Postado em 04/05/2012
por Cecilia Prada
A comemoração pelos 75 anos de publicação do romance Angústia derramou-se em notícias ao longo do ano passado nas páginas de suplementos literários e revistas de todo o país. E serviu para, mais uma vez, chamar ao primeiro plano a personalidade ímpar de seu autor, Graciliano Ramos (1892-1953), um dos maiores escritores brasileiros, estrela de nossa prosa de ficção ao lado de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector.
Tido por um bom número de críticos como sua obra-prima maior, Angústia está na realidade inserido harmoniosa e completamente no conjunto de sua produção literária – um sóbrio e notável quadro de oito livros publicados em vida pelo escritor, começando por Caetés, romance lançado em 1933, até Memórias do Cárcere, apresentado no próprio ano de sua morte. São obras que não repetem fórmulas, ao contrário, cada uma delas parte de uma amostragem de estrutura diferente sob um estilo muito pessoal, aliando a objetividade de um olhar penetrante sobre a realidade da paisagem e do homem do nordeste à expressão autobiográfica. Estão incluídas, todas, juntamente com os restantes livros póstumos, de contos, de viagens e de cartas, em um único propósito que seria, como diz o crítico Antonio Candido, “um desejo de testemunhar sobre o homem”. Pois, segundo o próprio escritor, a experiência vivida era a condição básica de sua literatura: “Minhas personagens não são seres idealizados, e sim homens que eu conheci”.
Mistérios de um escritor
Decorridos quase 60 anos da morte do autor, e apesar do grande número de obras de crítica catalogado, algum mistério ainda paira sobre sua singular figura e, por extensão, sobre o entrelaçamento de suas peripécias existenciais com a temática literária que desenvolveu. No ano passado, e somente então, foi publicado um livro capaz de lançar nova luz sobre tais questões: Graciliano – Retrato Fragmentado (Globo, Rio de Janeiro), obra póstuma de Ricardo Ramos (1929-1992). Como filho mais velho do segundo casamento de Graciliano, Ricardo não pôde conviver tanto como desejaria com o pai. Contava sete anos em março de 1936, quando o escritor foi preso em Maceió e transferido para o Rio de Janeiro sob a acusação – nunca formalizada – de ter participado do fracassado levante comunista de 1935.
Graciliano só seria libertado em janeiro de 1937. Embora a família se estabelecesse então definitivamente no Rio, Ricardo, que ficara na casa dos avós, terminaria o curso ginasial em Maceió e só se reuniria de novo aos pais em 1944. Todavia, ele deixou registrados com profusão de detalhes os preciosos anos de uma intimidade com o pai que se manteria até 1953. Uma troca permanente de afeto, partilha de interesses literários, resoluções de problemas cotidianos, desde o momento em que ambos acordavam e começavam a conversar repartindo o espaço do banheiro, um se barbeando, o outro tomando banho. Ricardo, que também se tornaria escritor, foi companheiro constante do pai nas rodas literárias, nos encontros sistemáticos com os amigos, em sua própria casa ou nos locais públicos. Como autores, trocavam experiências, comparavam pontos de vista, enfim, ajudavam-se.
Antes de mais nada Ricardo nega, em sua obra, algumas “inverdades” que corriam sobre o caráter de Graciliano, três aspectos que costumam ser associados com seu perfil psicológico: o de “personagem inteiriça, quase olímpica”, o de “criatura rude, um autodidata que simplesmente teria decidido um dia escrever” e o de um “intelectual cooptado”, que teria se submetido às regras do Estado Novo. Ressalta, igualmente, sua honestidade e imparcialidade como escritor, pois, embora tenha sido sempre homem de esquerda, e até mesmo membro do Partido Comunista a partir de 1945, Mestre Graça – como era carinhosamente chamado pelos amigos – nunca se sujeitou a qualquer tentativa de “patrulhamento” por parte dos companheiros ou dos dirigentes. Resultaram totalmente vãs as muitas tentativas feitas por estes de impor ao escritor, então já famoso, um “realismo socialista” nos moldes do que transformou a literatura soviética em histórica experiência abortada e até mesmo de vetar a publicação de livros que incomodavam o Partido por seu conteúdo crítico, como Memórias do Cárcere ou o relato de sua viagem à União Soviética. Essa resistência provocou inclusive sua classificação, pelos próprios camaradas de ideologia, como escritor de estilo “elaborado e elitista, o oposto do que se considerava simples, acessível às massas”.
