Postado em 05/07/2011
por Francisco Luiz Noel
Sob o estereótipo que apresenta o Rio Grande do Sul como uma Europa nos trópicos, simbolizado pelos personagens heroicos do gaúcho a cavalo e do imigrante cristão de olhos azuis, um universo mágico povoado por orixás, caboclos, pretos-velhos, exus e pombajiras pulsa transbordante de fé e vitalidade cultural. Nesse mundo devocional de matriz africana, o churrasco é prato de resistência servido a Ogum, a erva-mate adiciona gosto de chimarrão ao caldo vertido aos eguns e a bombacha gauchesca dá o ar de sua graça na indumentária de fiéis e até de entidades cultuadas nos terreiros. Estes chegam a milhares, frequentados não só por afrodescendentes, mas também por praticantes de outras origens étnicas.
Alvo do preconceito histórico contra as manifestações populares nascidas no tempo das senzalas, a religiosidade de raiz negra em terras sulistas acaba de ganhar visibilidade pelas lentes da fotógrafa Mirian Fichtner, no livro Cavalo de Santo – Religiões Afro-Gaúchas, publicado com o apoio da Fundação Cultural Palmares. A obra, que entrecruza arte e visão etnográfica, mostra com todas as cores, formas e expressões um panorama sociocultural desconhecido pela maioria dos brasileiros. Traçado em 153 imagens, o inédito e surpreendente retrato da religiosidade de berço negro no meridião do país é resultado de uma imersão de quatro anos na vida ritual dos terreiros da Região Metropolitana de Porto Alegre, litoral e extremo sul do estado.
A fotógrafa mergulhou no mundo afro-rio-grandense movida por surpresa semelhante à despertada, agora, pela força de suas fotos. “Em 2005, lendo uma análise do Censo 2000, me chamou a atenção ver que o Rio Grande do Sul era o estado com o maior percentual de adeptos declarados de religiões afro-brasileiras”, conta ela. “Sou de Porto Alegre, mas nunca havia visto isso nem tinha ideia de que existia.” Apaixonada pela estética dos cultos afro-brasileiros desde os anos 1980, quando trabalhava na imprensa carioca e cobria as festas praieiras de Iemanjá, nas viradas de ano, ela e o jornalista Carlos Caramez, seu marido, se surpreenderam ainda mais ao mapear os terreiros e se deparar com a pujança devocional e cultural da religiosidade afro-gaúcha.
Os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre os cultos afro-brasileiros põem o estado bem à frente da Bahia, tida como a terra dos orixás – dianteira que só a análise do Censo 2010, ainda não divulgada, poderá atestar se perdura. Em 2000, enquanto os brasileiros que se declaravam adeptos dessas religiões somavam 0,3%, os gaúchos eram 1,6% (171 mil pessoas), ultrapassando os baianos. Na apresentação do livro, o antropólogo Ari Pedro Oro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), escreve que o número de terreiros no estado gira em torno de 30 mil – na maioria pequenos, cada um com de 20 a 50 fiéis, ao contrário dos da Bahia, que chegam a congregar milhares de devotos.
“A imagem que se faz do Rio Grande do Sul se apoia num modelo que exclui os negros e os índios e exalta as figuras heroicas dos gaúchos e imigrantes europeus. O estado se vê e é visto como branco e ‘moderno’. No entanto, apesar do processo histórico e ideológico de invisibilização do negro e de suas práticas culturais, as religiões afro-brasileiras, aqui chamadas de afro-rio-grandenses, vicejam no território gaúcho desde a virada do século 19. Ao longo do século 20, sua presença foi aumentando”, assinala o antropólogo. As raízes dessa devoção remontam à chegada dos escravos, no século 18, para o trabalho nas estâncias de gado e charqueadas, que abasteciam de carne salgada o Brasil Colônia.
