Postado em 02/07/2012
por Milu Leite
Pessoas caminham pela orla da lagoa da Conceição, depois de um almoço tranquilo em algum dos muitos restaurantes da Avenida das Rendeiras. O sol está a pino e a brisa, fresquíssima. O clima, a paisagem e o ritmo são um convite ao ócio. Quem resiste? A cada temporada, uma parcela dos milhares de turistas que chegam a Florianópolis (sobretudo à ilha, pois a porção continental da capital catarinense ainda é pouco atraente) adota a cidade como moradia. Segundo o censo de 2010, a população de Floripa, como a capital é carinhosamente chamada, cresceu 18,08% em relação ao último levantamento, saltando de 342.315 habitantes para 404.224, um aumento significativo em comparação com a média nacional. Os “manezinhos” (como os nativos são conhecidos) não gostam muito desse vaivém, mas já começam a encarar com outros olhos as levas de migrantes que não param de chegar.
Trata-se de gente que vem principalmente do sul, do sudeste e do interior do estado de Santa Catarina. É possível que, no verão passado, 1 milhão de pessoas tenham passado pela ilha, entre dezembro de 2011 e abril de 2012 – pelo menos essa era a expectativa –, um número que dá a real dimensão da força de atração exercida pela Ilha da Magia, como os habitantes locais se referem à cidade. Por conta dessa avalancha de pessoas, há quem faça troça com o inchaço de Floripa, dizendo que só mesmo a implosão da Ponte Colombo Salles, que liga a ilha ao continente, pode conter o crescimento populacional.
A realidade é que a capital dos catarinenses ficou famosa, e as razões para isso basicamente são duas: sua qualidade de vida – a cidade ostenta um índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,875, um dos mais altos do Brasil – e a ação das autoridades, que, a reboque do trabalho boca a boca, investem em campanhas publicitárias com o propósito de destacar a boa posição de Floripa, condição que acabou alçando a cidade-sede do governo de Santa Catarina à categoria de “paraíso”. E ela, de fato, merecia essa distinção, não fossem os problemas de infraestrutura de que passou a padecer de uns tempos para cá.
São, aproximadamente, cem praias que banham 424,4 quilômetros quadrados de um território ainda pouco ocupado e repleto de verde. A ilha é extensa, e as construções se aglomeram em pontos estratégicos: na região central (com prédios que vão se tornando cada vez mais altos e “inteligentes”), em algumas praias do norte (zona urbanizada e com construções voltadas, principalmente, para o turismo sazonal) e nas do sul (área em franca urbanização, considerada a menina dos olhos dos construtores, por conta de seu potencial de ocupação, que incentiva investimentos até certo ponto arrojados, a exemplo de um condomínio na praia do Campeche que conta com fonte de energia eólica e reaproveitamento da água das chuvas).
O distrito de Lagoa da Conceição, ainda em processo de urbanização, é seguramente um dos lugares mais aprazíveis do Brasil e um dos pontos disputados pelas pessoas que procuram na ilha o charme da vida alternativa com os apelos de uma paisagem exuberante. Graças a essa irregular concentração demográfica, ainda é possível, por exemplo, ver bois e vacas pastando no caminho da praia da Joaquina, uma das mais visitadas pelos turistas, na região da Lagoa, os quais se divertem esquiando em suas dunas imensas, enquanto surfistas, não raras vezes, literalmente brigam para pegar uma onda no mar gelado.
As belezas da ilha literalmente magnetizam aqueles que aportam por lá. Foi o que aconteceu com o americano Nathaniel Hines, de Portland, que residiu seus últimos três anos de vida na Lagoa. Falecido recentemente, ele dizia que Florianópolis tinha “apelo único”. Destacava a região central da cidade, com o charme e o movimento dos grandes aglomerados urbanos, mas preferia “voltar no tempo” em locais como o Ribeirão da Ilha, com suas casas de estilo açoriano, onde se toma contato com um jeito simples de viver. Formado em direito, Hines trabalhou em diversos escritórios de advocacia até resolver se dar um tempo de descanso, tendo escolhido Florianópolis porque gostou de sua localização no mapa. Chegando lá, “foi amor à primeira vista”, costumava dizer.
Torre de Babel
Cidade dos museus (14, no total, segundo o poder público) e dos fortes (cinco), Florianópolis tem sido assunto de reportagens publicadas no Brasil e no exterior. Atentos, os comerciantes não desperdiçaram tempo, tratando logo de inserir a capital em guias turísticos internacionais. Para atender a uma maior demanda, Floripa também passou a oferecer mais opções de hospedagem e lazer, ajudando a modificar seu perfil turístico, de modo a atrair gente de maior poder aquisitivo. Essas pessoas, endinheiradas, têm endereço certo: Jurerê Internacional, no norte da ilha, onde residem, ou apenas veraneiam, celebridades e milionários.
