Postado em 01/10/2012
fotos: Adriana Vichi
O economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, especializado em desenvolvimento econômico, acumula um vasto e variado currículo. Entre outros cargos, Belluzzo foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney), presidente do Conselho Deliberativo do Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnológicos (IPSO), presidente do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e presidente do Palmeiras.
Em entrevista à Revista E, o fundador das Faculdades de Campinas (Facamp), autor de livros como Os Antecedentes da Tormenta (Unesp, 2009) e Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX (Unesp, 2004), fala sobre a educação em meio ao desenvolvimento brasileiro, analisa a “cultura compacta” difundida pela internet e esclarece o papel da televisão pública. “A educação não está preparando os indivíduos. Quando consegue, prepara-os razoavelmente para a vida profissional, mas não para a vida cívica, para a vida do cidadão”, diz. A seguir, trechos.
Você acredita que a sociedade brasileira, do ponto de vista da educação, está preparada para o desenvolvimento em curso no país?
O desenvolvimento social e o econômico estarão muito ligados nos próximos anos. Do meu ponto de vista, essa é exatamente a falha geológica que temos na sociedade. Todo mundo fala da importância da educação, questão que virou uma espécie de refrão para os que se manifestam a respeito de algum problema do Brasil. No entanto, se fala muito e se faz muito pouco em relação a isso.
As novas gerações chegam mal preparadas – sejam elas originárias da escola pública ou da escola privada –, não apenas no sentido da educação formal, até porque muitos alunos chegam à Facamp [Faculdades de Campinas] e têm dificuldades para ler um texto e depois organizar uma exposição em torno do assunto. Têm dificuldades também com matemática e com o manejo da língua, particularmente. Essas coisas não podem ser dissociadas. No fundo é um rebaixamento da capacidade de trabalhar com abstrações e isso é muito prejudicial para o entendimento, para o conhecimento.
Assim, você não tem capacidade de se mover de uma forma mais rica, mais criativa, na sociedade, é muito empobrecedor. Portanto, é necessário um esforço enorme. A gente conhece os alunos e há uma grande dificuldade para que eles comecem a alcançar as metas desejadas.
Como professor, você leva um tempo preparando os alunos para, só depois, começar a ensinar a sua disciplina?
É exatamente isso. Você gasta dois anos para recuperar essa deficiência que o aluno acumulou ao longo do curso secundário. O problema tem origens na família, onde há certo conjunto de valores que foi perdido em favor da ideia de que é preciso a formação a qualquer custo e que isso é possível com pequeno esforço. No entanto, o conhecimento e o preparo profissional e intelectual exigem grande esforço e insistência. Essa história dos talentos natos...
Isso é uma empulhação. Ademais, a educação não está preparando os indivíduos. Quando consegue, prepara-os razoavelmente para a vida profissional, mas não para a vida cívica, para a vida do cidadão.Vamos especificar o que cidadania significa. Tenho a opinião de que a sociedade se move, inexoravelmente, na direção da valorização dos modelos a que a modernidade nos levou, ou seja, são os valores da liberdade, da igualdade e, digamos, da fraternidade.
Essa relação entre esses valores e os indivíduos é hoje muito distante e, além disso, está mediada por uma ideia de que o que vale é o sucesso material. O individualismo norte-americano mostra que o mundo está dividido entre winners [ganhadores] e loosers [perdedores] e isso é uma fratura na vida social e psicológica das pessoas, porque a maioria não é de ganhadores e nem tem cabimento você usar esse critério para classificar as pessoas. Isso tem uma consequência muito ruim.
É uma clivagem muito cruel.
Essa transposição de significados dentro do esporte, por exemplo, é muito forte. Os comentários são os piores possíveis porque as pessoas entraram nessa ideia de que é preciso ganhar a qualquer custo, que a derrota é imperdoável e que não se pode tolerar a fraqueza. Eu já tenho 70 anos e vejo isso como preocupação para os meus filhos e provavelmente para os meus netos por não ser uma sociedade saudável. É uma sociedade doente.
Qual é o efeito negativo dessa valorização da vitória?
