Postado em 04/06/2012
Professor titular de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), Franklin Leopoldo e Silva é especialista em história da filosofia, abordando temas como história, crítica, ética, existência e conhecimento. Entre as obras de sua autoria, destacam-se Bergson: Intuição e Discurso Filosófico (Loyola, 1994), Ética e Literatura em Sartre (Unesp, 2004) e Felicidade: Dos Filósofos Pré-socráticos aos Contemporâneos (Claridade, 2007).
Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, o convidado desta edição falou sobre a relação entre filosofia e literatura, a perda de parâmetros que a filosofia sofreu no século 20 e os paradigmas para o indivíduo na sociedade de massas.
“O que seria o contrário de uma sociedade individualista? Seria uma sociedade comunitária (...) em que todo o valor do indivíduo está no seu laço comunitário. Isso não pode acontecer a partir do século 18, pois o capitalismo progride e existe graças ao empreendedorismo individual”, afirma. A seguir, trechos.
Filosofia e literatura
No final do século 19 e durante o século 20, as vanguardas e uma certa dramatização da experiência humana vivida historicamente, principalmente no século 20, com as duas guerras, os genocídios, os totalitarismos, trouxeram um certo grau de dramaticidade à vida que a filosofia não poderia se isentar de abordar.
Será que o caráter objetivo e frio do conceito filosófico consegue ter um alcance no sentido de nos fazer compreender esse tipo de situação? Ou o conceito traduzirá essas situações dramáticas, variadas e complexas para uma teoria bem-acabada pacificada, mas que deixará para trás aquilo que é mais real, que é o confuso, a perplexidade, a falta de resolução?
Uma das ideias centrais do pensamento do Henri Bergson [filósofo francês que viveu entre 1859 e 1941] é essa: o conceito é uma tradução simbólica e distanciada da realidade; no conceito tudo está bem-arrumado, mas as coisas não se passam dessa maneira.
O tempo, por exemplo: é possível exprimir em um conceito essa multiplicidade, esse fluxo que atinge as coisas, as pessoas, essa transitoriedade que sempre foi, desde os gregos, objetivo de uma reflexão existencial. Mas de que adianta você ter um conceito do tempo se escapa esse caráter dramático da transitoriedade das coisas, do perecimento, da vida e da morte, do envelhecimento?
Bergson dizia que a filosofia precisava voltar a tematizar essas coisas, que o conceito precisava se flexibilizar. Será que isso é impossível? Ele disse que não, pois desde sempre os escritores fizeram isso. Então teria que haver uma espécie de olhar filosófico para a literatura no sentido de ver ali a vida em ato, apesar de ser expressa, representada literariamente, uma certa maneira muito mais direta de perceber as coisas e representá-las nas artes de maneira geral.
E esse olhar que a filosofia lança a esse tipo de atividade pode servir para que ela seja mais flexível e tenha um pouco menos de dureza lógica no trato com a realidade e com a vida. Essa ideia não é nova; no século 19 os românticos alemães já achavam que, enquanto a poesia e o conceito não estivessem de certa forma unidos por um mesmo propósito, a realidade não seria conhecida, pois a realidade não é nem o conceito puro nem a poesia pura.
Essa direção em que as duas coisas vão, uma em direção à outra sem nunca se encontrarem inteiramente, seria um método, entre aspas, de a literatura se tornar mais filosófica no sentido de dar a compreender situações humanas de maneira geral e de a filosofia se libertar daquela generalidade conceitual, se voltar mais para a singularidade das situações vividas.
Sartre tem uma frase muito significativa. Segundo ele a filosofia teve que se tornar dramática, pois a realidade tornou-se dramática. Se antes você tinha uma concepção meio clássica do mundo, em que tudo era meio pacificado, passível de ser visto por meio de preceitos claros, no século 20 você tem uma experiência totalmente caótica da realidade. Diante do stalinismo, nazismo, genocídio, qual conceito filosófico permanece de pé? Parece que houve uma falência geral. Daí o filósofo tornar-se um literato, como o Sartre.