Já disseram que Jurerê Internacional é uma parte da Europa encravada na Índia. A comparação, um tanto inadequada, se presta para realçar o desnível social que existe entre essa porção norte da ilha e o restante dela. Jurerê Internacional é dominada por residências de alto padrão e os preços dos imóveis lá podem oscilar entre R$ 800 mil e R$ 4 milhões. No réveillon, ninguém se senta num dos bares chiques à beira de sua praia por menos de R$ 2 mil. O champanhe rola fácil, assim como Ferraris e BMWs, que circulam por ruas arborizadas com seus ocupantes tomando drinques à base de vodca importada e que tais. Um tipo diferente de paraíso? Do ponto de vista estrutural, sim. Conforme o que é divulgado no site oficial do bairro, “Jurerê Internacional tem uma infraestrutura diferenciada, com gestão própria da água, limpeza pública e monitoramento da balneabilidade, aliada a excelentes condições de segurança comunitária e privada, lazer, educação e conservação ambiental”.
Porém, a bela cidade sulina, que, segundo o ministério da Saúde, ocupa o terceiro lugar no ranking de qualidade de atendimento do Sistema Único de Saúde entre as capitais brasileiras, além de ser dona da maior renda per capita por domicílio, não está bem, de acordo com o IBGE, no item coleta de esgoto. Floripa estendeu esse serviço a apenas 55% da população urbana, conforme informações da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan). Acredita-se, no entanto, que esse quadro vá melhorar. Em abril, o diretor de Operação e Meio Ambiente da empresa, Valter Gallina, anunciou investimentos da ordem de R$ 400 milhões em redes de esgoto para os próximos quatro anos, com o propósito de ampliar a cobertura do sistema e atenuar aquele que é um dos maiores problemas da ilha. Aliás, ele é tão grave que não passa despercebido aos olhos de ninguém, nem dos estrangeiros – é comum vê-los, incrédulos, apontando a sujeira nas águas da lagoa da Conceição ou da praia de Canasvieiras, o balneário preferido dos turistas latinos. Se as promessas governamentais ganharem de fato o mundo real, em breve essas imagens deixarão de existir, graças à realização de obras orçadas em R$ 22 milhões, destinadas a limpar a lagoa nos próximos quatro anos.
O fato é que parece impossível a uma cidade crescer sem perder em qualidade de vida. Trata-se de uma equação simples: quanto mais pessoas, mais problemas, a não ser que se faça algo para fugir deles. Essa é uma realidade que afeta há muito tempo metrópoles brasileiras que um dia, como acontece hoje com Floripa, já foram simpáticas aos olhos de todos, como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, só para citar algumas. Assim, a violência, os congestionamentos e a especulação imobiliária ganharam o país de norte a sul e, desgraçadamente, estão fazendo morada na terra dos “manezinhos”.
É bem verdade que Floripa ainda está longe das agruras enfrentadas por São Paulo e Rio, mas galga os degraus naquela direção com espantosa rapidez. “Estou há 20 anos aqui. O transporte público piorou e a segurança, idem”, queixa-se Sílvia Miguez Guimarães, uma ex-moradora da cidade de São Paulo. Ela afirma que, antigamente, ia ao centrinho da Lagoa e deixava o carro aberto e as portas de sua casa destrancadas. “Nos últimos cinco anos, tudo mudou, mas vou continuar residindo no município porque não há dinheiro que pague uma vida com a qualidade que me é proporcionada por Floripa. Aqui há ar puro, praias limpas e bichos, porque a natureza virgem ainda está presente no município”. Sílvia conta que um dia desses foi acordada pelo canto de um araquã (ave gregária que habita principalmente o Pantanal Mato-Grossense). Ela faz uma observação interessante a respeito do convívio entre os moradores da ilha, afirmando que, independentemente da camada social, pobres ou ricas, as pessoas se relacionam intensamente. “Jamais toparia com minha empregada doméstica ou meu jardineiro nos ambientes que eu frequentava em São Paulo. Aqui posso encontrá-los, por exemplo, jogando frescobol com meus amigos na praia. E gosto muito disso”, assinala.
É preciso deixar claro, no entanto, que, apesar dos problemas que já está começando a enfrentar, Florianópolis ainda é uma cidade pequena em comparação com outras capitais nacionais, e a vida transcorre de modo mais tranquilo ali. As pessoas se conhecem e o anonimato é praticamente impossível. Para alguns, esse aspecto pode até ser desagradável, mas para outros é mais um dos atrativos da tão buscada qualidade de vida. Eles se encantam com isso, assim como se rendem aos cafés, que são mania na cidade, sobretudo na Lagoa, território desses pontos de encontro. Todos os frequentadores acabam se conhecendo de um jeito ou de outro, já que praticamente são quase sempre os mesmos – exceção feita aos meses de verão, quando os turistas tomam a cidade de assalto (a população mais do que dobra na alta temporada) e Floripa vira uma deliciosa Babel.