Em recente entrevista televisionada, o veterano mestre Antonio Candido revisitou seu próprio livro, Ficção e Confissão, de 1956, ressaltando um fato que ajuda a compreender melhor a obra de Graciliano: ele que sempre, desde a chegada de Getúlio Vargas à cena histórica, fora seu inimigo confesso – o que seria mesmo o motivo determinante de sua prisão – só pôde obter uma pronta aceitação e grande difusão de suas obras justamente pela radical mudança de paradigmas sociais e de cenário cultural representada pela Revolução de 1930.
Realmente, é isso o que se pode depreender da maneira como o primeiro romance de Graciliano, Caetés, foi publicado, já em seus anos maduros. A obra havia sido escrita em suas horas vagas, uma vez que até então ele fizera carreira como jornalista, comerciante e funcionário da administração pública de seu estado, Alagoas, tendo ocupado, de 1928 a 1930, o cargo de prefeito do município de Palmeira dos Índios.
Um editor boêmio
Figura proeminente do cenário cultural daquele período, poeta e editor, Augusto Frederico Schmidt passou à história como o responsável pelo lançamento de vários de nossos maiores escritores, no curto espaço de quatro anos (1930-1934) em que esteve à frente da Schmidt Editora, sucessora da Livraria Católica de Jackson de Figueiredo – comprada por um grupo de intelectuais católicos e entregue a ele para que a administrasse. Foi assim que despontaram, entre outros, José Geraldo Vieira, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, Marques Rebelo e Vinicius de Moraes. Apesar de dirigir uma editora católica, Schmidt manteve um espírito isento e ousado e soube lutar pela independência ideológica de seus autores, contrariando as duas facções em luta acirrada, católicos e comunistas.
Ao lançar, por exemplo, Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933, Schmidt teve de arrostar a ira dos comunistas, “assombrados pela força revolucionária do ensaio inclassificável” (como dizia o próprio Freyre), e os preconceitos dos católicos tradicionais, chefiados por Alceu Amoroso Lima. Já ao publicar a primeira obra de Vinicius de Moraes, viu-se obrigado a provar à maioria dos críticos que se tratava de um poeta importante.
São bem conhecidas as circunstâncias da estreia literária do escritor alagoano. José Américo de Almeida, que na época era ministro do governo Vargas, recebera de Graciliano, naquela oportunidade chefe da municipalidade de Palmeira dos Índios, um relatório tão bem escrito que concluiu: “Este homem deve ter um romance na gaveta”. Tinha. Tratava-se justamente de Caetés, que foi encaminhado a José Américo e por ele remetido a Schmidt. No entanto, o tempo passava sem que o editor se manifestasse. Não por desinteresse, mas, simplesmente, porque perdera os originais – Schmidt era um sujeito “bagunceiro”, um “boêmio nato”. Para felicidade de nós todos, certo dia, transcorrido um ano, o editor reencontrou os originais, que dormitavam no bolso de uma velha capa de chuva.
O segredo que possibilitava à pequena e deficitária editora lançar autores de tanta importância era, além do “faro” de Schmidt para descobrir talentos, a antecipação de um processo comercial hoje amplamente empregado – a chamada “captação de recursos”, que naquele tempo não tinha o amparo de leis de incentivo cultural, mas apenas o interesse genuíno de “patrocinadores”. Ao deixar a pequena editora, Schmidt prosseguiu em sua carreira empresarial, e enriquecendo. Entre outros feitos, ingressou no ramo de supermercados e fundou a Panair do Brasil, empresa de aviação que marcou época em seu tempo. Na pele de jornalista e empreendedor, tornou-se uma das mais influentes figuras políticas no governo de Juscelino Kubitschek.
