Postado em 05/11/2012
por Regina Abreu
Matar ou aleijar a mulher, deixando a conta do prejuízo para os outros? Toda a sociedade, representada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), tendo de pagar a pensão para os filhos menores da vítima ou sua aposentadoria por invalidez? Era assim, mas agora não mais: em agosto, quando a Lei Maria da Penha completou seis anos (ela trata da violência doméstica e familiar contra a mulher), o INSS deu entrada na Justiça nos primeiros pedidos de ressarcimento contra agressores cujas ações contra mulheres geraram benefícios previdenciários. Um dos casos é a pensão por morte, paga ao filho de uma vítima de violência, que está com três anos e deverá recebê-la até os 18, num total de R$ 156 mil – que serão cobrados do pai e assassino. O outro é referente ao auxílio-doença a ser recebido por uma mulher vítima de tentativa de assassinato, no valor de pouco mais de R$ 49 mil.
Todavia, dinheiro não é o mais importante. Como enfatiza o procurador-chefe da Procuradoria Federal Especializada do INSS, Alessandro Antonio Stefanutto, a iniciativa, elaborada em conjunto com o Instituto Maria da Penha, é significativa não apenas do ponto de vista do ressarcimento, mas também de uma perspectiva educativa. De fato, ações ajuizadas em casos de acidentes de trabalho e, mais recentemente, dos de trânsito, levaram a expressiva redução nos índices, provando tratar-se de real instrumento repressivo e pedagógico.
A extensão das ações aos condenados com base na Lei Maria da Penha tende a elevar muito o número de pessoas processadas pelo INSS e os valores a ser ressarcidos. Nos primeiros cinco anos de vigência da lei, mais de 300 mil agressores foram denunciados e mais de 100 mil, efetivamente condenados. Incluindo 2012, o número de denúncias pelo Ligue 180 chega agora a mais de 350 mil, segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres. No ano passado, 37,7 mil mulheres com idade entre 20 e 59 anos procuraram hospitais públicos em busca de atendimento médico por terem sido vítimas de violência doméstica. Esse número pode ser ainda maior, já que, embora a notificação oficial desses casos seja obrigatória desde janeiro do ano passado, a omissão ainda é uma constante.
No Brasil, entre 1980 e 2010, foram assassinadas mais de 92 mil mulheres – 43,7 mil só na última década, um aumento de 230%. Um dos casos mais recentes, ocorrido em julho, foi o da modelo e ex-miss Babila Teixeira Marcos, que foi assassinada pelo marido na frente do filho de um ano. Em seguida ao crime, provocado por ciúmes, o agressor tentou o suicídio, mas não morreu. Coube a Lisandrea Zonzini Salvariego Colabuono, delegada de polícia titular da 2ª Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), encarregar-se de mais esse caso de crime bárbaro. Sua região abrange toda a zona sul de São Paulo, cobrindo os bairros de Santo Amaro a Americanópolis e Heliópolis, passando por Moema, Brooklin, Vila Clementino e Vila Mariana, ou seja, um amplo espaço, com realidades sociais muito diferentes. A 2ª Delegacia atende não só casos de violência doméstica e familiar, mas também qualquer ocorrência em que a vítima seja mulher, exceto acidentes de trânsito e os de autoria desconhecida.
Lisandrea relata que o número de inquéritos policiais vem aumentando porque as mulheres têm apresentado queixa com mais frequência. A DDM não é uma delegacia comum; lá elas são encaminhadas à assistente social e a estagiárias de psicologia. Dependendo do caso, o juiz determina medidas protetivas de urgência e ordena judicialmente que o agressor saia de casa e se afaste da vítima, proibindo qualquer comunicação com ela. Se desobedecer, sofre prisão preventiva. Causadas por ciúmes, possessividade, visão da mulher como objeto, cultura, machismo, as ameaças jamais devem ser ignoradas, de acordo com Lisandrea. “Nunca subestime o agressor”, ela aconselha.
