Postado em 30/09/2010
texto: Carina Flosi
Muito além da correria e da mecanização de roteiros comerciais, a experiência do turismo pode ser encarada como uma atividade sensível, pedagógica e transformadora
Certa vez, durante uma viagem a Cubatão (SP), no início dos anos 1970, uma tempestade de chuva ácida atingiu a cabeça do fotógrafo Araquém Alcântara. Seu corpo foi tomado pela poluição líquida. Enquanto corria para se abrigar, percebeu que aquela poluição afetava as crianças – frequentemente vítimas de má formação de órgãos como o cérebro já no nascimento – e que a desgraça atingia, sobretudo, a comunidade local e miserável. Ali, naquela terra arrasada, o viajante deu seus primeiros passos na compreensão do que era sustentabilidade. Percebeu que as vidas dependem de uma terra sadia e que não há terra sadia sem bem-estar social.
A vivência que o fotógrafo viajante e sua lente registraram ele nunca mais esqueceu. “Aquele que mergulha na viagem do ver tem que estar sempre com as portas da percepção abertas. Sabe que, diante do eterno, precisa esquecer de si próprio. A criação é o que importa, gesto fundamental, caminho de conhecimento, poderosa arma de encontrar o mundo. A prática sempre renovada de contemplar humaniza a visão, anula verdades, permite a inventividade e realça o eu interior”, define Alcântara.
São essas experiências transformadoras que as viagens proporcionam que instigam, no Brasil, uma nova cadeia de desenvolvimento de roteiros conscientes, rotas que valorizam o modo de vida e a relação entre o homem e o seu meio.O novo conceito que ganha dimensão nacional é fazer com que os turistas sintam-se acolhidos e, de alguma maneira, vinculados ao destino. A intenção é que eles não sejam vistos simplesmente como pessoas que vem e passam por atrações estáticas, monumentos diversos. Eles vivem uma história, criam laços com o destino escolhido e fazem com que o turismo seja de maior qualidade tanto para quem recebe quanto para quem visita.
E são guiados por novos caminhos que fomentem o desenvolvimento socialmente justo, ambientalmente responsável e economicamente viável e equilibrado, favorecendo a geração de trabalho, renda e melhoria da qualidade de vida nos destinos turísticos. Em 2010, o Dia Mundial do Turismo aborda o tema turismo e biodiversidade – proposta que, no SESC-SP, foi ampliada para turismo e sociobiodiversidade.
Conforme lembra Danilo Santos de Miranda, diretor regional do SESCSP o turismo é visto como um meio de educação não-formal, e o turista brasileiro já está fazendo sua lição de casa. “O nosso turista já viaja consciente de que suas escolhas contribuem para a conservação do ambiente, de sua qualidade de vida e das pessoas. A partir da premissa de que é necessário conhecer para preservar, ele já demonstra ter noções de sua responsabilidade ambiental”, avalia.
Em sua opinião, nos momentos de lazer o turista deve experimentar, junto com a sensação de bem-estar, relaxamento e liberdade, além do reconhecimento do seu papel como agente contribuidor para a conservação do meio ambiente, do relacionamento saudável com a natureza, com as comunidades e com a cultura dos destinos turísticos visitados.
Essas novas preocupações sobre o turismo nacional vão sendo disseminadas em políticas públicas por meio da Plataforma Global para o Turismo Sustentável do Ministério do Meio Ambiente, vinculada à comissão de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas e sob a coordenação executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
O objetivo estratégico do ministério é propor a adoção de uma política de sustentabilidade ambiental para o setor do turismo, promover o ecoturismo como atividade que valoriza e conserva espaços naturais, com partilha justa dos benefícios resultantes, e aprimorar os instrumentos – inclusive os legais – de planejamento, controle, educação e fomento para o turismo sustentável.
Pelo menos 20 países já integram o grupo de discussão sobre a atividade e estão engajados na implementação da plataforma. No Brasil, além do governo participam mais outras 20 instituições e ONGs da área de meio ambiente e do setor de turismo. “O turismo avança na busca pela melhoria de sua sustentabilidade. Isso implica um progresso em direção à adoção dos princípios do desenvolvimento sustentável”, explica Allan Milhomens, coordenador-geral do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Ecoturismo e à Sustentabilidade Ambiental (Proecotur), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.
Isso implica manter, valorizar e proteger os recursos, as paisagens naturais e sua diversidade biológica, que são a base essencial para o desenvolvimento sustentável do turismo, contribuindo para a sua manutenção em longo prazo. “Por essa via, o turismo é potencialmente uma das mais viáveis alternativas para a promoção do desenvolvimento sustentável, e, desse modo, pode contribuir positivamente para a conservação ambiental. Na medida em que utiliza de maneira responsável o patrimônio natural como matéria-prima do produto turístico, o turismo favorece o ordenamento de usos e espaços territoriais onde a atividade se desenvolve”, acrescenta ele.
