Postado em 02/07/2012
por Herbert Carvalho
Nascidos há cem anos, eles tiveram participação de destaque nas principais sagas do século passado no Brasil e, por que não dizer, no mundo. Combateram tiranias e iniquidades, defendendo as liberdades democráticas e as conquistas sociais. Nonagenários, alcançaram o século 21 sem jamais vacilar em seus ideais, fazendo jus aos versos do poeta alemão Bertolt Brecht: “Os que lutam toda a vida são os imprescindíveis”. Apolonio de Carvalho (1912-2005) e Evandro Lins e Silva (1912-2002) fizeram história e honraram os princípios que nortearam seus passos em vida.
Considerado herói de três pátrias, Apolonio de Carvalho combateu os fascistas de Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola, os nazistas que ocuparam a França durante a Segunda Guerra Mundial e as ditaduras brasileiras de Getúlio Vargas – nos anos 1930 – e dos militares golpistas, em 1964. Herdou de seu pai, militar insubmisso como ele, um legado libertário que, no final da vida, resumiria em uma frase, dirigida aos jovens: “Quem não tem um horizonte definido e não luta por um ideal está condenado à mediocridade”. Em 1980, os fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) reservaram-lhe a honra de assinar a ficha número 1 da agremiação, cuja direção integrou até 1987.
Evandro Lins e Silva, ao contrário, teve como arma apenas a palavra, que usou durante décadas no Tribunal do Júri, na defesa de anônimos que não tinham como lhe pagar e também em casos célebres, como o de Doca Street – assassino da namorada e socialite mineira Angela Diniz –, em 1976, e de José Rainha, líder sem-terra acusado pelo homicídio de um fazendeiro, em 2000. Fundador do Partido Socialista Brasileiro (PSB) em 1947, deixou de exercer a advocacia apenas na década de 1960, quando ocupou cargos de primeiro escalão no governo João Goulart e se tornou ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), até ser aposentado pelo AI-5, em 1969. Considerado por seus pares como “o criminalista do século 20”, raramente atuou na acusação, e quando o fez, como no processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, alegou estar “na defesa da dignidade nacional”.
Expoentes de uma geração que enfrentou diferentes formas de violência, sem titubear na luta pela liberdade, sempre vinculada à superação da miséria e da exploração, Apolonio e Evandro nos deixaram um legado humanista que Problemas Brasileiros procura resgatar, por meio da reconstituição de suas trajetórias.
Vale a pena sonhar
Liberdade, igualdade e fraternidade, os ideais da Revolução Francesa, revigorados pelo positivismo de Augusto Comte, moldaram o caráter do sergipano Candido Pinto de Carvalho Júnior, participante do ato da Proclamação da República como aluno da Escola Militar da Praia Vermelha, em 1889. No ano seguinte, quando a Inglaterra ameaçava bombardear as cidades portuárias chilenas de Valdívia e Valparaíso, ele redigiu um manifesto de solidariedade em nome dos cadetes brasileiros, que se ofereceram para lutar pela soberania do país agredido. Em 1914, seu filho mais velho, Deusdédit, fugiu de casa, aos 16 anos, com uma dúzia de colegas de ginásio. Seguiram como voluntários para lutar pelo exército francês na Primeira Guerra Mundial, e só não lograram êxito porque seus genitores agiram rapidamente, por meio do Itamarati, detendo-os ainda no Uruguai.
Nascido na cidade fronteiriça de Corumbá – para onde o pai fora transferido como comandante do Forte Coimbra, antes de ser reformado no posto de major como punição disciplinar –, Apolonio Pinto de Carvalho, o caçula de Candido de Carvalho Júnior, cresceu, junto com os cinco irmãos, nessa atmosfera familiar de culto à democracia, “de recusa a todos os governos de força, a todos os regimes de reação política e social”, de acordo com suas próprias palavras no capítulo inicial do livro autobiográfico Vale a Pena Sonhar (Editora Rocco, 1997).
A Revolução de 1930 encontrou Apolonio nos bancos da Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, para onde fora quando a mãe lhe fez ver a impossibilidade de estudar medicina, como queria. “Não podemos custear uma faculdade. A carreira militar é a carreira do pobre”, sentenciou a gaúcha de Bagé, cidade que coincidentemente acolheria o filho já tenente do Exército, designado, em 1934, comandante de bateria no 3º Grupo de Artilharia a Cavalo.
