Postado em 01/11/2012
Criador incompreendido? Tendo como base registros históricos e trabalhos de pesquisadores, é possível afirmar que o dramaturgo Johan August Strindberg não era muito querido pela sociedade sueca durante o auge de sua produção. Reconhecido como grande artista apenas no final da vida, era malvisto no próprio país devido ao teor agressivo de sua escrita, muitas vezes ridicularizando pessoas do alto escalão da sociedade de Estocolmo, capital da Suécia.
Homem de muitos talentos e discurso afiado, também se expressava pela escrita jornalística, pintura e fotografia. E essa multiplicidade de atuação se reflete tanto na intensidade como na quantidade de criação. Nascido em 1849 e morto em 1912 – em decorrência de um câncer de estômago –, em 63 anos de vida, concebeu 64 peças, intercaladas a livros de poemas e artigos jornalísticos escritos quase diariamente.
Certamente, a intensidade é um dos pontos que chamam a atenção de seus admiradores e, em especial, intriga a pesquisadora Nicole Cordery, cujo mestrado, realizado na universidade Sorbonne Nouvelle, na França, teve orientação de Jean-Pierre Sarrazac, dramaturgo e teórico especializado no autor sueco. Ela foi responsável pela curadoria da Mostra Strindberg, em parceria com Flávio Barollo, integrante da Cia. Mamba de Teatro. A mostra foi realizada, entre os meses de setembro e outubro, nas unidades do Sesc Belenzinho, Bom Retiro, Ipiranga e Santo Amaro em homenagem ao centenário de morte do dramaturgo (veja boxe Perto do público).
Exemplo da pluralidade e inquietação de Strindberg é a relação que estabeleceu com a pintura e com a fotografia. “Foi um precursor da fotografia, investigava como retratar o ser humano buscando o detalhe e o realismo, já em sua pintura, preferia uma imagem borrada para que o aspecto psicológico viesse à tona”, afirma Nicole.
Momentos temáticos
A precisão técnica se mesclava à configuração psicológica e conceitual de sua obra teatral, tão vasta que não permite catalogação. Strindberg transitou por diversos momentos temáticos que compuseram a íntegra de sua obra. De acordo com o momento artístico, aflorava o viés expressionista, simbolista ou naturalista, fases pelas quais o artista transitou.
A peça Senhorita Júlia, escrita em 1888, representa a fase naturalista, sendo a peça mais encenada e repercutida internacionalmente. Exemplo recente é a adaptação Júlia, de ?Christiane Jatahy, que com esse trabalho ganhou o Prêmio Shell de Teatro de melhor direção, em 2011. “Já pensei em montar a peça como atriz, interessava-me pelo papel de Júlia, pela potência dos diálogos e o modo de construir as relações, que é muito contemporâneo e revolucionário, transcendendo até a questão do naturalismo”, confessa.
O mesmo texto promoveu o encontro de Ivo Barroso, tradutor do livro Inferno (Hedra Editora, 2010), com Strindberg. A obra apresenta um período emblemático de crises psicológicas e surtos vivenciados pelo dramaturgo, entre 1894 e 1896, quando ele se divorciou da jornalista austríaca Frida Uhl, sua segunda esposa. Nesse tempo, seguiu para Paris a fim de se dedicar a questões místicas, a experimentos científicos e à prática da alquimia.
Para traduzir o livro, cuja versão original está em língua francesa, Ivo Barroso foi para Estocolmo e conheceu o museu dedicado ao artista, localizado na casa em que morou no final da vida, conhecida como torre azul. “O primeiro contato com ele é um choque, pois a linguagem é totalmente divergente da que conhecíamos no campo do teatro”, diz Ivo. “A primeira cena de Inferno é a despedida entre ele e a esposa, reproduzida com grande alegria, como se a mandasse para outro mundo. O que na verdade é uma alegria fictícia, porque essa é uma fase muito difícil, tanto na esfera pessoal quanto na financeira.”
Um trecho do livro aponta ao desgaste de Strindberg em relação ao teatro: “Uma peça minha fora encenada num teatro de Paris, ideal de todos os meus contemporâneos, mas que até então apenas eu havia concretizado. No entanto, o teatro agora me parecia repelente, como tudo aquilo que se consegue conquistar, e a ciência começava a atrair-me.”