Para Maria Auxiliadora de Castro Coutinho, assistente social da Polícia Civil, existem vários mitos com relação à violência contra a mulher: “Mulher gosta de apanhar”, “Só mulher pobre apanha e só homem pobre maltrata”, por exemplo. Tudo mentira: mulher não gosta de apanhar e quando isso ocorre tanto elas podem ser socialites quanto sem-teto, e os agressores, por sua vez, analfabetos ou mesmo doutorados.
Problema de saúde pública
À Delegacia da Mulher chegam vítimas de todas as classes sociais, de todas as profissões. “Você vê aqui empregadas domésticas e recepcionistas, mas também médicas, advogadas, empresárias, que em casa apanham dos maridos ou companheiros, com ciúmes de sua aparência, de seu sucesso profissional, de seu salário superior”, comenta Maria Auxiliadora.
A assistente social observa que a violência doméstica tem três características: é democrática, invisível (em geral, a mulher só procura ajuda depois da quinta agressão) e silenciosa. Via de regra a vítima precisa de apoio psicológico para si e para os filhos e também de amparo jurídico. No limite, pode ter de ir para um dos abrigos secretos do governo municipal ou estadual. Por isso, na DDM, as mulheres são encaminhadas a serviços especializados que as apoiam e orientam. “Mesmo que não exista uma DDM em sua cidade, a mulher deve sempre procurar ajuda, até numa delegacia comum”, orienta a delegada Lisandrea.
A incidência de violência sexual atinge entre 20% e 25% das mulheres e 9% dos homens. É essa a proporção calculada por Osmar Ribeiro Colás, ginecologista e coordenador do programa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) de atendimento à violência sexual e aborto previsto em lei. Colás, que também é coordenador do Núcleo de Prevenção à Violência da Unifesp, diz que esse é um problema gravíssimo de saúde pública, em especial quando atinge a mulher. Provocada pelo machismo e pelo conservadorismo, a violência está entranhada na cultura, na cabeça dos homens e também na de muitas mulheres, que a veem como “normal”.
Fato é que esse tipo de evento é mais comum do que se pensa: de acordo com estimativa da Anistia Internacional e da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada três mulheres ao redor do planeta já sofreu violência, a qual constitui a maior causa de morte nas que têm entre 16 e 44 anos. Calcula-se que 70% dos casos ocorram dentro do ambiente familiar. O mais grave é que cerca de 60% dessas mulheres sentem medo e constrangimento. Por isso, sofrem caladas, sem tomar qualquer tipo de atitude ou iniciativa para se livrar das garras de seus algozes.
Dados da “Pesquisa Instituto Avon/Ipsos – Percepções sobre a Violência Doméstica contra a Mulher no Brasil” mostram que seis em cada dez brasileiros conhecem alguma mulher que foi vítima de violência doméstica. Desse total, 63% tomaram alguma atitude, o que demonstra a mobilização de grande parte da sociedade para enfrentar o problema. Dentre as mulheres entrevistadas, 27% declararam já ter sido vítimas, enquanto apenas 15% dos homens admitiram ter praticado esse crime. Outro dado importante da “Pesquisa Instituto Avon/Ipsos” é que 94% das pessoas conhecem a Lei Maria da Penha, mas apenas 13% sabem qual é seu conteúdo.
A farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, a Maria da Penha da lei, transformou sua tragédia pessoal – o crime, cometido pelo marido, que a condenou à cadeira de rodas – em luta pela defesa das mulheres vítimas de violência. Em sua visão, a lei que leva seu nome veio para resgatar a dignidade da mulher brasileira. “Hoje, esse assunto ganhou mais visibilidade e as mulheres estão tendo mais coragem de denunciar, acreditando mais no poder público”, afirma. Todavia, ela observa, ainda falta muito, pois somente as grandes cidades dispõem de estrutura capaz de atender à lei, incluindo Casas Abrigo, Centros de Referência da Mulher, Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Delegacia da Mulher. Tendo isso em vista, ela faz um apelo: “Precisamos do compromisso e da sensibilidade de nossos gestores para que esses equipamentos sejam implementados em todas as cidades com mais de 60 mil habitantes, uma medida crucial para que a mulher se sinta amparada e protegida quando decidir denunciar”.
