Postado em 03/11/2011
Para Martha Medeiros
Martha mudou-se
de homem, de casa, de vista.
Não ficou com as molduras,
a sala branca a assusta,
limpa, lisa de luz.
As paredes são um rosto de menino,
não mais o espelho de seu marido,
barbeado a cada dois dias.
Martha pede quadros
largos, grandes, altos.
De preferência, tinta a óleo.
Anda apressada por janelas.
REDEMOINHO
OU CELSO GUTFREIND
Meu amigo tem caráter.
É o único homem que conheço
que ainda sai de casa
com um redemoinho nos cabelos.
Nunca abaixa as falhas,
não passa gel, não usa secador.
Não sofre com a falta
de consenso entre os fios.
Não elimina a contrariedade
da escova, o rio
dividido entre duas aldeias,
banhando quem chega e quem parte.
Deve sentar todo mês
e pedir ao barbeiro com impaciência:
– O mesmo redemoinho.
O mesmo redemoinho de minha infância!
As crinas levantadas atrás.
Uma gravata de pé.
Campo de trigos
e corvos desobedientes.
Alinha-se desalinhado.
Arvora-se.
Sempre assustado.
Com o espanto de surdo.
Posso reconhecê-lo de longe
pelo redemoinho, intacto,
que torna sua amizade bem maior
do que seu 1m83.
PROMOÇÃO
O irmão mais velho me censura:
matarei a mãe de preocupação.
Ele não vai me perdoar.
Meu outro irmão avisa
que estou repetindo a sina do pai.
Ele não vai me perdoar.
Minha irmã pede para esquecer
que ela existe.
Ela não vai me perdoar.
Minha ex ameaça se matar.
Ela não vai me perdoar.
Meus filhos estão dormindo
longe de mim.
Olho a loucura,
mas não vou usar agora.
MELHOR ASSIM
Não culpo Deus pela caligrafia.
Não se pode escrever bem
e ainda ter letra bonita.
Não reclamo a estranheza do rosto,
o nariz torto, os olhos caídos.
O que falta em mim, imagino.
Ser feio até que me tranquiliza.
Enquanto os outros se descobrem,
eu me invento. Não me basto sozinho.
A beleza de minha mulher me perdoa.
CUIDADO
Ando no cais de Santos,
encurvado,
o vento marinho
é um filho na garupa.