Postado em 13/05/2013
Por: FELIPE OBRER
Nela o que mais desperta a atenção são o sabor, textura e a aparência. Nas feiras e nos mercados do Brasil, as mais ofertadas são as qualidades gala e fuji. Aos montes. Antes, as trazidas da Argentina deitavam e rolavam; hoje, as prateleiras do varejo nacional são em sua maior parte abastecidas pela produção interna, cabendo apenas uma pequena parcela às variedades importadas. Originária da Ásia ocidental e considerada há séculos nos países nórdicos símbolo de fertilidade, a maçã carrega representações que renderiam um bom tratado de semiótica. Aqui, contudo, muito além do mito bíblico do fruto proibido que motivou a expulsão de Adão e Eva do paraíso, o destaque fica por conta de suas potencialidades como produto de largo consumo.
A maçã pode ser fresca, mas pode também ser do amor, nos parques de diversões, ou ser servida na forma de torta, ou strudel germânico. Mais próxima do natural, é consumida desidratada ou em chá – depurador do sangue e diurético –, ou ainda transformada em aperitivo crocante. A pectina, encontrada principalmente na casca, ajuda a manter níveis saudáveis de colesterol, beneficiando as artérias e o coração. As crianças levam maças na lancheira ou as recebem na merenda escolar. Em alguns estados, a fruta integra oficialmente o cardápio oferecido aos alunos das escolas públicas. E, para muitas pessoas, ela é o alimento mais importante do desjejum. Enfim, é parte de nossa rotina.
É no sul do país que se concentra a maior parte da produção local de maçã. Isso se explica, em grande medida, pelas características climáticas da região, que oferece as horas de frio necessárias a seu crescimento. Pierre Nicolas Pérès, presidente da Associação Brasileira de Produtores de Maçã (ABPM), sediada em Fraiburgo, em Santa Catarina, afirma que aquele estado cultiva e colhe a maior safra do Brasil (49%), seguido de perto pelo Rio Grande do Sul (46%) e de longe pelo Paraná (5%). Na Bahia, em Minas Gerais e em São Paulo, ele diz, há apenas “traços” de produção.
Francês de origem e no Brasil desde 1985, Pérès tornou-se membro da ABPM no ano seguinte, participando de fóruns técnicos e comerciais. Ele relata ter aprofundado seu envolvimento “quando a associação precisou de um produtor para representá-la nas reuniões internacionais do setor”. Atual presidente da ABPM, ele conta que em 1963 foi feita uma importação de porta enxertos de todas as variedades que frutificavam à época nos pomares da França, passo inicial de um estudo que culminaria com a indicação da variedade que seria mais adaptada ao Brasil. A pesquisa foi bancada pelo setor privado e, posteriormente, assumida pela Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) e pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Desse trabalho, que durou 14 anos, nasceu a cultura de maçã brasileira moderna, que conseguiu substituir no mercado o produto até então totalmente importado. Em 2011, somente 9,67% da maçã consumida in natura no país era de origem estrangeira, comprada principalmente na Argentina (76,4%) e no Chile (13%).
Moisés Lopes de Albuquerque, diretor executivo da ABPM, esclarece alguns dos motivos que colaboraram para a posição de liderança da maçã nacional no mercado doméstico. “As variedades cultivadas no Brasil, seja a gala seja a fuji (cerca de 93% da produção), agradam bem mais ao paladar do brasileiro que a variedade red delicious, da Argentina.” Ele destaca que, com o aumento expressivo da oferta local, houve uma redução importante do preço do fruto, contribuindo para atrair definitivamente o consumidor brasileiro. Um dos principais entraves que impede que a queda seja ainda maior, assim como acontece em outros setores produtivos, está na cadeia comercial. “Intermediadores provocam aumentos consideráveis”, explica Albuquerque. Segundo ele, ao longo dos oito primeiros meses de 2012, o preço médio de comercialização de uma caixa de 18 quilos foi de R$ 25,50, cerca de 8% acima do valor cobrado no ano anterior. “Ocorre que, de acordo com o Instituto de Economia Agrícola, o mesmo produto foi negociado em igual período no varejo paulistano (de longe o maior comprador e referência para todo o país) a R$ 74,00, ou seja, três vezes mais. Não há razão para tamanha diferença entre o preço do produto beneficiado no setor produtivo e aquele no varejo”, ele diz.
Uma curiosidade: independentemente da ação de atravessadores e dos valores cobrados pelo fruto, a maçã raramente sai do pomar e segue direto para a mesa do consumidor. A variedade gala, por exemplo, é colhida entre janeiro e fevereiro, e a fuji, entre março e abril. Ou seja, a maçã que você comprou fora dessa época saiu das câmaras frias dos produtores, um procedimento normal que tem a vantagem de manter o fornecimento ininterrupto durante o ano inteiro.
