Postado em 05/11/2012
por José Paulo Borges
“Tá tudo se acabando.” É assim que a agricultora Luzia Ferreira dos Santos resume a situação enfrentada há meses por ela e pelas 35 famílias da comunidade de Lagoinha, na zona rural do município de Casa Nova, nos fundões do sertão da Bahia, a 570 quilômetros de Salvador e em pleno Polígono das Secas – território reconhecido pela legislação como sujeito a períodos críticos e estiagens prolongadas. E o que se vê da porta da casa de Luzia, no semiárido sertanejo, epicentro da pior seca dos últimos 30 anos, não é mesmo de animar. Terra ressequida, árvores secas, retorcidas, com os galhos parecendo fantasmas; boa parte da criação passando necessidade; e a safra, principalmente da mandioca, perdida. E nem o menor sinal de chuva. Só o vento seco batendo forte na cumeeira da casa simples, entrando pela porta da frente e saindo pela dos fundos.
“A lagoa de onde a gente tirava água pra criação secou. Já perdi ovelha, porco e cabra”, diz a sertaneja. “Quando chove, Lagoinha é o melhor lugar pra se viver. Por causa da seca, tem gente indo embora pra Casa Nova, até mesmo pra trabalhar em residências de família. Mas eu não saio daqui de jeito nenhum”, diz Luzia. Situado às margens do rio São Francisco, o município baiano de Casa Nova tem uma população de pouco mais de 60 mil habitantes. De pouca conversa, Luzia disfarça a timidez sorrindo muito. “Apesar de tudo, eu canto, danço, pulo. Não adianta ficar triste”, confessa, sem tirar o sorriso do rosto magro.
Perto dali, na comunidade de Melancia, o vaqueiro Jorge da Rocha, o Jorjão, concorda com Luzia. “A seca tá medonha, tem muito bicho se acabando de fome. Nos meus 76 anos de vida, nunca vi coisa igual”. O vaqueiro não se conforma com o que chama de “descaso” dos políticos em relação aos sertanejos pobres, justamente os que mais sofrem com a estiagem. “Quando é pra abrir um poço artesiano, eles cavam, mas só na terra dos ricos. Os pobres são sempre esquecidos.” Jorjão é um crítico ácido de um costume, segundo acusa, arraigado entre as autoridades locais: a manipulação da ajuda às vítimas da seca para atender apenas aos que são “do grupo deles”. Ele se queixa de que as máquinas que limpam as aguadas (poços onde se acumula água durante o período chuvoso) só entram nas terras de quem é “amigo” do vereador ou do prefeito. “Não aceito isso. Desse jeito, quando chover, quem não tiver a aguada limpa não vai poder aproveitar a chuva”, reclama.
Vaqueiro de mão-cheia, desses que conseguem identificar a rês só de acompanhar o rastro dela na areia, Jorjão lembra perfeitamente a data da última chuva boa que caiu por aquelas bandas. Foi no dia 28 de outubro do ano passado. A água que veio do céu, acumulada nas cisternas usadas no consumo da família e para matar a sede dos animais, durou até julho passado. Depois, só umas chuvinhas esparsas. Por causa disso, já tem gente dependendo da água trazida em carros-pipa. Para espantar de vez essa seca, o vaqueiro e as 45 famílias da comunidade esperam, com muita fé, que até dezembro chova. Estão esperançosos porque já houve um bom sinal: os mais antigos dizem que, se as cinzas da fogueira em comemoração a São João forem apagadas pela chuva, por mais fraca que ela seja, é sinal de que logo vem chuva da boa. E foi o que aconteceu no dia do santo, em junho passado. É verdade que foi só uma garoa, mas suficiente para “lavar” as cinzas da fogueira.
Quem também não vê a hora da chegada desse dia é o lavrador Petronildo Joaquim Rodrigues, da comunidade de Buenos Aires, na cidade de Petrolina (PE), a 800 quilômetros de Recife. Até lá, ele e a família – mulher e três meninos pequenos – acreditam que já estarão residindo na casa de alvenaria que ergueu praticamente sozinho, perto da casinha de taipa onde moram há um bom tempo. Petronildo tem certeza de que a nova residência vai resistir às chuvas e os cupins não terão vez por causa do óleo queimado que passou em todo o madeiramento do teto. “O melhor vai ser a energia elétrica, que chega por esses dias”, alegra-se. Petronildo já perdeu a conta das vezes em que teve de pular da cama, de madrugada, para correr até o curral a fim de socorrer alguma rês que, enfraquecida por causa da alimentação com pouca “sustança”, prostrou-se no chão. “Se a gente deixar ela caída, é morte na certa. Aí eu ia ter um prejuízo e tanto”, explica, enquanto a mulher dele, Ana, prepara um bom café caseiro no fogão de barro que fica aceso o dia inteiro. “Graças a Deus, ainda não perdi nenhum animal, nem tive que prender no ‘moitão’ aqueles que se esborracharam no chão”, enfatiza. “Moitão” é uma espécie de muleta rústica que ajuda a manter de pé a rês.