Um magro convicto
Tanto Graciliano como os demais representantes do ciclo nordestino de sua época foram favorecidos pela curiosidade e pelo estímulo constante de editores como José Olympio e Martins, que, sucedendo-se na disputa por seus livros, passaram à história literária como participantes ativos da criação, por seu empenho pessoal – ao contrário da maioria das casas editoras de hoje, onde a “mercadoria-livro” é o que conta, tudo feito de acordo com critérios exclusivamente mercadológicos. Igualmente favorecidos foram esses autores, e merecidamente, pela fortuna crítica de seus livros. Entre os pensadores que se ocuparam de Mestre Graça desde o início de sua carreira despontam Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux e, principalmente, Antonio Candido, que era capaz de resumir assim seu perfil psicológico: “...escritor sem gorduras, magro convicto, de carnes, de porte, de personalidade e, evidentemente, de estilo literário”.
Álvaro Lins, na introdução a Vidas Secas, situa a originalidade de Graciliano no encontro de duas linhas convergentes, como um homem de seu meio físico e social, mas capaz também de se voltar para a introspecção, a análise, os motivos psicológicos, e de sobrepor ao plano regional da obra o plano universal – expresso em uma linguagem trabalhada, que se diria “clássica”. O livro de Ricardo Ramos dá um testemunho da maneira de escrever do pai – a sobriedade, a precisão da escolha vocabular, o sistemático ato de “cortar a gordura do texto”, a calma da rotina diária: de pijama, sentado à mesa que ficava em seu quarto, escrevia desde cedo até as 11 horas, em letra miúda e regular. O resultado, parco, escandalizaria os hodiernos produtores de sucessos mercadológicos: apenas dez ou 20 linhas manuscritas, a lápis, que, datilografadas, davam no máximo uma página. Diz ainda Ricardo que seu pai mourejou em um trabalho quase braçal, “da crônica ao artigo sobre livros, da revisão de textos às traduções, ganhando a vida por empreitada e se economizando naquilo que considerava fundamental: a sua opinião”. Ele nunca escreveu ou subscreveu aquilo em que não acreditava.
Otto Maria Carpeaux ressalta a “essencialidade” na obra de Graciliano, sua cuidadosa e quase maníaca preocupação com a escolha dos elementos que usava para descrever tanto o mundo físico, geográfico, em que estava inserido – a paisagem do agreste e também a urbana das cidades do nordeste – quanto o mundo interior de suas personagens. Diz o crítico: “O lirismo de Graciliano Ramos é amusical, adinâmico; é estático, sóbrio, clássico, classicista [...] Não quer dissolver o mundo agitado, quer fixá-lo, estabilizá-lo”. Com a autoridade de sua grande cultura europeia, Carpeaux chama a atenção para esse “classicismo experimentador” do autor, reconhecendo que cada um de seus romances é de um tipo diferente e, para analisá-los, serve-se de um referencial estabelecido com vários autores internacionais famosos, romancistas, teóricos de literatura e até filósofos. E conclui afirmando que “todos os romances de Graciliano Ramos são experimentos para acabar com o sonho de angústia que é esta vida”.
Estruturas diferentes
Falando especificamente de Angústia – que ao lado de Vidas Secas constitui um par indiscutível de obras-primas –, ressalta ainda Antonio Candido sua estética expressionista, com a interpenetração de tempos e discursos, repetições fragmentadas, devaneios e alucinações do personagem Luís da Silva – um “pobre-diabo” com algumas pretensões intelectuais, capaz de chegar ao crime frio e calculado pela ruminação constante de suas frustrações, sexuais e sociais.