Surras homéricas
Um importante passo foi dado em 2003, com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, determinando diretrizes para as ações e estratégias em todo o Brasil. No site da secretaria, há uma relação de serviços de atendimento específicos para mulheres, separados por estado. Um deles é a Casa Eliane de Grammont, na cidade de São Paulo. Criado em 1990, foi o primeiro serviço de apoio integral e multifacetado. A coordenadora da casa, a psicóloga Branca Paperetti, explica que as profissionais que ali trabalham procuram entender o problema de cada mulher que busca ajuda ali, salientando que não há uma fórmula padrão de atendimento: “Cada caso é um caso”.
Com o passar do tempo, o trabalho da casa tem aumentado: são 200 novos atendimentos a cada mês, fora os que já estavam em andamento. A média de idade da maioria das vítimas oscila entre 20 e 40 anos, mas há também idosas. São muitos os exemplos de mulheres que aguentam maus-tratos há décadas – violência que às vezes começou aos poucos, com um empurrão, um beliscão, um tapa, chegando depois a surras homéricas. É comum, segundo a psicóloga, a justificativa do álcool e/ou das drogas para a violência. Branca, contudo, afirma que não é nada disso: a raiva que o agressor já sentia apenas é liberada quando ele está bêbado ou drogado.
Na Casa Eliane de Grammont a vítima recebe apoio e orientação, inclusive jurídica, graças à parceria, firmada em 2008, com a Defensoria Pública. A violência contra as mulheres pode assumir muitas formas – a física, a sexual, a psicológica e a econômica –, que se inter-relacionam e afetam as vítimas desde antes do nascimento até a velhice. Alguns desses tipos de crime, como o tráfico de mulheres, cruzam fronteiras nacionais. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, expressou-se desta maneira diante da questão: “Existe apenas uma verdade universal, aplicável a todos os países, culturas e comunidades: a violência contra as mulheres nunca é aceitável, nunca é perdoável, nunca é tolerável”.
O problema não está confinado a uma cultura, uma região ou um país específicos, nem a grupos de mulheres em particular dentro de uma sociedade. As raízes da violência contra as mulheres decorrem da discriminação persistente de que são alvo. Cerca de 70% delas são objeto de algum tipo de ataque à integridade física ou moral no decorrer da vida. As mulheres de 15 a 44 anos correm mais risco de ser vítimas de estupro e violência doméstica do que de câncer, acidentes de carro, guerra e malária, de acordo com dados do Banco Mundial. É sabido que a forma mais comum de agressão experimentada pelas mulheres em todo o mundo é a violência física praticada por um parceiro íntimo. Diversas pesquisas mundiais mostram que metade de todas as mulheres vítimas de homicídio são mortas pelo marido ou parceiro, atual ou anterior.
Calcula-se que, em todo o mundo, uma em cada cinco mulheres se tornará vítima de estupro ou tentativa de estupro no decorrer da vida. A prática do matrimônio precoce – uma forma de violência sexual – é comum em todos os lugares, especialmente na África e no sul da Ásia. É preciso lembrar ainda a mutilação genital sofrida pelas mulheres em alguns países africanos. Além disso, as mulheres, sejam elas avós ou bebês, têm rotineiramente sofrido violento abuso sexual nas mãos de forças militares e rebeldes.
O estupro há muito é usado como tática de guerra, com relatos de violência contra as mulheres durante ou após lutas armadas em todas as zonas de conflito internacionais ou nacionais. Acredita-se que mais de 200 mil mulheres tenham sofrido violência sexual na República Democrática do Congo durante os últimos 13 anos de guerra. Entre 250 mil e 500 mil mulheres foram estupradas durante o genocídio de 1994, em Ruanda. E, no período que durou o conflito na Bósnia, no início dos anos 1990, entre 20 mil e 50 mil mulheres foram estupradas.