É a ética da concorrência que deixa cadáveres estendidos ao longo da estrada, por onde ela passa. Isso tem muito a ver com o predomínio dos projetos neoliberais sobre aquilo que foi construído no pós-guerra, principalmente nas economias centrais, em que havia o peso muito grande da ética da solidariedade. Isso ocorreu após uma catástrofe humana, social e política dos anos de 1930, seguida da Segunda Guerra Mundial. No entanto, essa memória foi se perdendo.
Aqui, nós nunca tivemos muito isso, como no resto do mundo. Voltando à questão da educação, sinto que as pessoas não compreendem o que está acontecendo, mas precisam fazer um esforço e incluir isso no hall daqueles valores que mencionei, que são incontornáveis. O que estamos vendo hoje, ao contrário, é um empobrecimento em todas as dimensões. Eu fico muito assustado com o que vejo na internet, que é um campo minado para o exercício cívico da liberdade. As pessoas se comportam como lobos “hobbesianos” [em referência à máxima do filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), “o homem é lobo do homem”].
É uma afirmação constante de uma individualidade em detrimento de um pensamento coletivo.
Você botou o dedo na ferida: é uma exposição de frustrações. Isso revela o âmago mal socializado dessas pessoas. Elas se colocam como adversárias das outras. Como inimigas, sempre dispostas a dar uma opinião hostil, e isso revela que a tecnologia não consegue resolver esse problema. Todos imaginam que agora, com esse espaço de liberdade que há na web, haverá possibilidade de o homem formar sua opinião de uma maneira mais democrática, mas não é assim.
Como a sociedade não é democrática, os espaços de opiniões são estreitos. Não basta educação. É preciso essa gente avançar no mundo da cultura. Aqui no Brasil, especialmente, e em outros lugares também. Acho que isso está começando a ficar para trás.
O crescimento econômico está sendo muito saudado pela sociedade, mas só direcionado para o consumo. Seria o momento de as autoridades dizerem “esse desenvolvimento seguido não é do consumo, mas de educação e de desenvolvimento cultural”?
Ligar 40 milhões de pessoas no mundo pelo consumo não é necessariamente ruim. Mas se você deixar que isso predomine, como está acontecendo, certamente vamos ter uma sociedade afluente, mas intelectualmente e culturalmente pobre. Acho que a formação do imaginário social nessa sociedade, a despeito de todo o desenvolvimento da internet, se faz pelos meios de comunicação, que não têm nenhum compromisso com esse aperfeiçoamento cultural e moral.
Nós temos hoje no Brasil muito moralismo, mas pouca percepção do que é moral ou ético. Ser moral é você ter compaixão pelo outro, é você reconhecer no outro uma figura diferente, porém da mesma natureza. Ser ético é perceber a igualdade à alteridade e acho que isso está se perdendo.
Nos últimos dez anos, surgiu um olhar diferente sobre a educação, a qual passou a ser um item da nossa agenda social e política. Você acha que isso basta?
Acho que há muito discurso sobre a educação e pouca prática. Antes de fazer a crítica, acho que foram tomadas algumas providências importantes. Por exemplo, posso lhe garantir que o ProUni é uma iniciativa muito importante. Tenho a prova disso na Facamp, na minha faculdade, na minha classe.
Os alunos do ProUni chegam com uma desvantagem em relação aos outros, mas eles aproveitam e se entregam realmente à disciplina do estudo, se esforçam, e muitos deles se tornam os primeiros alunos da classe. Isso comprova que a política de abrir espaço para os que têm uma condição social mais desfavorecida é muito importante porque não há razão para continuar aquele recrutamento das melhores escolas elitistas.
Agora, isso tem que ser transferido também para o ensino médio e para o ensino básico. Não é fácil, mas o governo deveria dedicar mais tempo e mais recurso para resolver o problema da educação. Sou dono de uma escola privada, mas reconheço que ela cumpre um papel complementar. O ensino tem que ser público. Isso é uma conquista republicana.
Temos que criar um espaço em que os estudantes encontrem uma coisa diferente do particularismo da sua família, da sua vida, onde encontrem uma convivência em que estão se relacionando uns com os outros como cidadãos. Eu diria que esse é o princípio da escola pública.
Você se recorda quais eram os seus desejos de vida quando estava começando a vida universitária? Dá para comparar com um garoto de vinte anos para quem você dá aula hoje?