Maior resistência
Pérès relata que, em 1986, aconteceu a primeira exportação de maçã, tendo como destinatário a Holanda. A partir de 1999, segundo ele, a balança comercial do setor tornou-se positiva, tendo o Brasil levado menos de 20 anos para consolidar sua posição de país exportador, um salto fenomenal ante a condição anterior que o apresentava como mercado essencialmente importador. Conforme dados da ABPM, 25 países compram maçã do Brasil. O destaque, em 2012, ficou por conta da Holanda (21% do volume embarcado), seguida por Bangladesh (16%), Reino Unido (15%), Irlanda (8%) e Alemanha (7%). Em geral, entre 20% e 30% dos frutos (dependendo do ano, principalmente em função de maior ou menor precipitação de granizo) não atingem qualidade suficiente para ser comercializados in natura. Nessa circunstância, são endereçados à indústria de processamento, em especial para a fabricação de suco concentrado, que será, em sua esmagadora maioria, vendido para os Estados Unidos. A ABPM informa que cerca de 6% da produção é exportada e 64% a 74% dela é negociada in natura no Brasil.
A despeito de absorver a maior parte da oferta nacional, a demanda por maçãs per capita local, de por volta de 4,64 quilos ao ano (números de 2007), coloca o país numa posição pouco elogiável no ranking dos 32 produtores mundiais do setor (em 2009, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação apresentava o Brasil entre os dez maiores). Estamos à frente apenas da África do Sul (4,11 quilos/ano), Bulgária (4,31 quilos/ano) e Argentina (4,40 quilos/ ano), e longe do consumo da Turquia, o maior apreciador de maçãs do planeta, que há cinco anos respondia pela demanda anual per capita de 31,68 quilos.
Tendo isso em vista, esforços vêm sendo desenvolvidos para estimular o consumo interno do fruto da macieira. “Em conjunto com a Epagri e a Embrapa, foi estruturado e cofinanciado um programa de melhoria, adaptação e modernização do setor”, salienta Pérès. De acordo com o presidente da ABPM, foram encomendados vários estudos ao longo dos anos para conhecer melhor o mercado e o consumidor, permitindo antecipar as necessidades. “Além disso, desde muito cedo os órgãos de pesquisa trabalharam com afinco para adaptar a condução dos pomares, dos porta-enxertos, da adubação e das podas com a intenção de maximizar a produtividade, um trabalho tocado em parceria financeira e técnica com o setor produtivo e que acabou dando um bom resultado.” Pérès diz que foram anos de trabalho com o objetivo de ajustar as variedades e, na mesma proporção, obter maior resistência às doenças e às pragas nos novos cultivares.
Sobre o panorama atual, ele explica que “em 2010 a expansão do plantio da maçã atingiu um marco, passando de crescente a estável, com tendência negativa”. E esclarece: “O potencial atual de produção dos pomares é de 1,5 milhão de toneladas. A safra de 2012, por exemplo, foi de 1,2 milhão de toneladas, em função de eventos climáticos negativos–geada na primavera, chuva na florada e granizo ao longo do período de crescimento das frutas”. Seja como for, o fato é que os números atuais do setor representam um salto fenomenal ante os resultados de exercícios passados. Em 1980, por exemplo, a produção local de maçãs era inferior a 20 mil toneladas, volume que, em 1990, roçou nas 500 mil toneladas, pouco mais de 40% da oferta atual.
Independentemente do recuo re- gistrado na última colheita, há muito que festejar. Albuquerque, o diretor da ABPM, aponta como conquistas da maçã nacional a adequação ao gosto dos consumidores e a redução do preço: “Conseguimos popularizar o consumo da fruta no Brasil. No início da década de 1980, de cada dez maçãs compradas pelos brasileiros, nove eram importadas, o fruto era caro e eram poucos os que podiam se dar esse prazer”. Hoje, a equação é outra, diametralmente oposta: de cada dez unidades consumidas no país, nove são nacionais. “Infelizmente, nos últimos anos, o câmbio e o custo Brasil têm reduzido a participação do país no mercado internacional do setor.” Como fator positivo, Albuquerque cita a isenção do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) obtida em nove estados (Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo). “A maçã é a única fruta de cultivo representativo no país a pagar esse imposto”, observa o diretor da ABPM.
Um dos principais desafios enfrentados pelos produtores dos estados sulinos é a incidência de granizo em boa parte das regiões em que a maçã é cultivada. Para contornar o problema, que gera perdas relevantes, articulou-se no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) a ampliação do Programa de Incentivo à Irrigação e à Armazenagem (Moderinfra), que tem entre suas atribuições oferecer financiamento a juros baixos para a instalação de telas de proteção sobre as macieiras, reduzindo a vulnerabilidade dos pomares. Em março do ano passado, o Conselho Monetário Nacional (CMN) aprovou um incremento no volume de recursos, provenientes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “Tivemos em 2012 um sobrelimite de R$ 1,3 milhão à linha do Moderinfra, que chegou a R$ 2,6 milhões no total”, conta Albuquerque.