Mesmo assim, Petronildo não esconde sua preocupação com relação ao futuro de seu rebanho de poucas cabeças: “A palma que alimenta o gado na seca está acabando”. O jeito, segundo o lavrador, tem sido substituir a palma pelo mandacaru triturado ou, então, oferecê-lo aos animais sem os espinhos. “Se até o fim do ano não cair água, não sei como vai ser.”
Festa da mandioca
Apesar de tudo, o atraso da chuva ainda não conseguiu espantar a esperança e a alegria do nordestino. Mesmo com a safra quase inexistente, o pessoal da comunidade de Melancia fez questão de comemorar, no dia 8 de setembro, a tradicional Festa da Mandioca. Durante o dia, vaqueiros da região mostraram suas habilidades. A animação maior, porém, foi à noite. Primeiro, houve a dança de São Gonçalo – cerimônia festiva que leva o nome de um santo alegre e farrista, com fama de casamenteiro –, tradição que vem da época do descobrimento. Depois, foi a vez do “samba de veio”, ritmo frenético originado na ilha de Massangano, no Rio São Francisco, divisa da Bahia com Pernambuco, que misturou sons indígenas com o batuque de negros quilombolas. Em seguida, centenas de participantes vindos das comunidades de Atoleiro, Lagoinha, Boa Vista, Lagoa da Chave e até de municípios vizinhos, vestindo suas melhores roupas, se esbaldaram até o dia amanhecer ao som do forró eletrônico de bandas como a de Adãozinho do Acordeon e a de Vanderlei do Nordeste.
A festa aconteceu num calçadão de cimento com cerca de 200 metros quadrados de área. Na época da chuva, o local serve para captar até 300 milímetros de água, o suficiente para abastecer por um bom tempo uma cisterna de 52 mil litros especialmente construída para matar a sede da criação e irrigar plantas e hortaliças. O calçadão também é usado na secagem de grãos, como feijão e milho, e para a raspagem da mandioca que será transformada em forragem animal. Foi uma festa e tanto, e não é preciso dizer que, naquela noite, ninguém falou em seca nem se lembrou dela.
No vale do rio Vaza-Barris, no município baiano de Canudos, a 350 quilômetros de Salvador, a secura da caatinga esconde um tesouro que o lavrador Raimundo Dantas dos Santos acessa sem muito esforço. Basta ele girar a roda metálica de uma bomba rústica e logo brota água boa, limpa e cristalina das profundezas da terra ressequida. Não demora muito, o bebedouro está cheio. Bodes e cabras que se escondiam na mata aparecem de supetão, e num instante saciam a sede.
Sentado num toco de árvore, à sombra rala de um pé de favela – espécie vegetal comum por aquelas paragens –, o agricultor e líder comunitário José Adelson Matos Alves explica: “Aqui, no sítio de Raimundo, não se sofre tanto com essa seca por causa da bomba d’água popular, ou BDP, como nos referimos à engenhoca. É uma tecnologia simples, que não requer energia elétrica nem combustível para extrair água do subsolo. Só um bom prato de feijão”, brinca, referindo-se à força que Raimundo tem de fazer para acionar a bomba.
Não fosse a persistência de Raimundo e dos vizinhos, que se beneficiam da BDP, as pessoas do lugar estariam na dependência da água fornecida por carros-pipa. Acontece que a perfuração do poço foi feita por uma empresa do governo, mas a bomba não tinha sido instalada, uma vez que, com a vazão registrada, de 800 litros de água por hora, pensava-se que seria inútil. “Os técnicos do governo afirmaram que só compensava com uma vazão de mil litros por hora, no mínimo”, conta Raimundo. Orientados por técnicos do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), uma organização não governamental de Juazeiro (BA), eles instalaram a bomba, e a água continua jorrando até hoje. “Enquanto muita gente por perto vive se queixando da seca e é obrigada a consumir água muitas vezes contaminada dos carros-pipa, temos aqui água boa pelo tempo que durar a seca”, diz Raimundo.
Não muito longe, no Sítio do Tomaz, o agricultor Afonso Almeida da Silva é outro exemplo de que, por mais improvável que isso pareça, é possível preparar-se para tempos melhores, a despeito da seca. Num aposento meio apertado, ao lado da casa, Afonso guarda com cuidado um tesouro que, para ele, não tem dinheiro que pague: o banco comunitário de sementes. Lá estão preservadas, dentro de garrafas pet, sementes de sorgo, andu, melancia forrageira, feijão e outras culturas usadas tanto na alimentação das pessoas quanto na dos animais. São essas sementes que um dia, quando voltar a chover, vão garantir o plantio e a colheita. Por isso, ninguém mexe nelas. Num momento de seca brava como a atual o banco comunitário é uma espécie de fundo de garantia. Cada família toma emprestada determinada quantidade de sementes e se compromete a fazer a devolução do mesmo tanto depois da colheita.
