras Públicas Sustentáveis, que dá prioridade a empresas ambientalmente corretas como fornecedoras do governo.
A grande inovação, porém, é o programa de créditos de reciclagem, que deverá funcionar à semelhança do de carbono. “O reciclador vai vender créditos ao fabricante”, explica Carvalho. Segundo ele, em 2011 será implantado no estado um sistema declaratório anual de resíduos, em que cada empresa comunica quanto produziu e quanto está sendo reciclado. Assim, será possível saber o volume processado e se ele está de acordo com a meta estabelecida no plano de gestão. Se não estiver, a empresa poderá utilizar créditos de reciclagem para compensar a diferença.
Cuidados
Um dos principais problemas da PNRS é que poucos consumidores sabem o que fazer com os resíduos gerados em casa. O lixo doméstico contém desde rejeitos orgânicos, que devem ir para o aterro sanitário, até materiais perigosos, explica Mancini, da Unesp. Nessa última categoria estão os patogênicos, como papel higiênico usado; os tóxicos, como lâmpadas que contêm mercúrio; os corrosivos, como a soda cáustica empregada como produto de limpeza; os inflamáveis, como as baterias de lítio; e os reativos, que são os explosivos em geral, incluindo as bombinhas usadas por ocasião das festas juninas.
“O lixo de banheiro, com papéis higiênicos e absorventes usados, é considerado perigoso, pois tem agentes de transmissão de doenças, como fezes e sangue”, diz Mancini. Há outros resíduos domésticos que são tóxicos, como latas de inseticida e frascos de remédios. Porém, o engenheiro diz que, como os produtos perigosos são muito diluídos no lixo doméstico, não há motivo para grandes preocupações. Uma pilha usada, por exemplo, se estiver de acordo com as normas técnicas brasileiras, tem pouca quantidade de metal (as importadas, normalmente por contrabando, é que merecem maior cautela), que acaba sendo absorvido sem grandes problemas, desde que depositado num aterro sanitário. O mesmo vale para restos de medicamentos, que devem ir para o lixo comum.
“O ideal seria que esse material fosse separado e enviado para tratamento, mas isso é complicado”, analisa Mancini. “Então, se o lixo for encaminhado a um aterro sanitário de verdade – onde animais e pessoas estranhas sejam proibidas de entrar, que contenha impermeabilização de fundo, controle de efluentes líquidos e gasosos, cobertura periódica e controle da água da chuva –, o resíduo, perigoso ou não, estará confinado de forma segura”, diz Mancini. O problema, segundo ele, ocorre quando o lixo doméstico acaba sendo depositado em um lixão, na rua ou em cursos de água, o que acontece na maioria das favelas brasileiras.
Radiatividade
Um exemplo do perigo representado pela falta de fiscalização de rejeitos e resíduos foi o acidente nuclear ocorrido em Goiânia em 1987, quando um grupo de catadores de papel invadiu as instalações de um hospital desativado e pensou que um aparelho de radioterapia fosse sucata. Os catadores furtaram o aparelho e, quando o desmancharam, abriram uma cápsula de césio 137, elemento altamente radiativo. Em poucas horas, todos os que entraram em contato com o césio começaram a passar mal e procuraram ajuda, contaminando outras pessoas, já que o pó daquela substância facilmente adere às roupas. Apenas alguns dias depois é que se descobriu que a origem do mal-estar era a radiação. O exército montou então uma verdadeira operação de guerra para isolar o local e recolher o material radiativo, que até hoje permanece guardado em local seguro.
Os rejeitos radiativos, procedentes de equipamentos médicos e de certas aplicações industriais, têm legislação específica e não são tratados na lei que institui a PNRS. Segundo a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), todas as cerca de 3,5 mil instalações médicas, industriais e de pesquisa que utilizam materiais radiativos e fontes de radiação – das quais aproximadamente 2 mil estão em operação – são fiscalizadas, com exceção daquelas que usam aparelhos de raios X para fins de diagnóstico, como consultórios de dentistas.
A fiscalização é realizada pela própria CNEN, que tem em seu banco de dados um inventário com cerca de 50 mil fontes radiativas ou equipamentos geradores de radiação. Para que uma instalação obtenha licença para utilizar esses materiais e dispositivos, deve antes apresentar à CNEN um Plano de Proteção Radiológica, que inclui todas as medidas de segurança que devem ser adotadas, inclusive as que dizem respeito ao gerenciamento de rejeitos.
Com o passar do tempo, a atividade das fontes de radiação diminui. Quando essa redução é tal que inviabiliza seu uso, elas podem ser recolhidas a um instituto do CNEN, que conta com depósitos especiais de rejeitos, re-exportadas para o país de origem ou ainda ter outra destinação, caso sua atividade se torne equivalente à radiação natural, deixando de apresentar risco. É o caso, por exemplo, das substâncias usadas para diagnóstico em medicina nuclear, que emitem radiação por um período de tempo muito reduzido e depois ficam estáveis, podendo ser descartadas como rejeito hospitalar. O limite estabelecido nas normas nacionais, seguindo as recomendações da Agência Internacional de Energia Atômica para a liberação de rejeitos sólidos, é de 74 becqueréis por grama.