Postado em 01/11/2012
Docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Amálio Pinheiro é especializado em literatura hispano-americana, mestre em literatura e doutor em comunicação e semiótica. Pinheiro publicou o livro O Meio e a Mestiçagem (Editora Estação das Letras, 2009), reflexo de seus estudos sobre comunicação e cultura, com foco em barroco e mestiçagem, além das pesquisas relacionadas a cultura e ambientes midiáticos.
Em conversa com a Revista E, fez uma síntese de suas reflexões acerca da formação e da situação vigente da múltipla constituição cultural brasileira e da América Latina. “Não quero dizer que os sujeitos não influenciam a cultura, mas ela é um dispositivo inteligente; por mais que esteja sufocada por análises de época, a cultura consegue fazer algo que não era previsto, justamente por causa das contribuições provenientes de várias civilizações”, afirmou. A seguir, trechos.
Início pela poesia
Comecei na área de poesia, o que me fez, posteriormente, ser professor de pós-graduação. Como leitor de poesia e tradutor, aprendi que as coisas se dão de maneira microscópica, nos interstícios de coisas maiores, esse é o grande aprendizado que a poesia me ofereceu. Comecei a perceber e a me interessar por esse painel microscópico e móvel em todas as coisas, notei que a cultura se compunha de textos que funcionavam como poesia.
O poeta cubano José Lezama Lima (1910-1976) disse algo interessante, quando foi convidado a prefaciar uma antologia de poetas daquele país: “Os nossos primeiros poetas eram prateiros e doceiros”. Isso me chamou a atenção porque existe nas práticas culturais diversas uma arte anônima e coletiva que se inscreve com elementos diversos nas variadas produções da cultura, culinária, estamparia, joalheria, arquitetura. Isso depois vai passando para as mídias, rádio, TV, cinema, inclusive pode ser retrabalhado no mundo telemático das mídias sociais.
Consequências para o conhecimento
Isso traz consequências para o conhecimento, porque se um objeto contém a contribuição variada de todas as civilizações que passaram pelo Brasil e América Latina, esse objeto não pode ser analisado como algo antigo ou novo, antigo ou moderno, ou pós-moderno, não pode ser analisado a partir da época.
E essa é uma tendência forte no território das artes. Por exemplo, imaginar que algo antigo vai ficando moderno, num viés evolucionista, fundado na ideia de progresso, no que há várias questões graves. Claro que o ponto de partida contrário, de imaginar que o antigo é melhor, seria igualmente equivocado. É a partir dessa ideia da contribuição múltipla que se supera a noção diante do antigo ou moderno.
Produção atemporal
A ideia de uma produção cultural que não é classificada temporalmente nasce de certa preguiça, em frases que fazem referência aos tempos de pós-modernidade. Podemos classificar essa postura como uma espécie de preguiça mental.
Para fugir da complexidade, a pessoa prefere frases feitas desta frágil atualidade. Evidentemente que a cultura tem necessidade de escavações, porque o que está na superfície e aparece nas mídias, constituindo a opinião geral, é justamente o que deve ser evitado. Isso cria uma dificuldade analítica, que devemos enfrentar. Também não podemos afirmar que a cultura só é feita por sujeitos, normalmente imaginamos que a cultura é produzida por indivíduos e a relacionamos a setores de produção dominados por sujeitos.
Não quero dizer que os sujeitos não influenciam a cultura, mas ela é um dispositivo inteligente; por mais que esteja sufocada por análises de época, a cultura consegue fazer algo que não era previsto, justamente por causa das contribuições provenientes de várias civilizações. Isso é importante para o Brasil e a América Latina e o que mais me interessa, porque somos uma cultura ainda não compreendida, porque pertencemos a um setor cognitivo do mundo que foi abandonado por muito tempo. Confunde-se a ideia de ainda sermos uma indagação com a ideia de sermos errados.
Equívoco da identidade e da diferença
Pertencemos a uma cultura que não pode ser analisada a partir da identidade e da diferença, porque ela não tem identidade e é feita da contribuição de inúmeras práticas que estão em estado de marchetaria móvel num processo de inclusão das diferenças [a palavra “marchetaria” é emprestada do escritor cubano Severo Sarduy (1937-1993), que associa esse trabalho ao ofício do escritor]. O mero reconhecimento das diferenças é inócuo, é o que se tenta fazer nos Estados Unidos. Dizer algo como “Preciso respeitar as diferenças” significa que não conseguirei agir assim. A questão é o outro, o diferente que está dentro de você. Não posso fazer teoria da cultura a partir disso, pois nossas culturas são feitas de contribuições múltiplas.
Alteridades múltiplas
Pensem no tango, que nasceu em prostíbulos, o samba, a salsa, todos os grandes ritmos nasceram da capacidade que a periferia tem, pois a periferia é o local das alteridades múltiplas. Onde as pessoas são mais parecidas? Na classe média. Gilberto Freyre [1900-1987, sociólogo, antropólogo e escritor pernambucano] chamava a classe média de o lugar de rotarianos de todos os tipos, designação que escolheu para falar dessa adesão a normas que tendem à permanência e aparecem na sua fala, dessas fatias de poder terminológicas, nas quais a pessoa fala do jeito que a televisão propõe.
A classe média produz a ideologia mais repetitiva em todos os setores de produção. E a maioria de nós é classe média, mais um motivo para falarmos mal dela. Devemos fazer ciência a partir do lugar no qual estamos situados.
Correção do passado
Uma tendência dos intelectuais da América Latina era não saber o que a região era. Muitos dos nossos grandes intelectuais e escritores não sabiam enfrentar isso direito. Eram positivistas, formados na ideia de que a sociedade caminhava de momentos inferiores para superiores. Por exemplo, o escritor Monteiro Lobato (1882-1948) considerava o caboclo inferior. Já o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (1951) escreveu o artigo intitulado No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é, ou seja, quem não quer ser, pois tudo passa pela contribuição indígena.
Linguagem criativa da periferia
Não tenho posição pessimista nem pratico ufanismo tecnológico com relação às mídias digitais. A ideia da marchetaria serve para mostrar que a tendência de praticar a confluência de vozes diversas já estava na nossa cultura, não foi trazida pela internet. Os meios digitais se formam pelas relações ideológicas que constituem os indivíduos junto com as mídias digitais.
Foi feita uma pesquisa recente nos Estados Unidos com adolescentes de 10 a 17 anos e se constatou que eles não sabiam qual foi a localidade atingida pelo furacão Katrina, em 2005. No caso, a cidade norte-americana de Nova Orleans. Então, as pessoas acessam informações do mundo todo, mas, na verdade, não fazem trocas culturais.
“Pertencemos a uma cultura que não pode ser analisada a partir da identidade e da diferença, porque ela não tem identidade e é feita da contribuição de inúmeras práticas”
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