Postado em 05/07/2011
por Alcimar Frazão
Começo este texto dizendo que ele terá 4.000 toques e que isso é, para mim, uma abstração; beira a metafísica. Não consigo quantificar palavras. Também deveria dizer que é a primeira vez que alguém desenha um texto que escrevo. O contrário sempre foi mais comum. Segundo o folclore familiar, comecei a desenhar muito cedo. Contam meus pais que aprendi a falar desenhando. Mais que uma distração, o desenho sempre me foi uma forma de organizar as ideias. Antes de tudo, sou um fazedor de imagem.
Uma discussão muito comum quando se pensa o livro ilustrado é o caráter de etapa atribuído a essa linguagem. Essas obras sempre foram vistas como algo destinado a pré-leitores ou leitores iniciantes, levando naturalmente ao texto. Mas essa conclusão é mesmo correta?
De fato, o espaço privilegiado das imagens na literatura infantojuvenil deve muito à Escola Nova, que via nelas uma possibilidade de entrada no universo da leitura. No entanto, o livro ilustrado nem sempre foi privilégio da infância. Na história da arte, vemos muitos artistas que se debruçaram sobre o objeto livro para criar significados conceituais e plásticos. Goya, com Os Desastres da Guerra, e Piranessi, com Os Cáceres, são dois bons exemplos de livros ilustrados que passam longe das crianças.
O livro ilustrado hoje é a soma em bom tom de duas linguagens distintas: a pictórica e a literária. Um livro com desenhos não conta uma história, conta três; uma no texto, uma na imagem e sua soma. O desenhista não completa o texto: ele materializa um sentimento que não existia antes da imagem, e foi aí onde sempre apostei minhas moedas. Lembro que as coisas ficaram mais claras quando percebi que a maior parte do que pretendia dizer, só o conseguia por imagens. Ainda hoje, quando escrevo, penso o texto como áreas de cor.
O dualismo texto/ilustração é fruto de um pensamento que privilegia a palavra e ignora a imagem como possibilidade de organização do raciocínio. Entender que o contato com as ilustrações nos livros levaria ao universo da leitura não é errado, mas limitado, e digo isso como leitor inveterado que sou. Elimina-se, assim, uma parte fundamental do sentido dessas obras: a compreensão do universo complexo das imagens, das linhas desenhadas.
Há, de fato, uma semelhança entre organizar o pensamento de forma deliberada para torná-lo um texto ou uma imagem. Mas não são coisas iguais. Paul Valery diz, a respeito do desenho, que existe uma diferença fundamental entre observar algo e fazê-lo desenhando.
O fazedor de imagem reconstrói o entorno. Apropria-se criticamente das formas e as torna maiores, viram relações: imagens de uma prática totalizante. A luz do sol sobre uma coluna de concreto numa viela não é apenas o que vejo. Ela é, sim, a infinita possibilidade do meu olhar atento àquelas qualidades únicas. É minha ação no mundo material construindo significados.
Do traçado dos rios aos desenhos nas cavernas, a imagem nos acompanha desde muito cedo. Das manchas, linhas nas superfícies rochosas, criamos formas e inventamos significados. Nasceram alfabetos, ideias gráficas, histórias. A percepção por imagem e a possibilidade de olhar o entorno e reconstruir significados pertencem a nossa forma de ser e estar no universo.
Sempre buscamos a outra forma. O primeiro humano que olhou para o sangue de um animal abatido e percebeu que sua mancha deixava no solo um registro inventou a linguagem: a vida no campo expandido do que pode ser.
Uma imagem é pensamento e sentido. É um desenho que começa no olho e se traduz na vida, na forma como me relaciono com o que observo, suas contradições e potências. Pensamento e ação filosófica. Meio e fim. O olhar observador questiona, revela a ideia para além da forma, desenha possibilidades e rompe os muros; é, em si, uma ação desalienante.
No mundo de imagens sem significado além do consumo puro e simples, ir em busca de novos desenhos, que não se limitem ao valor de troca, chega a ser uma experiência transcendente. Um mergulho nas imagens fora do espetáculo, fora de conceitos de compra, venda e ordenação da vida. Desenho como prática da liberdade.