Guga decepcionado
A vontade do morador comum é de proteger a ilha dos problemas, sejam eles decorrentes do turismo sazonal ou da falta de infraestrutura para acomodar um número cada vez maior de moradores. Quem ama a cidade vê com apreensão a atual onda de crescimento. Parte da população se mobiliza como pode, comparecendo a reuniões de associações de bairro, de organizações não governamentais e de entidades filantrópicas para debater projetos e reivindicar melhorias e planejamento ao governo municipal. Um desses grupos fundou o movimento Floripa Te Quero Bem, que reúne representantes do Instituto Guga Kuerten, do Instituto Comunitário Grande Florianópolis e do Instituto Padre Vilson Groh e conta com o apoio da RBS (uma das maiores empresas de comunicação multimídia do país e a mais antiga afiliada da Rede Globo), tem site próprio e boa repercussão. A ideia partiu da própria RBS, depois de uma declaração de Guga Kuerten (o “manezinho” que ganhou notoriedade ao se tornar o número 1 do ranking mundial de tênis entre 2000 e 2001 e tricampeão em Roland Garros). Em entrevista a um programa de televisão, Guga afirmou poucos meses atrás que não sabia se continuaria a viver em sua cidade natal, apontando como causa dessa ideia os problemas de toda ordem que ela vem enfrentando. Foi um alvoroço. A notícia pipocou em twitters, facebooks, blogues, rádios e jornais, mas teve efeito benéfico, trazendo à tona tudo aquilo que, por razões óbvias, a propaganda turística não tem interesse em divulgar.
Já que o assunto é violência, convém informar que a Polícia Militar de Florianópolis, assim como ocorre no resto do estado, tem uma formação diferenciada em relação às corporações de outras unidades da federação, a começar, por exemplo, pela exigência, imposta aos candidatos a ingressar em suas fileiras, de que sejam portadores de diploma de curso superior. E, em sintonia total com a paisagem e o ambiente ilhéu, policiais de todo o estado vêm até Florianópolis para aprender a meditar com a professora Sílvia Guimarães (a mesma que já teve o privilégio de acordar com o canto do araquã).
Aluno de Sílvia, o capitão Darlan Novaes, responsável pelo atendimento psicológico dos policiais, conta que ela dá aulas para a tropa em caráter voluntário. “Sugeri que ela ministrasse seu curso no âmbito da disciplina Gerenciamento de Estresse, porque a meditação é uma estratégia de enfrentamento das agressões de ordem física e psíquica indicada pela literatura científica”, relata. Ele informa que essa disciplina faz parte de uma ação de prevenção que integra o Programa de Gerenciamento de Estresse Profissional e Pós-Traumático da polícia militar. A iniciativa tem rendido bons frutos. De acordo com Novaes, em apenas um ano, 1.240 policiais militares passaram pelo curso da professora Sílvia. Por sua vez, ela lembra o caso recente de um soldado que em sua primeira saída para a rua enfrentou uma situação de risco e teve de atirar. “Tendo comunicado ao capitão Novaes que ficara muito estressado com a ocorrência e seu desfecho, ele foi encaminhado à meditação como recurso para ajudá-lo a relaxar”, salienta Sílvia.
A prática de terapias que fogem do tradicional é comum entre os habitantes de Florianópolis, e esse é também um aspecto atraente aos que chegam de visita. O conceito de “vida saudável” está associado à boa alimentação e às terapias alternativas, e nesse aspecto a ilha mostra toda a sua exuberância. Há uma infinidade de profissionais que trabalham com pilates, ioga, acupuntura e áreas afins. Existe, inclusive, um curso superior de naturologia na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), localizada na porção continental da capital.
Há em Florianópolis, então, uma disponibilidade para o novo? À parte a resistência de alguns nativos em aceitar o imigrante, o que se vive é a permissão para que o contato ocorra, até porque grande parte da população local é composta de gente que veio de fora. O resultado também não passa despercebido aos estrangeiros que visitam a ilha, os quais, mesmo com um conhecimento limitado do idioma, são tratados pelos moradores de Florianópolis com gentileza, paciência e vontade de ajudar.
Sendo possível viver esse clima de cordialidade e razoável tranquilidade diariamente, como resistir aos apelos da ilha de Santa Catarina, ainda mais sabendo-se que há tantas coisas bonitas ali para ver, usufruir e guardar na memória? Que problema não se torna diminuto frente a essa conjunção de fatores altamente positivos? Ainda que amargue mais de uma hora num congestionamento pela manhã, o trabalhador termina o expediente ciente de que lhe sobra tempo para ir ao cinema ou para encontrar um amigo num bar, ou simplesmente para caminhar pelo calçadão da Avenida Beira-Mar Norte. Ele sabe que, ao sentar-se em seu café habitual, será atendido e chamado pelo nome e que, com alguma sorte, encontrará algum amigo por ali também. Eles poderão falar do time do coração e trocar notícias sobre o Avaí e o Figueirense, as duas equipes que dividem a paixão futebolística dos “manezinhos”. Poderão se distrair admirando ou invejando os aventureiros de parapente, ou apenas combinando um passeio de veleiro para o fim de semana. Se não restar dinheiro para tanto, poderão dormir tranquilos, sabendo que ao menos em uma das belas praias da ilha encontrarão prazer e aconchego, sem ter de pagar por isso.