Postado em 05/07/2011
por Elisa Almeida França
Em 1995, uma comitiva de índios craôs saiu de sua terra, no nordeste do Tocantins, e foi até Brasília, com o intuito de recuperar uma variedade tradicional de milho que seu povo havia perdido. Eles tinham a informação de que, naquela cidade, a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen, uma unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) armazenava sementes do milho em suas câmaras frias, mantidas a -20º C. A chegada do grupo foi uma surpresa para os pesquisadores, acostumados a trabalhar apenas com agricultores e empresas do ramo. Foi assim que o depósito do Cenargen, criado na década de 1970, foi aberto pela primeira vez com o objetivo de recuperar sementes que haviam desaparecido.
Esse grande banco de sementes guarda atualmente mais de 110 mil amostras de 600 espécies agrícolas e situa-se entre os maiores do mundo. Entre os principais objetivos desses depósitos genéticos está o fornecimento de matéria-prima para a pesquisa e o desenvolvimento de novas variedades comerciais, mas talvez sua maior finalidade seja proteger a produção de alimentos da perda de diversidade que se observa no campo. No Brasil, só a Embrapa possui 170 bancos ativos de germoplasma – que incluem, além das sementes, outras formas de armazenamento do DNA das plantas, como a cultura de tecidos in vitro ou o cultivo em estufas.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que, nos últimos cem anos, por volta de 75% de toda a diversidade genética agrícola do planeta tenha sumido do mapa. Sobre o milho, por exemplo, há registros de milhares de variedades, cada uma com características genéticas distintas, mas muitas já não existem. Além disso, uma quantidade enorme de outras espécies vegetais usadas na alimentação vem sendo perdida. Calcula-se que nossos antepassados primitivos consumiam mais de 1,5 mil tipos de vegetais. Mais tarde, os primeiros agricultores da humanidade, há 12 mil anos, reduziram seu cardápio para cerca de 500 variedades. Hoje em dia, 95% do aporte calórico de que necessitamos vem de apenas quatro alimentos: arroz, milho, trigo e batata.
No mundo, o mais ambicioso banco de material genético vegetal, com capacidade para guardar 4,5 milhões de amostras, funciona como um backup de todas as sementes mantidas por seus congêneres institucionais, como os da Embrapa. Ali não se realiza pesquisa nem há um quadro fixo de funcionários in loco. Situado na gélida e inóspita ilha de Spitsbergen, no arquipélago norueguês de Svalbard, o banco recebe material de muitas partes do mundo – inclusive do Brasil, que em 2008 enviou sementes de arroz, feijão e milho para o acervo. Elas são guardadas em uma estrutura construída dentro de montanhas nevadas, a fim de garantir as baixas temperaturas e a conservação das amostras por centenas de anos – cumprindo sua função mesmo na ocorrência de mudanças climáticas ou de escassez de energia. O depósito acabou sendo apelidado de “caixa-forte do Juízo Final”.
Longe das câmaras frias e dos laboratórios, funciona outro tipo de banco: o comunitário. Mantido por cooperativas ou por associações de pequenos agricultores, ele armazena sementes de uma safra para outra em silos metálicos ou garrafas PET. “Os grupos de gestão dos depósitos recebem o material, fazem uma seleção e verificam se está seco”, explica Emanoel Dias, agrônomo da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA). “Para melhorar a conservação das sementes, intercala-se pimenta-do-reino ou casca de laranja.”
No planalto da Borborema, que fica na região central do estado da Paraíba, há uma rede de 62 bancos de sementes comunitários, que envolvem mais de 3 mil famílias e armazenam mais de 30 toneladas de grãos, num trabalho que vem crescendo desde 1993. Tamanha é a estima dos agricultores pelo material assim conservado que se referem a ele como “sementes da paixão”. “Elas são trabalhadas há muito tempo pelas famílias”, diz Emanoel Dias. “Vêm de gerações passadas e as pessoas têm carinho por elas.” Tanto ali como em várias partes do país, o meio rural assiste também, periodicamente, à realização de festas da semente, em que os produtores fazem muitas trocas de variedades e de conhecimentos entre si.