Linhas cruzadas
A religiosidade afro-gaúcha, distingue Oro, se manifesta em três vertentes. A mais fiel à ancestralidade africana é o batuque, congênere do candomblé e também chamado de nação, em referência a territórios de origem dos escravos, como jeje, cabinda e nagô. Seus praticantes, fiéis a símbolos trazidos da África e à língua iorubá, cultuam 12 orixás – Bará, Iemanjá, Obá, Odé, Ogum, Oiá (Iansã), Otim, Ossanha, Oxalá, Oxum, Xangô e Xapanã, identificados com santos católicos. A umbanda, que incorpora influências também do espiritismo e das tradições indígenas, celebra em português entidades como os caboclos, pretos-velhos e bejis (crianças). Terceira vertente desse complexo religioso, a linha cruzada reverencia os exus, ciganos e pombajiras.
Onze anos e um recenseamento depois do Censo de 2000, as fotografias que deram vida aos números das estatísticas foram feitas por Mirian Fichtner em 13 terreiros, escolhidos entre uma centena, em Porto Alegre, nas vizinhas cidades metropolitanas de Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo, na litorânea Tramandaí e em Rio Grande, no sul do estado. “Ser fotógrafa não é só apertar o botão, mas revelar o que as pessoas comuns não conseguem enxergar”, observa Mirian. “O que fiz foi olhar para o que ninguém olha. Todo mundo no estado tem uma pessoa da família, um amigo, um conhecido praticante de uma dessas religiões, mas tudo é muito subterrâneo.”
Portfólio debaixo do braço, reforçado com recomendações de conhecidos respeitados nos terreiros, como o antropólogo Ari Pedro Oro, Mirian Fichtner foi bem recebida em todos. “Procurei estabelecer relações de confiança e amizade, explicando que não era da religião nem de nenhuma outra e que meu objetivo era mostrar a força e a beleza do que fazem”, diz. Do primeiro clique, em 29 de junho de 2006, ela não se esquece: era o dia da tradicional celebração do orixá Bará, abridor de caminhos, no Mercado Municipal de Porto Alegre. A festa guarda ligação com uma figura mítica das religiões afro-gaúchas, o príncipe negro Custódio Joaquim de Almeida, nascido no Benin e emigrado para o Brasil, livre, no fim do século 19.
Fé das multidões
Para reportar a vida dos terreiros, a fotógrafa optou por tons quentes, compensando com iluminação própria a luz fluorescente de alguns locais. Uma das inspirações de Mirian, que trabalhou nos principais jornais e revistas do eixo Rio-São Paulo e ganhou vários prêmios, foi o legado de um dos pioneiros fotojornalistas da antiga “O Cruzeiro”, José Medeiros, autor, nos anos 1950, de um livro clássico sobre o candomblé. “Mirian Fichtner se utilizou tanto de sua ampla experiência como repórter fotográfica quanto das técnicas de trabalho de campo das ciências sociais: suas fotos têm a densidade que só encontramos quando o autor sabe o que deve ser registrado e como deve fazê-lo”, escreve no livro o também fotógrafo e antropólogo Milton Guran.
A empatia com pais, mães e filhos de santo abriu à fotógrafa o acesso a rituais nunca documentados no Rio Grande do Sul. Um deles, em extinção, praticado pelo veterano Pai Neco de Oxalá, na capital, foi a sacralização do boi, sacrificado para que seu sangue fosse ofertado num ritual de saúde do terreiro. “Não mostrar seria perpetuar o preconceito. O ritual, com toda a sua preparação, tem fundamento na cultura africana, de forma semelhante ao da sacralização do cabrito no islamismo e no judaísmo”, assinala Mirian. No dia a dia dos terreiros, ela registrou muitos outros ritos – de batismo, aniversário, casamento, saúde – e cobriu importantes festas afro-gaúchas, como as de Oxum, em 8 de dezembro, e de Iemanjá, em 2 de fevereiro.
Os festejos populares originados nos terreiros são um capítulo à parte no Rio Grande do Sul, por conta da conquista de espaços públicos. A maior festa é a de Iemanjá, na cidade de Rio Grande, realizada na praia do Cassino, onde 300 mil praticantes de batuque, umbanda e linha cruzada e simpatizantes leigos da orixá dos mares passam durante todo o dia no que é considerada a maior celebração de matriz africana no país. Em Tramandaí, a festividade reúne, também à beira-mar, mais de 100 mil pessoas. Em 8 de dezembro, as comemorações dedicadas a Oxum, orixá das águas doces, associada a Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Porto Alegre, atraem 30 mil à praia de Ipanema, na orla do rio Guaíba.