Se na capital federal tinha tomado contato inicial com as ideias socialistas e chegado a dirigir a revista da Escola Militar na “Sibéria tropical”, como então se referiam ao Rio Grande do Sul, com o passar do tempo ele deixou de ser um mero espectador da cena política. Aliciado pelo capitão Moésia Rolim, camufladamente desterrado no sul do país por pertencer à ala esquerda do movimento tenentista, vinculou-se à Aliança Nacional Libertadora (ANL), versão brasileira das frentes populares que se formavam na Europa em contraposição à ascensão do fascismo e do nazismo.
Preso em janeiro de 1936, após o fracasso do levante armado comandado por Luís Carlos Prestes no ano anterior, Apolonio foi transferido para as Casas de Detenção e Correção do Rio de Janeiro. Ali ficou sabendo da amplitude da ANL (100 mil filiados e meio milhão de simpatizantes em apenas três meses de existência legal), estabelecendo contato com dirigentes comunistas nacionais e internacionais, como o secretário do PC argentino Rodolfo Ghioldi, figuras de destaque à época, que lhe acabariam dando “contorno e conteúdo à paixão de mudar o mundo”.
Após um ano e meio na prisão carioca, saiu plenamente integrado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que lhe colocara a seguinte questão: na Espanha, a República tinha urgente necessidade de militares com experiência profissional para fazer frente aos franquistas (militantes que formavam fileiras em torno de Francisco Franco), apoiados por Hitler e Mussolini. É assim que, ao lado dos também comunistas Dinarco Reis e David Capistrano, Apolonio foi um dos 20 brasileiros participantes da epopeia das Brigadas Internacionais, momento ímpar na história da humanidade por ter agrupado em solo espanhol, durante três anos, 40 mil voluntários de 51 países, irmanados pelos ideais de liberdade e democracia.
Confirmada a derrota da República, ele atravessou os Pireneus com milhares de outros refugiados que, em território francês, acabariam internados em campos de concentração. Às vésperas da invasão da França, o combativo Apolonio evadiu-se do campo de Gurs (para onde o governo local levava os combatentes procedentes da Espanha) e rumou a Marselha, onde o esperaria um dilema: voltar para uma prisão do Estado Novo, no Brasil, ou combater o inimigo principal ali mesmo, em solo europeu? A decisão de juntar-se à resistência armada contra a ocupação alemã e o governo colaboracionista de Vichy se consolidou ao conhecer aquela que seria sua companheira até o final da vida: ao lado de Renée France, 13 anos mais jovem, integrante de uma família de militantes comunistas, Apolonio participou de ações armadas para libertar prisioneiros e depois cidades, inclusive Toulouse, o que lhe valeu a patente de coronel da Resistência, a Cruz de Guerra e o grau de cavaleiro da Legião de Honra.
Salão dos Passos Perdidos
Descendente de tradicional família pernambucana, Evandro Lins e Silva seguiu a carreira jurídica do pai, que foi juiz em cidades do interior do Maranhão até se aposentar prematuramente por uma razão insólita: o impaludismo renitente contraído pela mulher e todos os filhos. Nascido em Parnaíba (PI), aos 15 anos Evandro chegou ao Rio de Janeiro para estudar, primeiro no Colégio Pedro II e, depois, na Faculdade de Direito, onde ingressou, em 1929, aos 17 anos.
Ainda estudante, e também depois de já advogado, trabalhou em jornais como “A Batalha”, “Diário de Notícias”, “A Nação” e “O Jornal”. Foi repórter forense, atividade que o levaria a frequentar o Tribunal do Júri. Ali, encantou-se com uma defesa feita por Antônio Evaristo de Moraes, destacado criminalista da época, pai de Evaristo de Moraes Filho, que seria seu adversário tanto no caso Doca Street como no do impeachment de Collor.
Num tempo em que predominavam os rábulas, pois eram poucos os advogados formados e não havia necessidade de diploma para atuar no júri, a estreia de Evandro na defesa de um réu de homicídio aconteceu em 1932, como auxiliar de João da Costa Pinto. Uma curiosidade: Costa Pinto era um estivador que tinha apenas o curso primário, mas desenvolvera habilidades de argumentação e oratória na sociedade dos portuários, tendo sido indicado para defender um colega acusado de assassinato. Evandro o conhecera no “Salão dos Passos Perdidos”, nome dado ao largo corredor sem bancos ou cadeiras, inteiramente vazio, ao lado do local em que o júri se reunia.