Não. Na minha geração, havia um peso muito grande no sucesso coletivo. Havia uma utopia política, da qual muitos participavam, que objetivava a realização do bem comum. Aquilo estava muito presente nas encíclicas papais, nos projetos socialistas e até mesmo nos projetos liberais autênticos. Isso tudo no Brasil e no mundo foi interrompido em determinado momento. Isso leva ao problema das virtudes pessoais dos protagonistas. Sempre digo que é uma ilusão achar que pelas virtudes e pelas qualidades é possível realizar algo de generoso para o outro.
Além disso, as pressões competitivas eram muito baixas, havia espaço para realizar as coisas. Hoje não dá para falar ao menino: “Você é um darwinista feroz” porque o ambiente mudou. Hoje em dia, por exemplo, vejo nos meninos, mesmo que nas entrelinhas, uma fascinação pela celebridade, o que é uma coisa vazia. A caricatura do sucesso pessoal é a celebridade. Essa fascinação, até dos adolescentes que nem estão na faculdade, conforma um padrão de visão das coisas que não ajuda muito a constituir o consenso em torno de questões básicas.
Você acha que o maniqueísmo de opiniões na atualidade ocorre por conta da mídia?
As pessoas têm liberdade para mudar de canal, mas mudam de canal e continuam na mesma. As pessoas têm liberdade para ler mais de um jornal, mas leem outro jornal da grande mídia e continuam na mesma. Na internet simplesmente se reproduz aquilo que a mídia diz. Veja o caso dos blogueiros.
A gente olha aquilo e pensa “não é possível que as pessoas digam coisas tão idiotas, tão pouco refletidas, tão pouco elaboradas como essa”. Isso rebate, depois, na mídia, que tenta se aproximar do padrão da internet. É um jogo de espelhos. Reduzir o texto, informações muito sucintas. É claro que o resultado disso é que vira um “flaflu” [opiniões contrárias].
Não sei se a sociedade quer ou não discutir, mas é fundamental que se discuta. Isso é uma dimensão importantíssima da vida moderna. Eu não quero que todo mundo leia Sartre, Heidegger ou Hegel, não é isso. Mas é preciso ter padrões culturais minimamente consolidados que permitam que as pessoas discutam mais profundamente as questões que dizem respeito a sua vida. Elas levam pra casa, vão dormir, colocam a cabeça no travesseiro e continuam aquela luta primária entre o “bem” e o “mal”.
Você acha que a mídia brasileira não está gerando subsídios que possibilitem o debate. É uma questão do reflexo da falha da educação ou é uma questão ideológica?
O empobrecimento causado pelo declínio da qualidade da educação dispõe os indivíduos a aceitarem isso. Se eles tivessem uma formação cidadã e cultural um pouco mais aprimorada, eles seriam contra essa coisa ideologizada no mau sentido. Eles teriam uma capacidade de escolha maior e melhor dos veículos que eles consideram adequados para se informar.
Sou contra a ideia de que a grande imprensa vai chegar ao fim e de que isso vai acabar na mão de cada um de nós. A tarefa de avaliar e qualificar a informação é muito complicada e deve ser entregue às pessoas que têm profissionalmente a obrigação de fazê-la. Isso tudo dentro de uma perspectiva de que a verdade factual tem que ser respeitada. Além disso, é preciso dar oportunidade para a opinião e para o debate dentro dos grupos sociais – não essa farsa que temos aqui –, e a opinião tem que ser qualificada pela qualidade profissional das pessoas que vão estendê-la. Não vamos achar que isso pode ser uma farra generalizada.
Você teve experiência como presidente do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que opera a TV Brasil, uma emissora pública. Qual deve ser o papel do exercício de um órgão público de mídia em um país como o Brasil?
A televisão pública não tem que copiar o padrão da TV privada, ela está sendo paga pelo dinheiro do contribuinte, então ela tem que devolver a eles formação, informação, desenvolvimento cultural. Não tem que concorrer, não tem que ficar se orientando pelas pesquisas de audiência. Isso é um erro fatal. Ela tem que manter o seu padrão. Há tempos atrás, a TV Cultura, por exemplo, tinha muita audiência, sem perder o caráter público.