Na formação do viajante, o turismo é um importante vetor para sensibilizar o turista sobre as questões que afetam o meio ambiente e a qualidade de vida das pessoas. “Turistas conscientes demandam produtos e serviços turísticos sustentáveis, e, portanto, atuam como força de pressão capaz de impulsionar essa oferta de produtos e serviços turísticos sustentáveis, o que certamente induzirá a cadeia produtiva do turismo a oferecer produtos e serviços compatíveis com os interesses de consumo dessa demanda”, argumenta Milhomens, do Proecotur.
Especialistas de diferentes áreas que estudam os efeitos do contato direto do turista com o meio desconhecido afirmam que essa é uma forma atraente de proteger o ambiente natural e ao mesmo tempo aliviar o sedentarismo e o estresse humano é recolocar ambos em contato direto. “Assim, o prazer proporcionado pela convivência, onde o respeito e a preservação são fatores fundamentais para a própria existência de ambos, faz com que o homem, faça suas escolhas de vida baseado na situação em que se encontra”, reflete a cientista social Wanda Maldonado, diretora da Fundação Florestal.
No entanto, os estudiosos apontam que, quando se trata de sustentabilidade no turismo, todas as ações têm necessidade de ponderar causa e efeito de cada passo executado em um roteiro, numa avaliação e reavaliação constante de suas práticas, conduzindo para mudanças de atitudes e valores do viajante. “A função fundamental do turismo é a promoção da dupla transformação entre o turista e o morador local. Assim, quando o turismo agrega a cultura local, a comunidade percebe a sua cultura valorizada pelo outro. E, em geral, o visitante está aberto a essa experiência, ele absorve um novo modo de vida”, avalia a cientista.
Nas palavras de André Luís Soares, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento do Ecocentro Ipec (Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado), o turismo é um complemento às atividades de educação e formação. “Além de trazer uma nova oportunidade de renda para a comunidade e para a região, ele ajuda a complementar a missão de informar, educar e trazer o turista para contribuir com o cuidado e com a restauração do ambiente em que vivemos. Então esse turismo não é apenas uma visita a um lugar bonito ou a um atrativo interessante, mas também uma interação positiva que contribui para o turista e para a comunidade”, defende. O objetivo é que a cada visitação o turista se torne um cidadão mais consciente porque percebe que é possível preservar e reaproveitar os recursos naturais.
Para a cientista social, mestre em ciência ambiental e professora da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) Andréa Rabinovici, o turismo, pelo fato de promover encontros entre pessoas, culturas e localidades diferentes, tem um rico potencial transformador. “No Brasil, não importa muito o rumo, o roteiro, é uma questão de experimentar, de se deixar sair da rotina, do óbvio. Nem precisa ser um lugar excepcional, de vista cênica. Conhecer e conviver um pouco o Brasil em sua enorme diversidade ambiental e cultural, a rotina dos brasileiros, sua arte, seus trabalhos, seus problemas e desafios e os ambientes naturais que possuímos e que são pouquíssimo conhecidos deveria ser uma experiência obrigatória, tal como um estágio, um intercâmbio prolongado com nossa sociobiodiversidade. Não tem como ficar igual, sair apático e conformado com nossas diferentes realidades, no que elas têm de belo e de desafiador. Viajar é isso, só falta a indústria turística entender para todos saírem ganhando”, resume.
“Se todos os atores sociais envolvidos com a atividade turística estiverem preocupados com a transformação dos indivíduos e da sociedade, os planejadores turísticos poderão, nos roteiros, dar mais espaço aos encontros entre visitantes e visitados, ao compartilhamento de suas rotinas e afazeres cotidianos, sem centrar as visitas nos atrativos turísticos mais comuns, que muitas vezes não significam nada para as pessoas das localidades. Podem também chamar a atenção aos caminhos percorridos, e não somente nos atrativos destacados, interpretando os múltiplos significados de cada aspecto cultural que seja desconhecido aos visitantes”, completa Andréa Rabinovici.
Na opinião dela, em qualquer segmento da atividade turística, desde o turismo de base comunitária até o convencional, os planejadores e operadores devem dar maior espaço às experiências pessoais de contato com a natureza e entre as pessoas ao mesmo tempo em que busquem promover e provocar estes encontros através de vivências e atividades dirigidas – não se trata, portanto, de condenar a priori o turismo convencional, mas de buscar continuamente aperfeiçoá-lo para tornar a sua experiência mais e mais interessante e marcante.
“Isso se faz com criatividade, originalidade e sensibilidade, sempre aceitando os riscos e desafios que uma proposta inovadora pode promover. O ideal é sair da padronização e das armadilhas de uma prática extremamente comercial, tida como uma das grandes indústrias contemporâneas e que está presa à lógica capitalista em sua forma, mas que tem a troca não comercial e a busca de conhecer o diverso, como pressuposto. Sendo criativo e livre, esse turismo é possível de ser aplicado e passa a ser viável para todos os grupos e classes sociais”, avalia a especialista.
Para César Haag, coordenador de socioeconomia do Programa Amazônia, da Conservação Internacional, somente por meio da compreensão da importância da biodiversidade local acontecem viagens responsáveis, que promovem a conservação da natureza ao mesmo tempo que fomentam o bem-estar da população local.
