Postado em 05/11/2012
por Herbert Carvalho
O Brasil vivia, em 1977, um dilema político e econômico. Decorridos 13 anos desde o golpe civil-militar de 1964, o milagre de crescimento vigoroso do início da década desmoronara diante da crise do petróleo, esfumando os últimos vestígios de apoio da sociedade ao regime autoritário. O general Ernesto Geisel, quarto presidente do ciclo militar, representante do grupo “civilista” ou “moderado” do Exército, tinha plena consciência desse esgotamento, evidenciado já nas eleições de 1974, quando o partido governista Aliança Renovadora Nacional (Arena) fora derrotado fragorosamente pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), oposicionista (única agremiação dos contrários então admitida). Geisel assumira o governo com o projeto de uma distensão “lenta, gradual e segura”, concebido pelo seu chefe do Gabinete Civil, o também general Golbery do Couto e Silva. Ambos eram, porém, fortemente contestados dentro das próprias forças armadas pelos “duros”, que não queriam ouvir falar na devolução do poder aos civis.
Nessa conjuntura difícil, Geisel manobrava para não ser “emparedado” pelos que se opunham à sua pretensão, representados em seu governo por ninguém menos que o ministro do Exército, general Sílvio Frota, que articulava nos bastidores a própria candidatura. Ou seja, parecia que o país ia assistir a um repeteco do acontecido dez anos antes, quando o “moderado” Castello Branco tivera de engolir o “duro” Costa e Silva na troca de guarda entre o primeiro e o segundo general-presidente imposto à nação.
Equilibrando-se na corda bamba, Geisel edita o famigerado “pacote de abril”, criando senadores biônicos e distorcendo a representação popular na Câmara dos Deputados para garantir maioria no Congresso Nacional. Era mais um lance de casuísmo de uma ditadura sui generis, que mantinha o rodízio de generais na presidência e mudava as regras a cada pleito para manter uma fachada democrática. Após a martelada no cravo, Geisel deu outra na ferradura: demitiu Frota e abriu caminho para o general João Baptista Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), o escolhido para levar avante a distensão, agora chamada de “abertura”. O governo iria prescindir do AI-5 e demais instrumentos discricionários que usara desde 1968 para impor sua vontade a ferro e fogo.
É com esse pano de fundo que, em meados de 1978, entra em cena o publicitário Saïd Farhat, primeiro assessor civil escolhido por Figueiredo para aproximá-lo de um povo que, era natural, via com desconfiança mais um militar desconhecido assumir os destinos do país. O que ocorreu daí em diante está contado no livro Tempo de Gangorra – Visão Panorâmica do Processo Político-Militar no Brasil de 1978 a 1980 (Editora Tag&Line, São Paulo, 2012), em cujas páginas seu autor, Saïd Farhat, hoje com 91 anos, rememora os fatos que presenciou, além de discorrer sobre os antecedentes que levaram à queda do governo civil de João Goulart e sua substituição pelos que o derrubaram. O alentado volume de 472 páginas foi publicado com o apoio da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) – que tem Farhat como conselheiro-associado – e conta com prefácio do historiador Hernâni Donato, em cuja opinião a obra é um “manancial” de fontes referenciais para reconstituir a história recente do país.
“Visão” e Embratur
Preliminarmente, é útil resgatar a trajetória do autor-protagonista. Saïd Abrahim Farhat nasceu em Rio Branco, no Acre, em 1920. Em 1942, assumiu, por concurso público, a chefia da Seção de Planos e Coordenação da Secretaria-Geral do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Durante dez anos atuou também como delegado do IBGE nos estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo. Na iniciativa privada ocupou, a partir de 1954, cargos de direção na Standard Propaganda – então a principal agência brasileira de publicidade – e na unidade local da Thompson, à época a maior multinacional do setor.