Variedades crioulas
O desaparecimento da diversidade genética agrícola ocorre por diversos fatores, como a degradação ambiental ou a simples opção dos povos, no decorrer do tempo, por determinados tipos de alimento, em detrimento de outros. Porém, entre as causas mais importantes dessa homogeneização, está a agricultura industrial desenvolvida nos últimos 50 anos. A Revolução Verde, entre as décadas de 1960 e 1970, levou para o campo as sementes melhoradas, os fertilizantes químicos e os agrotóxicos.
Desde então, a fim de ganhar em produtividade, as empresas e órgãos de pesquisa buscam a padronização, de forma a manter o máximo de controle sobre os resultados e a minimizar variações, como o desenvolvimento de espigas ou grãos de tamanhos ou cores diferentes, por exemplo. “As sementes melhoradas têm um comportamento mais uniforme”, explica a bióloga Izulmé Santos, gestora do Núcleo de Recursos Genéticos do Cenargen.
As variedades melhoradas, como são denominadas aquelas que passaram por intervenções em laboratório, realmente se tornaram mais produtivas que as selecionadas ano a ano pelos agricultores – chamadas de sementes crioulas. Só que, para muitos especialistas, a redução da diversidade que acompanhou essa evolução é uma consequência indesejável, uma vez que torna as culturas menos resistentes a pragas ou a variações do clima e mais dependentes de agroquímicos.
As sementes crioulas têm maior flexibilidade e resiliência e, portanto, comportam-se de forma mais estável, segundo o engenheiro agrônomo Gilberto Bevilaqua, pesquisador da Embrapa Clima Temperado. Apesar de renderem menos, sua produtividade não fica comprometida diante de condições climáticas um pouco desfavoráveis. Elas também são mais adaptadas às características do meio em que se desenvolveram, como a pouca disponibilidade de água ou a ocorrência de determinadas pragas.
No Rio Grande do Sul, a Embrapa Clima Temperado vem trabalhando com esse tipo de planta há cerca de dez anos. Nos próximos meses, lançará sementes certificadas que são, segundo Bevilaqua, praticamente iguais a variedades crioulas. “O que fazemos, após um trabalho de uniformização, é incluir cultivares crioulos nos ensaios de avaliação”, explica o pesquisador. “Assim, possibilitamos que sejam recomendados tal qual cultivares melhorados.” A uniformização, de acordo com Bevilaqua, é exigida pelo Ministério da Agricultura. E, para registrar um novo cultivar, é necessário cumprir os ensaios de distinguibilidade, homogeneidade e estabilidade do material. “As sementes crioulas têm um potencial enorme para se tornar novas variedades, mas ainda são subutilizadas”, diz o pesquisador.
Um exemplo de variedade que chegará ao mercado é um feijão mais resistente a doenças e mais precoce, conhecido como “preto comprido”. Enquanto o ciclo de um feijão comum leva cem dias, o do crioulo, cujo novo nome será BRS Taura, pode chegar a apenas 70 dias. “A qualidade nutricional é outro de nossos objetivos fundamentais. Analisamos as sementes sob esse ponto de vista e selecionamos cultivares de características superiores.”
Em tempos de mudanças climáticas, a diversidade genética ganha ainda mais importância. De acordo com o estudo “Aquecimento Global e Cenários Futuros da Agricultura Brasileira”, coordenado por pesquisadores da Embrapa e do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura da Universidade Estadual de Campinas (Cepagri/Unicamp), o aumento de temperatura pode diminuir consideravelmente a área propícia às maiores culturas agrícolas no país – soja, café, milho, arroz, feijão, algodão e girassol. A redução, a depender da cultura, vai de 14% (caso do arroz) a 40% (soja), até 2070. As exceções são a cana e a mandioca, cuja área cresceria. Segundo a pesquisa, a elevação da temperatura pode acarretar principalmente duas consequências sobre as plantas: diminui sua fotossíntese, comprometendo, assim, seu desenvolvimento; e leva a maior evapotranspiração (perda de água por evaporação do solo ou transpiração do próprio organismo vegetal). Por conseguinte, pode provocar mais seca no ambiente.