Para Nicole, esse sentimento diz respeito ao momento em que ele parou de atuar como dramaturgo e tratava o teatro como a arte mais superficial que existia, provocando a sensação de que as pessoas não entenderiam o que ele estava tentando exprimir artisticamente. Desse contexto nasceu o isolamento e a busca científica. “Por esse motivo, dependendo da época e da fase, ele pode ser considerado outro ser humano, portanto, outro autor”, explica a pesquisadora.
“Alguns o classificaram como misógino, evidenciando seu desprezo pelas mulheres, mas houve uma fase em que ele foi totalmente feminista.” A decepção com as mulheres provocou a mudança de pensamento, endurecendo o seu olhar sobre o universo feminino. “Depois de encerrada a crise Inferno, Strindberg voltou a escrever, por opção pessoal e necessidade financeira”, acrescenta.
O chamado período Inferno se completa e se encerra em outro romance autobiográfico: Lendas, que aborda a volta à normalidade em tom de redenção. Já em 1898 retorna à Suécia e dedica-se às peças Rumo a Damasco I e Rumo a Damasco II, que evidenciaram sua nova fase dramatúrgica, sendo o ponto de partida para o teatro expressionista do século 20.
A feitura de novas peças se intensifica, com os dramas históricos Erik XIV e A Saga dos Folkugans. Entre uma atividade e outra, em 1900, conhece a atriz norueguesa Harriet Bosse. O casamento acontece no ano seguinte, mas a exemplo dos relacionamentos anteriores, o primeiro em 1877, com a aspirante a atriz finlandesa Siri van Essen, e o segundo, com Frida Uhl, dura pouco e os dois se divorciam em 1904.
Em decorrência de mais uma decepção amorosa, buscando eclipsar a solidão em que se encontrava, compõe a narrativa Ensam, que significa só, em sueco. Devido à tradução, o texto é conhecido, em português, como autobiografia Só.
Novo teatro
Em contrapartida à vida afetiva, alcança sucesso na fundação do seu teatro na Suécia, o Intima Teatern ou Teatro Íntimo, com o diretor August Falck. Aliás, estreitar os laços do público com a encenação teatral era uma de suas preocupações. Sustentava a ideia do teatro íntimo, justificando que gostaria de colocar os espectadores dentro de uma sala bem próximos uns aos outros e ao que estava acontecendo no palco.
Isso representa uma grande mudança na estruturação do teatro. “Strindberg pensa nisso como uma proposição de encenação, com as peças sendo feitas em espaços não convencionais, mudando o ponto de vista do espectador”, explica Christiane Jatahy. A diretora buscou essa essência ao usar o espaço do Sesc Belenzinho, onde foi possível “deixar o público próximo dos atores, visualizando-os de forma inteira e próxima, o que confere a ideia do teatro mínimo, permitindo reações vivas, como se quisessem comentar o que estão vendo”.
A obra de Strindberg oferece várias formas de entendimento, englobando aspectos diferentes de um autor que não desenvolveu um método de atuação, mas garante sua força no texto. Uma peça que exemplifica esse pensamento é O Sonho. Nela, o dramaturgo diz que não existe tempo ou espaço, que tudo é um sonho.
Considerado o pai do drama moderno, no qual ocorre o rompimento da narrativa coerente e linear e as histórias são contadas por meio de fragmentos, desvinculadas do princípio da causa e consequência, constrói um trabalho inovador e com ares libertadores. Tanto que criou uma linha sucessória, influenciando jovens dramaturgos com sua dinâmica.
Na opinião de Nicole, um acontecimento capaz de exprimir a relevância de Strindberg e sua importância para os jovens artistas e intelectuais da época é o do Prêmio Anti-Nobel. Em 1909, quando estava com 60 anos, houve a nomeação para o Prêmio Nobel de Literatura, que foi concedido à sueca Selma Lagerlöf.