No livro autobiográfico em que usou como título essa poética designação do espaço frequentado por todos os praticantes e estudiosos do direito penal da época, ele enalteceu a importância daquele salão: “Além do ensino deficiente e precário, em 1930 e 1932 fomos dispensados dos exames por causa das revoluções ocorridas naqueles anos. Tornei-me bacharel por decreto! Nunca tive aula de direito penal”. Evandro afirma que aprendeu tudo na prática, como absoluto autodidata, assistindo diariamente às sessões do júri e imaginando o que faria caso, porventura, fosse o encarregado da defesa. “No corredor convivia com os grandes criminalistas, com e sem diploma, que me fascinavam. Dali saíram a Sociedade Brasileira de Criminologia e a ‘Revista de Direito Penal’ ”, ressaltou.
Ao longo de 60 anos de carreira, atuando em centenas de processos, Evandro acumulou vitórias no Tribunal do Júri a partir da fórmula que adotou desde a juventude: saber tudo de um pouco e um pouco de tudo. Ao mesmo tempo que seu conhecimento em matéria penal e penitenciária o guindava à posição de correspondente da Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil sobre esses temas, ele buscava também nas artes e nas ciências os elementos para melhor persuadir os jurados na defesa dos clientes. Um argumento, porém, usava de maneira permanente e em todos os casos: seu mais veemente repúdio à prisão, que considerava “monstruosidade como método penal, uma forma de tortura, a morte a conta-gotas”. Pioneiro na defesa de penas alternativas, admitia segregar apenas o perigoso, mas de forma humana. “O depósito de presos, com 30 onde só cabem cinco, é uma afronta à dignidade da pessoa. A insensibilidade das elites brasileiras não pode chegar ao ponto de conservar tal situação.”
Evandro não se intimidava de atuar em causas impopulares, como a defesa de Doca Street, que o levou a ser hostilizado pelas feministas quando, alegando “legítima defesa da honra”, obteve para o assassino confesso da amante a pena diminuta de dois anos, com direito a sursis. Menos conhecido do que esse, porém, foi um caso de resultado idêntico nos anos 1950, mas com uma mulher no banco dos réus. Zulmira Galvão Bueno matara com um tiro, por ciúmes, o marido Stélio Galvão Bueno, também famoso criminalista, que por ironia do destino antes de se converter em vítima recomendara à esposa: “Se algum dia precisar de advogado procure o Evandro Lins e Silva”. Ao justificar sua atuação em casos como esses, dizia: “O advogado tem o dever e o direito de pleitear para o cliente as garantias legais, o que não significa que esteja de acordo com a sua conduta. Não tenho o menor arrependimento de ter tirado alguém da cadeia”.
Clandestinidade e exílio
Chamado de volta pelo PCB após o término da guerra, Apolonio desembarca em dezembro de 1946 no Rio de Janeiro com a mulher, o primeiro filho, René-Louis, e o segundo, Raul, a caminho. Então com 34 anos e status de herói, preside a União da Juventude Comunista até o registro do partido ser cassado, alguns meses depois. O início da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética mudou profundamente a vida da família recém-chegada, como descreve Renée France no livro Uma Vida de Lutas (Editora Fundação Perseu Abramo, 2012): “Após 15 dias sumido, Apolonio apareceu e me disse para fazer as malas, porque íamos passar para a clandestinidade. Sem processo ou condenação, era difícil entender essa decisão, mas ele era disciplinado e naquele tempo não havia discussão: ou se obedecia ou se era excluído”.
Vivendo entre São Paulo e o Rio de Janeiro, Apolonio é designado, por sua experiência militar, para cuidar da segurança do Comitê Central, escolhendo os locais de suas reuniões, enquanto a função de Renée era cozinhar para os participantes. Até romper com o partido, durante a ditadura militar, seria ligado ao órgão de direção máxima, sem nunca fazer parte dele, porém. Em 1953 é destacado para um curso de marxismo na URSS, onde a mulher vai encontrá-lo dois anos depois, após deixar os filhos com parentes, na França. Quando retornam ao Brasil, em 1957, durante o governo de Juscelino Kubitschek, o PCB já se achava na semi-ilegalidade, situação que se manteria até março de 1964.