Se nada for feito, “deve ocorrer uma migração de plantas para regiões que hoje não são de sua ocorrência, em busca de condições climáticas melhores”, explica a publicação. Nesse caso, o prejuízo é estimado em R$ 7,4 bilhões já em 2020. A previsão baseou-se em duas hipóteses levantadas pelo relatório de 2001 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da Organização das Nações Unidas. A mais pessimista antevê um aumento de temperatura entre 2º C e 5,4º C para 2100. A outra, um pouco mais otimista, traça uma elevação entre 1,4º C e 3,8º C.
Soma-se a isso a necessidade de crescimento da produção agrícola, na medida em que aumenta a população do globo (em 2050 devemos chegar a 9 bilhões). Destrinchar a diversidade genética, diz a FAO no documento “Genes Selvagens para a Segurança Alimentar” (“Wild Genes for Food Security”, no original), servirá para “melhorar o rendimento da colheita, a resistência a pragas e doenças, a tolerância a estresses climáticos, a eficiência energética, o sabor e a qualidade nutricional dos cultivares existentes”. O caminho para alcançar esses resultados passa pelo melhoramento genético ou pela transgenia, em laboratório – algo que já vem sendo estudado pela Embrapa no cerrado e na caatinga.
Dependência versus autonomia
Dez companhias controlam 55% do mercado mundial de sementes comerciais, avaliado em US$ 26,7 bilhões, em 2007. Dessas, seis respondem por 72% da comercialização de agrotóxicos. Não é de admirar que exerçam forte pressão para que os agricultores abandonem a prática de plantar suas próprias sementes de uma safra para outra, substituindo-a pela compra.
Segundo o engenheiro agrônomo e educador Valdemar Arl, um dos fundadores da Rede Ecovida de Agroecologia, com as sementes melhoradas, que são híbridas ou transgênicas, cresce a dependência do produtor em relação aos fabricantes. No caso das primeiras, seus grãos são estéreis. Eles podem até produzir uma segunda safra, caso cultivados – só que sem a mesma qualidade. Já os transgênicos, se semeados mais de uma vez, podem acabar levando o produtor à obrigação de pagar royalties para o fabricante. As sementes geneticamente modificadas já estão relativamente disseminadas no país, com cerca de 75% de toda a soja e de 55% de todo o milho cultivados na última safra.
O maior perigo, segundo Arl, é o gene alcunhado “terminator”, obtido por meio de uma das mais polêmicas tecnologias relacionadas aos transgênicos, que impede que o grão colhido germine. “Imagine se isso passar para sementes nativas ou crioulas?”, questiona o engenheiro. Caso haja contaminação de espécies convencionais, sua reprodução poderá igualmente ser afetada. Por isso, até hoje nenhuma variedade com essa característica foi aprovada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), responsável por esse papel.
De sua parte, é justamente em busca de autonomia que muitos agricultores mantêm ou resgatam o plantio de suas sementes. Contudo, um entrave com que se deparam é a falta de financiamento e seguro agrícola. Os benefícios são concedidos por instituições financeiras somente às chamadas variedades certificadas, isto é, às que estão listadas no Registro Nacional de Cultivares (RNC) do Ministério da Agricultura, de acordo com a Lei de Sementes (10.711/03).
Na lista, só há variedades melhoradas em laboratório. “É um registro público, que no entanto apresenta requisitos pesados para os pequenos produtores”, afirma José Carlos Zukowski, coordenador do Seguro da Agricultura Familiar (Seaf) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). “O acesso ao crédito e ao seguro tem sido motivo para o agricultor, muitas vezes, acabar optando pela semente industrializada”, diz Valdemar Arl.
Apesar de a própria Lei de Sementes dispensar a necessidade do registro das crioulas e proibir que haja qualquer restrição a sua inclusão em programas de financiamento, na prática a determinação não funciona bem. “A instituição financeira não conhece as variedades que não estão registradas e, assim, não consegue fazer uma análise de viabilidade dos empreendimentos para conceder crédito”, diz Zukowski. “Não basta escrever as dispensas na lei. É preciso haver mecanismos para que tenham efetividade.”