Há boas notícias também quanto à regulamentação. Segundo Nicolas Pérès, “em parceria com o Mapa, foi realizada a classificação da fruta – trabalho que terminou com a publicação da instrução normativa no 5, a primeira desse tipo a ser elaborada”. Um outro avanço importante, no entender do presidente da ABPM, diz respeito ao êxito da estratégia brasileira com o programa de erradicação da Cydia pomonella, também conhecida como Carpocapsa, a principal praga da maçã e da pera. “Introduzida na zona urbana pela maçã argentina, ela ameaçava entrar nos pomares. Junto com o Mapa, a Embrapa e as secretarias da Agricultura dos três estados do sul do país, foi criado um programa para eliminar o inseto causador da doença, e hoje o Brasil está a um passo de erradicá-la, fato único no mundo e que virou assunto de interesse das agências internacionais”, afirma Moisés Albuquerque. Ele comenta que o programa de combate à Cydia teve início em fins dos anos 1990 e, no último ciclo (2011 e 2012), apenas um inseto foi capturado no país.
Força de trabalho
O diretor da ABPM lista outras pragas que desafiam o setor e as ações em curso para fazer contraponto a elas. “Estamos empenhados no controle químico da mosca-das-frutas e investimos em melhoramento genético das macieiras, o que incluiu, até mesmo, a introdução de cultivares mais bem adaptados às condições climáticas nacionais, com re- sistência múltipla às doenças, períodos de maturação e de colheita diferenciados, alta qualidade dos frutos e elevada capa- cidade de conservação sob refrigeração.” Ele diz que, entre as principais pragas que atacam os pomares brasileiros, a mosca-das-frutas é a única para a qual o produtor ainda não dispõe de controle alternativo ao produto químico. “Por isso estamos defendendo, juntamente com a Embrapa, o projeto de uma biofábrica com vistas ao desenvolvimento de macho estéril de mosca, bem como de inimigos naturais.” Albuquerque aponta também como inimigos da cultura da maçã a sarna da macieira, a mancha foliar da gala, a podridão amarga e o oídio. “A Epagri possui um trabalho excelente de melhoramento genético da macieira, mas carece de recursos para ampliar e aprofundar os estudos”, sustenta.
Outro contratempo dos produtores de maçã, de ordem socioeconômica, é a crescente escassez de mão de obra. Ao mesmo tempo em que ela diminui, fica cada vez mais cara. Albuquerque explica que o cultivo da maçã, que no Brasil emprega mais de 150 mil pessoas, é altamente dependente da força de trabalho. “Em 100 hectares, grandes culturas como as de grãos, por exemplo, trabalham com apenas um empregado, ao contrário da maçã, que para a mesma área requer os préstimos de 150 pessoas”, ele diz. Pérès, por sua vez, assinala que o setor se empenha, no momento, em aumentar a mecanização, visando reduzir o desembolso com a mão de obra, que representa 70% do custo total da fruta.
Há autores que consideram que a cultura de maçãs faz uso intensivo de insumos, especialmente de agroquímicos. No entanto, a preocupação social com questões como saúde e ecologia é crescente. Ao ser questionado a respeito da produção de maçãs orgânicas, Pérès esclarece: “O clima do sul do Brasil não é favorável a esse tipo de cultura. Todas as tentativas malograram: chove demais na região e, mesmo protegendo cada fruto com sacos de papel, a árvore acaba sendo prejudicada”. Apesar disso, ele diz que pequenos produtores estão conseguindo cultivar maçãs orgânicas em escala reduzida, em áreas mais favoráveis, em locais altos e com menos chuva.
A produção integrada – conhecida no Brasil como PI –, que atualmente se aplica a inúmeras culturas, teve a maçã como setor pioneiro, que adotou medidas como a criação de um selo e de numeração para possibilitar que os frutos sejam rastreados. O sistema preconiza a produção através de métodos ecologicamente seguros e a racionalização do emprego de agroquímicos, segundo a literatura científica disponível. “É preciso ressaltar que o produtor brasileiro de maçã faz uso de tecnologias que, ainda que não enquadrem o produto na categoria de orgânico, permitem a oferta de um fruto que preenche os requisitos de segurança e cujo cultivo não agride o meio ambiente”, garante Albuquerque. Ele salienta que a maçã brasileira integra a merenda escolar de crianças na Europa, “importador tradicionalmente rigoroso, em especial quando se trata de alimentação infantil”. Além disso, explica, diversos produtores brasileiros têm certificações internacionais que permitem a exportação a mercados exigentes.