Após o golpe, nova clandestinidade. No PCB forma-se a Corrente Revolucionária, composta por inconformados com a falta de resistência aos militares que assumiram o comando da nação. A partir dela Apolonio, Mário Alves e Jacob Gorender fundam, em 1968, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), uma das organizações da luta armada que se bateria inutilmente contra um inimigo muito mais armado e que mandara “às favas os escrúpulos”, de acordo com a fórmula de Jarbas Passarinho na reunião ministerial que decidiu pelo AI-5.
Em 1970, Apolonio foi preso e barbaramente torturado, mas resistiu e – ao contrário do que ocorreria com Mário Alves – escapou da morte. Alguns meses depois, seguiu para o exílio com outros 39 presos políticos trocados pelo embaixador alemão, sequestrado com essa finalidade. Na prisão permaneceram seus filhos René-Louis e Raul, também integrantes do PCBR: o primeiro foi salvo por meio de outro sequestro – do embaixador suíço – e o segundo cumpriu três anos de prisão.
Quando, em 1979, a Lei da Anistia permitiu o retorno dos exilados, Apolonio se deparou no aeroporto com uma faixa cujo significado só ele entendeu: “Seja bem-vindo, seu Ivo”, em referência tanto a um dos nomes usados na clandestinidade como aos cabelos grisalhos que agora ostentava. No ano seguinte, no Colégio Sion, em São Paulo, sua eleição para vice-presidente do recém-fundado Partido dos Trabalhadores revelaria a intenção dessa legenda de dar abrigo à diáspora da esquerda. Em 2002, comemorou a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e antes de morrer, aos 93 anos, em 2005, sintetizou assim sua experiência: “Nesses combates vencemos às vezes, no mais das vezes somos derrotados. Todos os avanços civilizatórios arrancados ao capitalismo foram resultados do movimento social, com a presença ou sob a direção dos que lutavam pelo socialismo, que deve ser construído não apenas para o povo, mas com ele, como obra coletiva, indissociavelmente ligada à democracia”.
Ministro cassado
A vida política de Evandro Lins e Silva se desenrolou paralelamente à sua carreira jurídica. A partir de 1936 ele defendeu, ao lado de Heráclito Sobral Pinto, os presos políticos submetidos ao Tribunal de Segurança Nacional, arremedo ditatorial de justiça que durou até 1945. Com a redemocratização do país, participou, inicialmente, da ala esquerda da União Democrática Nacional (UDN), de onde sairia, em 1947, para fundar o PSB, ao lado de João Mangabeira, Joel Silveira e Rubem Braga.
Na década de 1950, Evandro atuou na defesa do então presidente do Banco do Brasil, Ricardo Jafet, e do jornalista Samuel Wainer. O primeiro era acusado de ter feito empréstimos irregulares ao segundo para fundar a Última Hora, solitário jornal apoiador dos governos nacionalistas da época. Durante esse processo aproxima-se do então vice-presidente João Goulart, que o convida para integrar, como representante da advocacia brasileira, uma comitiva que visitaria a China. Quando Jânio Quadros renunciou, em 1961, e Goulart assumiu a presidência, em seu curto e instável governo, Evandro foi nomeado sucessivamente procurador-geral da República, chefe do Gabinete Civil e ministro das Relações Exteriores.
Em agosto de 1963 foi aprovado pelo Senado como ministro do STF, cargo em que o ocupante, segundo sua própria definição, “decide o voto em cada julgamento não apenas de acordo com a lei, mas também a partir de suas convicções políticas”. Talvez por essa razão os órgãos da imprensa que viam com bons olhos a tomada do poder pelos militares clamaram pela cassação dos “comunistas” Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, o que, entretanto, só veio a acontecer em 1969. Até lá, Evandro participou de milhares de julgamentos, concedendo habeas corpus a presos políticos como Miguel Arraes, encarcerado por mais de um ano após sua deposição do governo de Pernambuco.
Na década de 1990, Evandro assumiu uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e consagrou-se como herói nacional por conta do impeachment que afastou Collor da presidência. Em 2000, conseguiu absolver José Rainha, que em julgamento anterior fora condenado a 26 anos de prisão. “Sou socialista, não acredito nessa globalização”, dizia no final da vida, acrescentando: “Quando eu morrer, pedirei ao Juiz Eterno, logo na abertura do processo, que me conceda meia hora para a defesa prévia. Acho que obterei a absolvição”.