Postado em 01/11/2012
Gonçalo Tavares vê na força da língua e da disciplina uma das chaves para a produção literária. Essa vertente do pensamento do escritor português foi explorada em sua passagem por São Paulo no mês de setembro para participar do projeto Sempre um Papo, encontro entre escritores e admiradores da literatura que acontece no Sesc Vila Mariana. A qualidade de suas publicações é reconhecida pelo público e pela crítica. No ano de 2005 recebeu o Prêmio José Saramago e Portugal Telecom pelo romance Jerusalém e, em 2011, ficou em segundo lugar com a epopeia Uma Viagem à Índia.
Tendo publicado mais de 20 livros em uma década de carreira, sua obra foi amplamente traduzida e distribuída em 35 países. No depoimento a seguir, Tavares aponta o que deve melhorar para que a literatura brasileira e a portuguesa fortaleçam seus laços e reforça o prazer que sente em ver suas narrativas adaptadas para outras linguagens artísticas, como o teatro e artes plásticas: “Acho que uma das coisas mais extraordinárias que podem acontecer é estabelecer o diálogo entre as artes”.
Disciplina criativa e premiada
Normalmente escrevo de manhã, tento reservar todas as manhãs para a leitura e escrita e, nesse sentido, o ponto de partida é a disciplina. Não se consegue escrever sem disciplina. Há dias em que escrevo 20, 30 páginas, dias em que não escrevo muito, mas é preciso tentar todos os dias.
Eu costumo escrever muito rápido e às vezes demora meses ou anos para que eu volte a rever o que escrevi. No caso de Uma Viagem à Índia, escrevi em 2003 e foi publicado posteriormente, em 2012. Eu demoro e gosto de guardar o livro por algum tempo.
Os prêmios que eu ganhei não modificaram a relação com a literatura ou escrita. A única coisa importante é sentar, ler e escrever. Quando é bom ficamos contentes, mas no dia seguinte voltamos a escrever. A disciplina faz parte disso também.
Literatura encenada
Acho que uma das coisas mais extraordinárias que podem acontecer é estabelecer o diálogo entre as artes. Meus livros já foram inspirações para pinturas e outras manifestações. A ideia não é que respeitem o conteúdo do livro, mas que façam uma boa obra, seja ela uma peça ou um filme. Isso eu considero importante.
Da minha parte, o que me agrada é que do livro saem outras obras artísticas que não dependem dele, que são autônomas.
Por exemplo, são muitas as traduções feitas dos meus livros em outros países e é impossível acompanhar de perto. Por outro lado, não domino parte das línguas. A minha preocupação é sempre responder às dúvidas dos tradutores, dúvidas relacionadas ao português. Uma das melhores coisas que podem acontecer a um escritor é ser lido em línguas completamente diferentes.
Porém, no caso da literatura portuguesa e brasileira, acho que a relação está melhor em termos de edição e lançamento do que estava há cinco ou dez anos. Começam a aparecer muitos autores brasileiros lançados em Portugal e muitos autores portugueses editados no Brasil. Agora, infelizmente, está longe do ideal. Há muitos escritores portugueses e brasileiros de qualidade que não participam desse intercâmbio.
Não entendo como não há editoras que assumam a língua portuguesa como um centro e não como um país. A edição deve ser feita não para o Brasil ou para Portugal, mas para a língua portuguesa. O lançamento dos livros deveria acontecer ao mesmo tempo nos dois países, o que é bastante comum na língua espanhola, mas nós não conseguimos realizar esse processo de forma satisfatória em termos de língua.
Normalmente quando um livro é lançado na Espanha ocorre o mesmo na Argentina e em quase todos os países da língua espanhola. Na língua portuguesa não existe isso.
Livros e tecnologia
Acho o livro clássico uma invenção extraordinária e não vale a pena transformar o que já tem uma forma definitiva. É como querer aperfeiçoar a roda: se alguém tiver a intenção de fazer isso, irá falhar. O livro tem várias características específicas, a central é a concentração. Não haver links nos livros parece uma falha, pois não há ligações externas ao texto, mas esse é um aspecto essencial do livro que se deve manter. A ausência dos links faz com que a pessoa fique concentrada no objeto, que tenha um único centro. É isso que se perde quando você está lendo sobre Napoleão e aparece um link com a biografia dele.
A capacidade de estar com um único centro por várias horas não é nada especial. Faz parte do ser humano desde as civilizações mais antigas. A concentração nos possibilita coisas que a dispersão não alcança. Há ideias e pensamentos que só aparecem se nós estivermos concentrados.
Os livros eletrônicos destroem a lógica do livro, que é termos diante de nós um só objeto. Já se estivermos tratando de um livro eletrônico com a estrutura do livro clássico, não vejo problemas. A tecnologia é uma linha reta. É o iPad 4, 5, 6.
O que me aflige nessa opção tecnológica é precisamente o domínio exercido por ela em todos os meios intelectuais, não sendo nada que acrescente sensatez, ou seja, tudo que a tecnologia acrescenta são valores relacionados à velocidade e basicamente associa-se a chegar mais rápido como uma coisa boa. Toda a lógica do século 21 se baseia na ideia de que ser mais rápido é melhor, mas às vezes é melhor ser mais lento. A velocidade e a lentidão não são valores por si só.
Nós só podemos ser mais sensatos se a cada dia aumentarmos a nossa lucidez. Sinto que há um ritmo de vida no qual a pessoa faz atividades e não aproveita o melhor delas. E, nesse aspecto, a tecnologia é uma das coisas mais distrativas, porque nos dá a ilusão de que estamos a perceber algo, mas não estamos. Por exemplo, se ontem eu li um texto ou tive uma boa conversa, isso irá se refletir em mim. Acho que é uma obrigação moral estar mais inteligente no fim do dia.
“Toda a lógica do século 21 se baseia na ideia de que ser mais rápido é melhor, mas às vezes é melhor ser mais lento”
::