No tempo de Roberto Muylaert, a televisão pública ganhava prêmios e os programas eram atraentes. Não adianta querer competir com a TV privada; às vezes era até melhor se contrapor a ela. A audiência da TV Cultura estava aumentando. Se há um público mais preparado, a TV pública vai ter uma audiência maior. Dessa forma, há uma circularidade no argumento. Como o público é massacrado com a porcaria, ele se acostuma e se torna incapaz de resistir.
Enquanto estava à frente do Palmeiras, as suas palavras eram recebidas quase como ordens, porque abaixo do presidente existe uma legião de “soldados”. Os dirigentes parecem não ter percepção de que conduzem uma coisa pública. O presidente do clube, então, acaba tendo um papel civilizador. Você acredita nisso?
Essa condição de presidente de clube deveria mesmo implicar uma relação de responsabilidade do dirigente em relação aos significados do jogo, do futebol, da disputa, da competição. Agora você se envolve em um ambiente que tem uma ?carga emocional pouco observável em outras situações. É uma experiência limite, eu diria.
Eu mesmo tive esses rompantes emocionais que um dirigente não deveria ter se ele fosse cumprir esse papel “civilizador”, como você diz que ele deveria cumprir. O futebol seria um instrumento muito importante para isso, mas não é porque, ao mesmo tempo em que leva as pessoas ao êxtase, leva também ao cúmulo da agressividade. A mídia nesse caso tem um papel fundamental.
Por exemplo, você diz que isso é uma competição esportiva, o que é verdade, ou é uma meia verdade. Pegue um jornal esportivo qualquer. O que ele faz? Leva ao paroxismo a rivalidade e a oposição dos clubes, porque para ele não é só uma competição esportiva, é um âmbito de realização de certas aspirações. A minha eleição me marcou muito. A torcida estava do lado de fora e me pediram que fosse até lá.
Fiquei muito tocado porque eram meninos jovens, digamos de 14 a vinte e poucos anos, e eles começaram a me agarrar de uma maneira que uma pessoa só agarraria o pai ou a mãe. Isso revela que a torcida organizada preenche uma função que a família não preenche mais, que as outras relações de convivência também não conseguem preencher e isso revela uma dimensão ruim dessa sociedade, porque eles podiam curtir os clubes, gostar e tal de uma maneira muito mais tranquila, mas é aquela coisa ansiosa, parece que aquilo é a única coisa que existe no mundo.
No caso do futebol, é fácil derivar para uma ação física. Por exemplo, quando na saída dos estádios ocorrem aqueles confrontos. Como você vê essa questão da transposição da paixão por um confronto muitas vezes resultando em morte?
Futebol não é só uma competição esportiva. Ele envolve outros processos sociais de identificação, de oposição, ele está funcionando como um catalisador dessas questões. A paixão pelo futebol é generalizada não só no Brasil como no mundo inteiro. Na Copa da Europa também houve incidentes graves, de torcidas se digladiando. Existiria outra forma de manifestação se não existisse o futebol.
O processo civilizatório é muito precário. Na verdade, ele é uma casca que se arranha e, diante de qualquer incidente, pode perder totalmente a capacidade de contenção. O que acontece é que essas rebeliões primárias encontram um veículo para explodir e esse veículo é o futebol. Vejo futebol desde os anos de 1940, desde pequeno.
O futebol era uma forma de manifestação lúdica, até mesmo emocional, mas não tinha essa inclinação a explosões de violência. Isso foi surgindo à medida que a sociedade foi se organizando. Houve o surgimento das torcidas organizadas. Antes, nós assistíamos ao jogo um ao lado do outro. Não existia essa violência e essa necessidade de identificação com o grupo.
“Futebol não é só uma competição esportiva. envolve outros processos sociais de identificação, de oposição, ele está funcionando como um catalisador dessas questões”
“Fico muito assustado com o que vejo na internet, que é um campo minado para o exercício cívico da liberdade. As pessoas se comportam como lobos ‘hobbesianos’”
“É a ética da concorrência que deixa cadáveres estendidos ao longo da estrada, por onde ela passa”
“Temos que criar um espaço em que os estudantes encontrem uma coisa diferente do particularismo da sua família, da sua vida, onde encontrem uma convivência em que estão se relacionando uns com os outros como cidadãos”
::