Para equilibrar a participação das três correntes afro-gaúchas no livro e destacar a importância sociocultural dos eventos a céu aberto, Mirian organizou as imagens em quatro capítulos – “Nação Batuque”, “Caboclos e Pretos-Velhos”, “Ciganos, Exus e Pombajiras” e “Festas Populares”. Um dos desafios da finalização de Cavalo de Santo, expressão que designa o corpo dos iniciados quando estão sob poder das entidades espirituais, foi selecionar as fotos entre as mais de 10 mil imagens produzidas até dezembro de 2010. Dois anos antes, a fotógrafa havia exibido uma amostra do trabalho em exposições no Santander Cultural, em Porto Alegre, com apoio da prefeitura, e no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro.
A acolhida dada a Mirian nos terreiros não se repetiu, porém, nas empresas onde ela tentou obter patrocínio para publicar o livro. “O grande desafio foi vencer o preconceito. As pessoas nos recebiam com desconfiança e não diziam que não, mas também não diziam que sim. Não conseguimos nenhum apoio. Quando procuramos o Fumproarte [Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural de Porto Alegre], recusaram dizendo que não era cultura gaúcha”, ela relata. E, em tom de desabafo, resume o saldo da peregrinação em busca de apoio: “Sendo branca, pude sentir na carne o preconceito quando se trata das religiões e da cultura dos negros”.
Quando a fotógrafa bateu à porta da Fundação Cultural Palmares, em Brasília, o arquiteto Zulu Araújo, que presidia a entidade, se surpreendeu. “Por que uma profissional tão gabaritada e competente como ela precisaria da Fundação Palmares para publicar seu trabalho? As fotos eram lindas, seu currículo mais ainda. O que então poderia impedir apoios e patrocínios?”, escreve Zulu na introdução de Cavalo de Santo. “Só haveria uma razão: o tema. E o tema que ela estava apresentando independia da sua qualidade, experiência ou vivência profissional. Afinal, o preconceito e a discriminação que ainda se fazem presentes em nosso país não têm olhos nem ouvidos: são cegos, surdos e insensíveis.”
Escravos do charque
A principal rota de escravos no Rio Grande do Sul, desde o fim do século 18, passava pelo porto de Rio Grande. A maioria dos negros era adquirida para o trabalho nas charqueadas, na região de Pelotas. Por volta de 1860, a produção de carne salgada e couro era o carro-chefe do comércio gaúcho com as outras províncias brasileiras. “Os historiadores têm mostrado que as relações inter-raciais no estado não foram diferentes do restante do país”, assinala Ari Pedro Oro. “Não por acaso, aqui também houve resistências à escravidão e à espoliação, inclusive com formação de quilombos. Uma forma de contestação ao processo de submissão é justamente a preservação de expressões culturais como a religiosa.”
Os escravos também eram mão de obra nas estâncias, latifúndios espraiados no pampa, onde conviviam com vaqueiros brancos na lida com o gado. Reminiscência simbólica desse tempo é a lenda do Negrinho do Pastoreio, surgida no século 18. Reza o folclore que, por ter perdido um cavalo baio no pasto, o menino foi torturado pelo estancieiro e amarrado em carne viva sobre um formigueiro, de onde foi salvo pela Virgem Maria, que fez aparecer o animal sumido. “É um mito que tenta desqualificar e embranquecer a cultura, a ancestralidade e a religiosidade do povo negro gaúcho, pois entrega sua redenção a Nossa Senhora”, critica o babalorixá Baba Diba de Iyemonjá, um dos principais ativistas da causa afro-brasileira no estado.
A presença negra na formação sulista está no foco de estudos acadêmicos desde meados do século passado. Um dos que mergulharam no tema foi o sociólogo e mais tarde presidente da República Fernando Henrique Cardoso, autor de Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul, tese de doutorado escrita em 1962. Fernando Henrique lançou luz sobre o peso decisivo do trabalho escravo na economia do charque e desmistificou a visão de que, entre os gaúchos, os negros tinham tratamento menos violento. Nos últimos anos, entre os estudiosos que se dedicam ao assunto destacam-se, além de Ari Pedro Oro, a também antropóloga Ilka Boaventura Leite e o historiador Mário Maestri.