“A conscientização apenas acontece quando os turistas e as comunidades descobrem que podem assumir com comprometimento mudanças no modo de pensar”, diz. A Conservação Internacional-Brasil trabalha diretamente com as comunidades que habitam regiões de alta biodiversidade, ajudando a identificar e a desenvolver atividades econômicas que não degradem o meio ambiente, nem no curto nem no longo prazo.
“O turismo é uma atividade que surgiu como opção econômica para a região, e também como ferramenta para aliar o desenvolvimento regional à proteção ambiental. Não apenas o turismo de veraneio, mas uma atividade turística organizada e sustentável, que utiliza o patrimônio natural e cultural em benefício da comunidade local”, acrescenta Mario Mantovani, diretor de políticas públicas da Fundação Mata Atlântica, que mantém no Complexo Estuarino Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá, conhecido como Lagamar, um dos primeiros pólos ecoturísticos do Brasil. O projeto possibilita às comunidades caiçaras o exercício de suas atividades dentro dos padrões culturais estabelecidos historicamente.
Pesquisa realizada por Zysman Neiman, professor da Ufscar e autor de uma tese sobre educação ambiental através do contato com a natureza, desenvolvida ao longo de 12 anos entre visitantes do Petar (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira), mostra que todos passaram, de alguma forma, por experiências transformadoras nos seus contatos com ambientes e culturas conservados. “O contato com a natureza é efetivo em gerar atitudes e motivações ambientalistas. Muitos desses educadores foram apresentados à questão ambiental através de um contato intenso com a natureza, daqueles que mexem e desviam-nos dos nossos rumos”.
Na partilha justa dos benefícios oriundos da atividade turística, como preconiza o Ministério do Meio Ambiente, as comunidades visitadas também devem sair ganhando.
No Ceará, a ONG Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri, premiada pela Unicef e pelo Ministério da Cultura, desde 1992 atua na formação de crianças e jovens protagonistas em gestão cultural por meio de seus programas de memória, comunicação, artes e turismo. Este último surgiu da necessidade de sistematizar ações para potencializar ganhos com o crescente fluxo de turistas que vão anualmente conhecer de perto a experiência da fundação. “Já recebemos mais de 30 mil visitas, nove vezes a população urbana da cidade de Nova Olinda [onde se concentra o projeto], numa intensa troca de experiências. Os turistas aprendem com as crianças, pesquisam em nossas salas de estudos e respiram um pouco de nossa cultura”, conta o coordenador da Fundação Casa Grande, Aécio Diniz.
Nesse programa foram criadas as pousadas domiciliares, onde os hóspedes ficam nas próprias residências dos meninos da Fundação. Com o reforço financeiro, os pais puderam investir melhor na educação dos filhos, tornando-se parceiros e defensores do projeto.
Bonito (MS) é outro exemplo interessante de como conciliar interesses em prol do desenvolvimento mútuo. A preocupação ambiental é marcante em todos os passeios, a maior parte realizada em fazendas particulares. Na década de 1990, os fazendeiros perceberam que, além de criar gado, poderiam ganhar dinheiro com a exploração das belezas naturais de suas terras. Assim, adquiriram licença ambiental e passaram a investir em ecoturismo – o que incluiu a capacitação dos guias, que passaram a disseminar entre os turistas regras para manter o equilíbrio ecológico de cada atração visitada.
Foram criadas também Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), nas quais são realizados planos de manejo e de monitoramento, além de ações de proteção do ecossistema. Praticamente todas as atrações limitam o número diário de visitantes. Uma das mais famosas de Bonito, o Abismo Anhumas, a 23 quilômetros do centro, é um exemplo de acesso controlado. Por dia, apenas 22 pessoas podem conhecer o paredão rochoso de 72 metros localizado numa fenda no meio da mata. Preserva-se, assim, o patrimônio natural da região, que ao mesmo tempo perpetua a riqueza e estimula a criação de uma cadeia de valor que se estende das reservas aos monitores, agências, fazendas, hotéis, restaurantes, etc.
Segundo o professor da Ufscar Zysman Neiman, a sociedade contemporânea em geral é carente do contato direto com a natureza. “O alerta para a provável escassez dos bens naturais despertou os indivíduos adormecidos às questões ambientais, que mais que depressa se viram motivados para conhecer esses atrativos antes que eles se esgotem. Isso transformou as paisagens e seres em ‘produtos’ e atraiu mercados”, postula.
Nesse sentido, o ecoturismo e o turismo de base comunitária funcionam como instrumento possível de aproximação entre o ser humano e o meio ambiente natural, auxiliando uma aprendizagem através da experiência e a promoção da busca de reformulações para os aspectos indesejáveis da vida cotidiana.
“A situação de contato pode ser aproveitada para incorporar a importância da conservação da natureza, de forma agradável e devidamente contextualizada”, completa Rabinovici. “O ambiente natural deixa de ter apenas valor utilitário ou comercial e passa a ter valor existencial. Da mesma maneira, o semelhante deixa de ser exó-tico e volta a ser humano: o espaço das diferenças não mais afasta, torna-se um espaço de aprendizagem.”
O turismo tem então o potencial de se transformar, nessa dimensão, uma profunda e instigante aventura. Educativa e transformadora.