Então, para fazer frente ao desprezo da academia, Strindberg foi agraciado pela sociedade sueca de jovens estudantes, que organizou a versão Anti-Nobel e concedeu a Strindberg esse título sem precedentes na história. “Hoje, podemos afirmar que ele é totalmente aceito e, no centenário de sua morte, as peças estão sendo montadas no mundo inteiro”, enfatiza Nicole. “Strindberg revolucionou a linguagem teatral, introduzindo no século 19 o que seria o século 20.”
Perto do público
Releituras da obra de Strindberg homenageiam o dramaturgo no centenário de sua morte
Remontagens de peças, montagens inéditas, vivências, instalação, leituras dramáticas e debates. Esse conjunto de atrações em cartaz durante os meses de setembro e outubro, nas unidades do Sesc, foi idealizado para homenagear a vida e a obra de Johan August Strindberg (1849-1912).
Com curadoria da pesquisadora Nicole Cordery, em parceria com Flávio Barollo, integrante da Cia. Mamba de Teatro, a Mostra Strinberg foi destaque na programação do Sesc Belenzinho, Bom Retiro, Ipiranga e Santo Amaro e levou ao público parte da obra do dramaturgo sueco, que ainda é visto como um ícone do teatro moderno, 100 anos após a sua morte.
Segundo a técnica de programação da unidade Bom Retiro Elizabeth Brait Alvim a proposta foi construída em conjunto entre as unidades que receberam a mostra, dentro da missão privilegiada pelo Sesc. “Foram exibidos vídeos antes de alguns espetáculos, como uma complementação de informação e de compreensão da linguagem artística, um aquecimento para a sensibilização do espectador”, destaca.
Outro destaque apontado por Elizabeth foi a montagem de A Noite das Tríbades, do escritor e dramaturgo sueco Per Olov Enquist, realizada pelo grupo TAPA e coordenada pelo diretor Eduardo Tolentino. A peça é inédita no Brasil e relembra acontecimentos profissionais e pessoais de Strindberg, como o período em que ele e sua ex-mulher, Siri van Essen, ensaiaram a peça A Mais Forte.
“Além de ser inédito, é interessante por tratar da vida de Strindberg, apresentar aspectos profissionais e pessoais a partir de um momento da vida do casal, sobretudo porque ele é um artista que se autorretrata, sendo um personagem contemporâneo e rico de análises.”
No Sesc Belenzinho foi apresentada a releitura da peça Senhorita Júlia, com direção de Christiane Jatahy. No Sesc Ipiranga houve a encenação de Brincando com Fogo, uma das raras comédias de Strindberg, em releitura feita pela Cia. Mamba, com direção de Nelson Baskerville e leituras de outros textos do autor.
Ainda houve espaço para a instalação Oito Gabinetes para Desconstruir, do artista Julio Dojcsar, no Sesc Santo Amaro. Em ambientes chamados espaços em tempos de memória, os visitantes puderam entrar em contado com o imaginário do dramaturgo. Escrivaninhas antigas foram tomadas como suporte para se referir a cada universo cênico e simbólico das oito peças-chave de cada fase de Strindberg.
Peças emblemáticas
Obras ajudam a entender o universo do autor
Senhorita Júlia (1888)
Drama sobre a jovem Júlia, que se apaixona pelo empregado da casa. A narrativa acontece em uma única noite, problematizando as diferenças entre as classes sociais e entre os gêneros masculino e feminino, que se dão por meio de uma relação de poder.
Rumo a Damasco I (1898)
Drama expressionista, a peça relaciona-se com a crise pessoal do autor, conhecida como “inferno”. Representa um marco e uma nova fase em sua dramaturgia. Na narrativa, dois desconhecidos seguem juntos um caminho rumo a descobertas e entendimento sobre si mesmos. Embora tenha escrito Rumo a Damasco II, Rumo a Damasco I é considerada sua obra-prima, com relevante projeção internacional.
O Sonho (1901)
Tentativa de imitação e representação lógica de um sonho, que tem como centro a vinda de Agnes, filha da deusa Indra, a Terra. Agnes tem a curiosidade de saber como vivem os seres humanos e mergulha em situações absurdas, experimentando as alegrias e as dores terrenas.
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