Barragem subterrânea
Silva reserva outra surpresa a quem chega ao Sítio do Tomaz. Dividindo a mesma área veem-se, lado a lado, a terra seca e um terreno fértil. O segredo está escondido num local debaixo do chão. Uma barragem subterrânea de 100 metros de comprimento por 2,20 de altura, protegida por uma lona impermeável, armazena água de chuvas caídas antes da seca. Como não sofre os efeitos do sol forte, a evaporação não se faz sentir. “Quem tem um depósito subterrâneo como este consegue plantar e produzir não só no período de chuvas, mas também em épocas de estiagem forte”, destaca Silva.
A seca que castiga os sertões nordestinos, produzindo efeitos negativos em todas as direções, não tem nada de inusitado. É um fenômeno previsto de longa data por um estudo do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE) de São José dos Campos, denominado “Prognóstico do Tempo a Longo Prazo”. A afirmação é do engenheiro Manoel Bomfim Ribeiro, especialista em recursos hídricos e ex-diretor do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs). “O trabalho se baseia em interpolações e pesquisas fundamentadas no histórico de chuvas da região nordeste, que mostram que a cada 26 anos ocorre uma grande seca, como aconteceu no período de 1979 a 1984”, afirma.
Naquela época, segundo Ribeiro, o Dnocs e outros órgãos de estados nordestinos receberam relatórios sigilosos com análises e alertas a respeito do que iria ocorrer. “Por curiosidade, fiz uma regressão com o perfil senoidal das secas registradas desde a chegada de Tomé de Sousa ao Brasil e a coincidência foi magistral. A cada 26 anos, a curva senoide entra no seu ramo descendente, apontando exatamente as secas ocorridas na região em séculos passados. Não é uma equação, é um modelo que pode sofrer alterações nas datas presumidas das secas, para mais ou para menos”, esclarece o engenheiro. Ele acredita que a seca atual, sobretudo no estado da Bahia, deve durar até o fim de 2013.
As chuvas na região da estiagem normalmente desabam de dezembro a abril. Quando elas não chegam até março, é sinal de que haverá seca. É justamente o que está acontecendo agora. Muitas vezes fica sem chover dois ou três anos. Em casos excepcionais, a falta de chuva pode durar até cinco anos, como ocorreu de 1979 a 1984.
Ribeiro faz questão porém de salientar que a seca não é uma fatalidade nem motivo para reservar ao nordeste o eterno papel de primo pobre do Brasil. “Temos um semiárido prenhe de riquezas naturais. A caatinga, com suas 922 espécies botânicas, é um bioma único no mundo. Essa grande área mantém ainda uma variada vegetação xerófila [ou seja, de climas secos], que representa verdadeiro baluarte contra a desertificação, devido à sua intensa inflorescência para a perpetuação das espécies”, explica. Essa diversidade natural, se bem utilizada, segundo Ribeiro, poderia estimular o desenvolvimento de diversos programas, como o de apicultura orgânica, por exemplo. “O semiárido baiano pode produzir cerca de 120 mil toneladas de mel por ano, três vezes a oferta atual do país”, entusiasma-se.
De acordo com o ex-engenheiro do Dnocs, existem muitas outras riquezas naturais na caatinga, que, no entanto, permanecem inexploradas. “A faveleira, árvore nativa de nossos sertões, é um diamante bruto à espera de lapidação. Além de sua excelência como espécie forrageira para a alimentação de caprinos, sozinha ela redimiria o semiárido baiano com a produção de um finíssimo óleo de mesa capaz de substituir, com vantagens, o similar de oliva”, garante. Todavia, diz, “as potencialidades naturais da região não conseguirão nenhum progresso sem o empenho da sociedade e dos poderes constituídos”.
Crítico do projeto de transposição das águas do rio São Francisco, Ribeiro dispara: “O nordeste brasileiro não precisa disso. A solução para a questão da seca já existe, independentemente da transposição”. Ele afirma também que os maiores e melhores açudes do mundo estão no nordeste. “Temos quase 100 mil açudes, que, juntos, acumulam 40 bilhões de metros cúbicos de água, volume equivalente a 16 vezes o da baía da Guanabara. É preciso, isso, sim, distribuir melhor esse recurso por meio de um eficiente sistema de adutoras”, esclarece Ribeiro. Hoje, existem apenas 4 mil quilômetros de adutoras, quando, segundo ele, seriam necessários 40 mil quilômetros “para uma distribuição justa de água pelo semiárido”.
Conforme o físico e meteorologista Rodrigo Cezar Limeira, da cidade de Sousa, na Paraíba, o El Niño – fenômeno climático marcado pelo esfriamento das águas do oceano Pacífico tropical e que é responsável pela situação de penúria experimentada pelo sertão – está atualmente com intensidade fraca (cerca de 0,8 °C acima da média). Se ele não se dissipar até o fim de janeiro de 2013, as precipitações no período da estação chuvosa no semiárido nordestino poderão oscilar entre 10% e 30% abaixo da média. “Caso se intensifique e passe a moderado, as chuvas poderão ficar entre 30% e 50% abaixo da média. E, se o El Niño se tornar forte, hipótese menos provável, elas poderão oscilar entre 50% e 70%, sempre abaixo da média”, explica Limeira.