A revelação do Censo 2000 sobre as religiões de matriz africana, ressaltam líderes e estudiosos, pode estar associada à singularidade da sociedade gaúcha e ao ocultamento da devoção em outros estados. Brasil afora, muitos praticantes se dizem católicos, temendo o preconceito ou por não ver oposição entre práticas religiosas. Exemplo era Mãe Menininha do Gantois, a mais venerada ialorixá do candomblé baiano, falecida em 1986, que se declarava católica aos recenseadores. Postura distinta pode ter ocorrido no sul. “A presença de pessoas de outras etnias nas religiões afro-gaúchas contribuiu para essa autodeclaração, pois elas são menos discriminadas”, acredita Baba Diba de Iyemonjá.
O babalorixá lidera a Comunidade Terreira Ile Axé Iyemonjá Omi Olodo, uma das mais tradicionais do estado. Fundada há 80 anos pela bisavó de Baba Diba, dona Júlia de Iyemonjá Bomi, no Areal da Baronesa, importante reduto negro da Porto Alegre dos anos 1930, a casa de santo mudou-se com os devotos para o bairro Glória, empurrada pelo crescimento imobiliário, e depois para o Partenon. Em 1963, a morte de dona Júlia conduziu ao comando a filha Mana de Iansã, falecida em 1980 e sucedida por Baba Diba, seu neto, que milita em organizações como a Congregação em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul.
Orgulho e preconceito
Ari Pedro Oro associa a três fatores a expressiva autodeclaração dos fiéis de umbanda, batuque e linha cruzada no estado. “A diversidade religiosa é tolerada aqui há longo tempo, com o luteranismo e outras denominações evangélicas. Isso criou certa predisposição à aceitação da alteridade, diferentemente de outras regiões, onde o catolicismo se manteve exclusivista”, assinala. Outro motivo indicado por ele é a estruturação mais recente das religiões afro-rio-grandenses em relação a outros estados, o que levou a acumular menor carga de estigmatização. “Em terceiro lugar, contribuiu para a legitimação e aceitação social das religiões afro-gaúchas o fato de logo terem recebido indivíduos brancos como clientes, membros e até agentes religiosos.”
Apesar do intercâmbio étnico e racial, a devoção afro-gaúcha continua sendo alvo de intolerância religiosa, manifestada sobretudo entre cristãos de denominações pentecostais. Em 2004, um juiz da cidade de Rio Grande impôs horário restrito ao funcionamento do Centro Espírita Oxum e Xangô e condenou sua líder, Mãe Graça de Oxum Taladê, por perturbação do sossego. O caso mobilizou integrantes de terreiros de todo o estado e subiu ao Tribunal de Justiça, que reabriu o templo e absolveu Mãe Graça. De São Paulo, saiu em defesa da ré o jurista Hédio Silva Júnior, especializado em leis sobre racismo, mais tarde secretário da Justiça e Defesa da Cidadania do estado de São Paulo e atualmente diretor da Faculdade Zumbi dos Palmares.
Contrapartida à discriminação é o sincretismo cultural à gaúcha, visível em várias fotos de Cavalo de Santo. No Parque Marinha do Brasil, em Porto Alegre, Mirian flagrou o típico churrasco de costela bovina entre oferendas a Ogum, identificado com São Jorge. A bombacha, calça tradicional do pampa, aparece numa foto em que Mãe Ieda do Ogum incorpora o preto-velho Pai Antônio da Bahia, no terreiro porto-alegrense Ilê Nação Oyó. Em outra casa de santo da capital, a Reino de Oxalá, entre oferendas a Ogum está a batata-inglesa, saída da cozinha dos imigrantes alemães. Contribuição dos italianos, a polenta também comparece, assim como o vinho, usado no preparo de sagu, diversificando o cardápio da fé afro-gaúcha.