Para contornar essa barreira, o próprio MDA criou, por meio da portaria 51/2007, o cadastro nacional de entidades que atuam com cultivares locais, tradicionais ou crioulos. Algumas exigências para que a semente seja registrada são que não venha de laboratório nem seja transgênica, e que seja distinta de um cultivar melhorado. O cadastro, no entanto, ainda contém bem poucos itens – cerca de 40. Um dos motivos é a falta de conhecimento dos agricultores e de suas entidades representativas, o que deve levar a maior divulgação por parte do ministério. O milho é o que mais aparece, com 20 variedades cadastradas.
Culinária resgatada
Também tomam corpo no país algumas iniciativas em prol da recuperação de uma dieta diversificada. Uma delas é a recomendação, pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), de que pelo menos 30% dos recursos federais destinados a merenda, nas escolas públicas da educação básica, sejam empregados na compra de produtos da agricultura familiar – com prioridade para os alimentos regionais. A regra foi estabelecida pela lei 11.947/2009 e abrange 46 milhões de estudantes. “A importância disso está na valorização do patrimônio cultural e da atividade agrícola, e na promoção de uma alimentação saudável, em que produtos mais frescos substituem alimentos industrializados”, afirma Ana Rosa Domingues, professora de gastronomia do Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília (CET/UnB). “Além disso, há a vantagem de manter os recursos no próprio município ou região.”
A fim de contribuir para isso, um projeto do CET/UnB estuda, desde dezembro de 2010, o cardápio de escolas de Mato Grosso do Sul, de Goiás e do Distrito Federal. O grupo de pesquisadores, formado por nutricionistas, antropólogos e gastrônomos, pretende averiguar se a alimentação escolar está se aproximando dos hábitos locais e culturais dos alunos, assim como se está atendendo aos parâmetros nutricionais ditados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Até a primeira quinzena de abril, haviam sido pesquisadas 50 escolas, em seis municípios sul-mato-grossenses. “Observamos alguns casos de merenda com leite e biscoito, uma vez por semana”, conta Ana Rosa. “Não é tão grave, e as crianças pedem muito. Mas sabemos que há lugares em que esse tipo de alimento está presente todos os dias.” Em contraposição, também houve refeições com galinhada e arroz de carreteiro, por exemplo, que são pratos da culinária regional. Note-se que, embora se destine a ter papel suplementar na dieta das crianças e jovens, a merenda acaba muitas vezes sendo a refeição principal do dia.
O movimento internacional Slow Food, presente no Brasil há 12 anos, também tem trabalhado para resgatar a agrobiodiversidade. Entre seus projetos está o das Fortalezas, que apoia alimentos fortemente conectados com o território e a população local e que estejam sob risco de desaparecer. No interior de Goiás, a entidade atuou em prol da castanha de baru, um fruto típico do cerrado, que acabou virando moda na região.
Antes dos anos 1990, poucas pessoas já tinham ouvido falar da iguaria. Agora, é muito comum encontrar em feiras livres e pequenos mercados pão, farinha e macarrão de castanha de baru, assim como a própria noz, que é muito rica nutricionalmente. No total, as Fortalezas somam nove alimentos, como o umbu, fruto típico da caatinga, o arroz vermelho, tradicional da Paraíba, e o feijão canapu, cultivado no Piauí.
Com o suporte do Slow Food, os índios craôs, que resgataram seu milho no banco de sementes da Embrapa de Brasília, também estão cuidando de outro alimento ameaçado: a farinha de batata-doce. O uso do alimento, valioso do ponto de vista cultural e organoléptico, vinha se reduzindo. As razões estavam no desaparecimento de muitas variedades do tubérculo usadas para fazê-lo e no fato de apenas os índios mais idosos conhecerem as formas de preparo. Doze tipos de batata-doce foram, inclusive, resgatadas no banco da Embrapa. “A preservação do conhecimento, por sua vez, passa por valorizar o trabalho daqueles que conservam os alimentos”, afirma Terezinha Dias, mestre em ecologia e pesquisadora do Cenargen, coordenadora do trabalho com os indígenas. “Afinal, eles prestam um serviço à humanidade.”