A despeito de todas essas desgraças as coisas estão melhorando. “Há iniciativas em curso em todos os países para coibir, ou ao menos diminuir, a violência contra as mulheres”, relata a professora e pesquisadora Wânia Pasinato, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). Ela explica que esse processo de conscientização é muito recente – teve início apenas nos anos 1980. E lembra que somente em 1993 a ONU incluiu os direitos das mulheres entre os direitos humanos, durante a Conferência de Viena. A pesquisadora também destaca que já se registram avanços até nos países islâmicos.
O Brasil, acrescenta Wânia, está no bom caminho, com a Lei Maria da Penha e a iniciativa governamental de cobrar o prejuízo do infrator, por seu aspecto acima de tudo educativo. Mas, adverte, é preciso acompanhar a aplicação da lei e de outras medidas, como maior apoio nos serviços de saúde e na polícia, numa abordagem integral que leve à definitiva erradicação da violência contra a mulher.
O cerco vai se fechando
A inserção do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) na Rede de Proteção à Mulher é voltada também a ações educativas, aproveitando sua presença em todo o país, com acesso a mais da metade da população brasileira. Assim, foi desenvolvida uma cartilha, que será distribuída em suas quase 1,4 mil agências em todo o território nacional – elas recebem, mensalmente, 4 milhões de cidadãos. Além disso, Maria da Penha gravou uma mensagem, veiculada durante a espera nos atendimentos telefônicos do INSS (Disque 135), que poderá ser ouvida pelos cerca de 6 milhões de pessoas que ligam para essa central todo mês. Por fim, está sendo elaborado um curso de capacitação a peritos e assistentes sociais para o caso de terem de dar atendimento a possíveis vítimas, além de um programa de sensibilização dos próprios servidores.
Quanto ao Instituto Maria da Penha, trata-se de uma organização não governamental que nasceu a partir da história de vida de Maria da Penha Maia Fernandes, uma vítima da violência doméstica. Fundada em julho de 2009, a instituição tem como missão criar mecanismos para o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e resgatar o valor da família na sociedade.
Dúvidas mais frequentes
O que fazer em caso de agressão
• Devo procurar a polícia?
Sim, quando e sempre que você for vítima de qualquer espécie de agressão ou ameaça. A Delegacia de Defesa da Mulher funciona no horário comercial, de segunda a sexta-feira. Fora desse período, procure uma delegacia de polícia comum.
• Feito o boletim de ocorrência (B.O.), já se inicia o processo criminal?
Depende: se o crime for grave, como tentativa de homicídio, lesão corporal grave ou incapacitação para o trabalho por mais de 30 dias, o inquérito policial é instaurado imediatamente.
Os crimes menos graves – ameaças de morte, lesão corporal leve – dependem da representação criminal. Ou seja: é necessário que a vítima afirme para a delegada: “Eu quero representar”, na hora ou até seis meses após o fato.
• Preciso fazer o exame de corpo de delito?
Sim, em todos os crimes que deixam marcas no corpo. Sem isso, o crime não é comprovado.
• Se eu fizer tudo isso, o agressor vai ser preso?
Dificilmente. Isso ocorrerá somente nos crimes graves, se ele tiver antecedentes criminais e se descumprir medidas protetivas.
• O que são medidas protetivas?
É uma novidade trazida pela Lei Maria da Penha: são medidas de proteção para impedir que as mulheres sejam vítimas de novas agressões. Entre elas estão o afastamento do lar, a proibição de aproximação e comunicação, a suspensão de porte de arma, a limitação de frequentar os mesmos locais que a vítima, a pensão e a suspensão dos direitos de visita.
• Quando devo solicitar medidas protetivas?
Sempre é hora: pode ser no momento do registro do B.O. ou durante o processo criminal, quando mudanças no comportamento do agressor significarem risco de morte. Peça essas medidas na delegacia ou através de advogado ou defensor público.
• O agressor pode sair impune?
O promotor pode pedir arquivamento do inquérito, se entender que não há provas do crime. Por isso, é importante fazer o exame de corpo de delito, reunir testemunhas e provas: fotos, gravações, mensagens, e-mails.
Fonte: Coordenadoria da Mulher da Prefeitura de São Paulo