O livro atingiu em cheio, como salutar raio criativo, o cenário intelectual do país, alcançando também imediatamente o grande público já na ocasião de seu lançamento – justamente no ano em que seu autor esteve preso, 1936. Com ele, Graciliano tomava distância e assumia a dianteira no panorama do ciclo nordestino de romances (ele não se limitava, como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, a descrever “de fora” a realidade de seu meio e do homem).
O substrato de sua literatura foi sua própria vida, seus próprios sentimentos, sofrimentos, frustrações, a constante revolta e luta. Soube colocar-se nas personagens, ou antes extraí-las, vivas, palpitantes, de seu sofrido viver. Diz Candido que o personagem Luís da Silva “é um pouco o resultado do muito que, nele [Graciliano], foi pisado e reprimido”, representando em sua obra “o ponto extremo da ficção, o máximo obtido na conciliação do desejo de desvendar-se com a tendência de reprimir-se”.
Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira, situa igualmente Angústia no limite entre o romance de tensão crítica e o romance intimista: “De um lado a brutalidade da linguagem que degrada os objetos do cotidiano, avilta o rosto contemplado e cria uma atmosfera de mau humor e pesadelo; de outro, a autoanálise, a ‘parada’ que significa o esforço de compreender e de dizer a própria consciência”.
O autor acabaria por resolver esse paradoxo ao lançar-se na parte inteiramente confessional de sua obra, em Infância (de 1945) e Memórias do Cárcere (de 1953). Sua trajetória existencial e literária, portanto, caracteriza-se como rumo ao desvendamento do inconsciente pela via das recordações – os episódios de sua rude criação em uma família de classe média nordestina, pois seu pai foi comerciante, atividade que ele também viria a exercer em determinado período da vida. A violência que retrata, sempre presente nas relações domésticas, na família, na escola, tanto no meio rural como no urbano, é o fundo sobre o qual tece suas obras de ficção. Impactantes e inesquecíveis são alguns dos episódios: a tremenda e injusta surra que leva do pai, aos 4 ou 5 anos de idade, descrita em “Um Cinturão”, publicado em forma de conto no livro Infância; o horror do método de alfabetização forçada por sistemática pancadaria, o habitual tratamento dado às crianças, os “bolos, as chicotadas, os cocorotes e os puxões de orelha”; a expulsão da casa paterna da irmã querida, que se apaixonara indevidamente; a prevalência da lei dos senhores da terra sobre os menos afortunados e os regulares massacres cometidos pelos “cabras” a serviço dos fazendeiros. Um panorama sombrio, tingido de sangue, exposto em suas feridas, em suas perversões – retrato incomparável da vida em sua região, em sua época.
Se no primeiro romance, Caetés, o escritor não dispunha ainda de mestria literária e limitava-se a seguir a trilha dos romances de Eça de Queirós, que muito admirava, e se em 1934, com São Bernardo, já tornava autônoma sua voz, por meio de uma personagem inesquecível, o fazendeiro Paulo Honório, em Vidas Secas (de 1938) ele alcança a síntese estilística, a maturidade plena, e nos dá em quadros precisos, em poucos e relevantes traços, o retrato do sertão castigado, de seus “retirantes”, seres primitivos, inarticulados e analfabetos, incapazes sequer de compreender a realidade em que se acham fixados e que se limitam a seguir, com a conformidade de animais, os ciclos da natureza. Sua estrutura é semelhante à dos retábulos medievais, que narravam feitos de heróis ou da vida dos santos em unidades autônomas, mas integradas em um conjunto – o que levou o espírito brincalhão de Rubem Braga a classificá-lo como “romance desmontável”.
Considerando que a bibliografia sobre o grande autor alagoano é vasta, seria até certo ponto leviano apontar os críticos hoje mais reputados. Todavia, é justo indicar aos leitores efetivamente empenhados em entender o estilo do mestre o livro Estruturas – Ensaio sobre o Romance de Graciliano, um trabalho crítico aprofundado de Rui Mourão, reeditado em 2003 pela Universidade Federal do Paraná.