Banalidade do mal
Hannah Arendt [filósofa política alemã de origem judaica, viveu entre 1906 e 1975] mostrou que os conceitos classicamente adequados para a compreensão do que seria o bem e o mal não funcionam mais diante do contexto do nazismo. Você não está diante de monstros, encarnações do mal, você está diante de pessoas normais, como é o caso do Adolf Eichmann e do ministro do Hitler.
Tem uma história curiosa, o ministro do Hitler criava uma porção de gatinhos; quando chegava tarde da noite, ele tirava o sapato e entrava só de meia para não acordá-los e durante o dia fazia tudo aquilo que sabemos que os nazistas faziam. A banalização tem esses dois lados, você não tem mais a exceção, o sujeito mau, que se destaca entre os outros por sua maldade, é completamente normal.
No julgamento, perguntaram para o Eichmann o que ele pensava enquanto estava despachando os judeus nos trens para os campos de concentração. Ele disse que a maior preocupação dele é que os trens deveriam sair no horário, mas nem sempre dava e ele ficava aflito com isso. Muita gente achou essa declaração chocante. Esse é um exemplo de banalização.
A grande pergunta que se faz, diante da vida hoje, é o que é regra e o que é exceção? Qual é a diferença? É difícil imaginar algo que possa ser realmente chocante hoje. Tudo aquilo que deveria ser a exceção, a transgressão, a ilegitimidade é absorvido em um sistema em que não há mais diferença entre a regra e a exceção, o normal e o anormal.
Sociedade de massa
A sociedade de massa tem um paradoxo que vivemos cotidianamente: uma combinação entre o mais extremo individualismo com a mais extrema homogeneidade. Isso significa que não há forma de pensar a não ser o pensamento único. Mas esse pensamento único nos é encucado como se fosse algo absolutamente individual, esse é o truque.
Então, você tem uma sociedade que precisa ser individualizada por conta da competitividade, os indivíduos têm que se considerar a realidade básica porque é a partir daí que você compete, organiza sua vida, que você se supera e supera os outros. Ao mesmo tempo, se essa singularidade fosse realmente vivida, a sociedade não poderia ser controlada.
Porque uma sociedade só é controlada quando é possível controlar todos os indivíduos como se fossem um. Por outro lado, há um certo mito de que cada indivíduo é ele mesmo, que ele deve superar os outros, vencer, o self made man, mas isso é um truque social que prevaleceu no momento em que a sociedade dos indivíduos teve que se tornar uma sociedade de massa, o que produziu o individualismo e a homogeneidade.
Como falar em individualismo se todo mundo é igual? Se os dispositivos sociais organizam todo mundo de modo homogêneo, os mesmos gostos, o mesmo lazer, as mesmas necessidades até os mesmos desejos? O indivíduo na sociedade em que vivemos é uma figura abstrata, ele é todos e não é ninguém.
Além da banalização da singularidade, da originalidade, você tem algo talvez mais forte, que é a impossibilidade da diferença – o que não é vivido como empecilho é visto como forma de se integrar à sociedade. O que seria o contrário de uma sociedade individualista? Seria uma sociedade comunitária, como na Idade Média ou na Grécia, em que todo o valor do indivíduo está no seu laço comunitário.
Isso não pode acontecer a partir do século 18, pois o capitalismo progride e existe graças ao empreendedorismo individual, mas esse empreendedorismo não pode levar a uma marca singular que dê à pessoa uma tal originalidade que escape do controle.
“Sartre tem uma frase muito significativa. Segundo ele, a filosofia teve que se tornar dramática, pois a realidade tornou-se dramática. (...) Diante do stalinismo, nazismo, genocídio, qual conceito filosófico permanece de pé? Parece que houve uma falência geral.”
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