Postado em 03/02/2011
Porque era sábado, a família podia despertar mais tarde e viver umas horas de descuido. O casal não iria ao trabalho, nem o menino à escola, tinham os três mais tempo para si mesmos. A semana inteira viviam a fazer o que era preciso e, assim, entre atos e palavras, tocavam-se apenas, como as margens de um rio tocam a paisagem que seu curso delimita. Era um dia de levezas, embora as levezas às vezes possam pesar demais. O homem, o primeiro a acordar na casa, abriu a janela do quarto e deu com o sol já em seu esplendor, envolvendo os espaços com uma grossa demão de luz. Um dia como aquele era quase uma dor, de tão lindo, quase não cabia no homem – nem mesmo a janela suportava a claridade que a atravessava para iluminar, à cabeceira da cama, o rosto de sua mulher no travesseiro. E, mesmo sem abrir os olhos, a mulher sabia que lá fora, além de suas pálpebras – e das paredes –, o verão, acima das casas, fulgurava. Igual ao marido, ela despertou feliz, espreguiçou-se, pronta para desfrutar aquele bônus da vida, experimentando no íntimo uma paz profunda e sentindo que as angústias continuavam dormentes, como se vigorassem em turno incompatível com a sua vigília – e, por isso mesmo, enquanto o destino se distraía, era hora de se entregar à felicidade. O menino ainda dormia. O homem trancou a porta do quarto à chave, voltou à cama e abraçou a mulher. Fizeram amor com sofreguidão, sussurrando umas palavras sujas de ternura. Depois, continuaram enlaçados, desfrutando o langor de quem nada tem a fazer, senão prolongar o seu deleite. Ali, àquela hora, só havia espaço para a comunhão, e ela era tão visceral que o mínimo ruído a perturbaria. Se pudessem, desligariam o canto dos pássaros e o rumor da respiração, arfante, que eles mesmos produziam. Por fim, levantaram-se e foram tomar banho juntos. Entraram no boxe, uniram-se sob o jato da ducha, e, então, igual à água, caudalosa, a conversa brotou e foi escorrendo dos dois, sem pressa. Vestiram-se, em seguida, sentindo a pele fresca, como a manhã que continuava a vazar pela janela adentro e nem dava mostras de que envelhecia – era preciso cerrar bem os olhos para captar o seu avanço, lento. Os dois iam trocando impressões sobre fatos mundanos, esquecidos de que aqueles momentos passavam definitivamente. Descontraídos, queriam usufruir a manhã e, depois de arrumarem a cama, foram para a sala e, de lá, ele saiu à varanda, apanhou o jornal entre os canteiros do jardim e sentou-se na cadeira para ler as notícias; ela seguiu para a cozinha e se pôs a preparar a mesa do café, não sem antes abrir a porta dos fundos. O sol se infiltrava por entre os galhos das árvores no quintal; o vento, vindo de longe, movia suavemente as folhas; era a mesma cena, cotidiana, mas, por ser sábado, a mulher a mirava com olhos demorados, e, assim, as coisas ganhavam uma nova aura – ou a aura que possuíam agora podia ser vista. O menino apareceu ali, subitamente, ainda de pijama, e ficou a ver, admirado, o dia funcionando, como um brinquedo para além dos batentes. A mulher o enlaçou e disse, Bom dia, meu amor, e esse meu amor era tão sincero, que, para um estranho soaria falso, era unicamente dela e de seu filho, e, então, perguntou-lhe, Dormiu bem?, e ele, movendo a cabeça num sim, afastou-se, atravessou a porta e foi ao quintal. Ela terminou de preparar o café, nem reparou no que o menino fazia, mas, só de o ter ali, próximo, sua satisfação se alargava. Tanto quanto o marido na varanda e o filho no quintal, ela vivia o instante sem planos, e começou, então, a cantar baixinho, apenas para si, evitando quebrar aquela harmonia que reinava. Não demorou, estavam todos à mesa, a verdade no quieto de cada um, e, enquanto conversavam uns assuntos que, se não eram urgentes, eram os que estavam à mão, os momentos vinham, um após o outro, para que os provassem, à semelhança do pão e da manteiga. Falavam de si, dos vizinhos, da realidade que viviam. E, como tinham o sábado pela frente, e o sol se aderia, inexorável, sobre todas as coisas, e as dores estavam adormecidas – logo, despertariam, inevitavelmente! –, e, já que precisavam continuar a sua história, eles, enfim, se levantaram da mesa e foram fazer essas coisas que todos fazemos, enquanto estamos vivos.
João Anzanello Carrascoza é autor de Dias Raros (contos, Planeta, 2004), O Volume do Silêncio (contos, Cosac Naify, 2006) e Espinhos e Alfinetes (contos, Record, 2010), entre outros livros