Em 1965, em parceria com sua mulher, Ray, tornou-se proprietário da revista semanal “Visão”, fundada em 1952 pelo grupo estadunidense Vision Inc. Foi a partir daí, como editor, que se notabilizou por iniciativas inovadoras hoje incorporadas ao cotidiano da mídia impressa no país, por exemplo ao lançar as revistas técnicas “Dirigente Industrial”, “Dirigente Rural”, “Dirigente Construtor” e “Dirigente Municipal”, publicações pioneiras no Brasil no modelo de circulação dirigida (gratuitas e acessíveis a empresários, administradores, técnicos, compradores e fornecedores). Criou ainda o anuário “Quem é Quem na Economia Brasileira” e o prêmio “Homem de Visão”, destinado a laurear líderes empresariais e políticos.
Após vender a Editora Visão, em 1974, foi nomeado presidente da Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), cargo que exerceria até março de 1979, quando assumiu a pasta de ministro-chefe da recém-criada Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom). Na Embratur, Farhat teve entre seus auxiliares o renomado escritor e teatrólogo Guilherme Figueiredo, que o levaria, em janeiro de 1978, para conhecer o irmão João Baptista, recém-indicado sucessor de Geisel. A conversa girou em torno da imagem daquele que tem a eleição indireta garantida, mas se dispõe a agir de maneira diversa dos generais que o antecederam no posto: ele visitará o país, participará de encontros políticos e de comícios, receberá representantes da sociedade civil e concederá entrevistas à imprensa, como se disputasse uma eleição popular de verdade.
Para isso, entretanto, era preciso mudar a postura do militar avesso ao contato com o público, acostumado a operar à sombra da chamada “comunidade de informações”, cujos arapongas eram responsáveis por bisbilhotar a vida alheia, em especial dos opositores do regime. Seus óculos escuros – cujo uso Figueiredo atribuía a uma conjuntivite crônica – contribuíam para compor o estereótipo do ditador sul-americano, pois eram idênticos aos usados pelo chileno Augusto Pinochet, entre outros. Saïd Farhat resumiu a situação: “O senhor tem dois caminhos: um deles é ser mais um general-presidente. O outro é a porta da história. O Brasil não aguenta mais seis anos de menoridade política. Sugiro-lhe sair das quatro paredes, quebrar a casca de ovo, vir à planície, misturar-se ao povo, ver, sentir, ouvir”.
Em junho de 1978, Figueiredo deixou o cargo de ministro do SNI e Farhat passou a assessorá-lo com duas incumbências, a de escrever seus principais discursos com a promessa “de fazer deste país uma democracia” e a de intermediar sua relação com os órgãos de imprensa, orientando-o, sobretudo, em relação ao modo de se expressar diante das câmeras de televisão. Nos relatos dos bastidores de sua atuação como especialista – “condição que os militares respeitam”, conforme explica – reside a importância da obra, que em vários trechos dá testemunho das agruras enfrentadas pelo autor, desde bombas enviadas para sua casa pela linha dura inconformada com a abertura até a ausência dos teleprompters hoje disponíveis para auxiliar a fala de políticos e profissionais da TV. Na primeira entrevista à rede Globo, além de preparar as respostas de perguntas submetidas previamente, Farhat se incumbe até de maquilar o candidato, pois ninguém se sentia à vontade para passar pó de arroz no rosto suado do general.
Até assumir, em 15 de março de 1979, Figueiredo faria 119 pronunciamentos, primeiro como candidato e depois como presidente eleito, dos quais 44 foram escritos por Farhat. A ele também coube redigir, além do discurso de posse, as diretrizes gerais e setoriais do governo, que, entretanto, não acompanharia até o final: em dezembro de 1980, pediu demissão por discordar de alterações que limitariam sua atuação no comando da comunicação oficial. Estaria presente, contudo, ao pé da escada do avião que, em março de 1985, levaria de Brasília para o Rio de Janeiro o já então ex-presidente da República. Segundo Farhat, ele resistira, “na vigésima quinta hora”, às pressões para que não entregasse o poder a José Sarney, vice-presidente eleito que se apresentou no lugar do titular Tancredo Neves, impedido pela doença que o mataria logo depois. Era o último balanço da gangorra que, durante 21 anos, manteve o povo brasileiro afastado do direito de escolher livre e diretamente seus governantes.