Postado em 01/12/2012
"O filme de autor negro é um fenômeno desconhecido no panorama cinematográfico brasileiro, o que não acontece absolutamente com o filme de assunto negro, que, na verdade, é quase sempre uma constante, quando não um vício ou uma saída inevitável.” Tal declaração parece ter sido feita ontem, mas trata-se de uma afirmação do cineasta e crítico David Neves (1938-1994), inserida no livro O Negro Brasileiro e o Cinema (Pallas Editora), lançado em 1988, pelo jornalista e pesquisador carioca João Carlos Rodrigues, e que ganhou nova versão no ano de 2012.
Filmes com atores negros no elenco são parte da cinematografia nacional. É possível destacar três momentos nessa história: a época das chanchadas, comédias musicais que tiveram seu período áureo entre 1930 e 1950; as produções do estúdio Vera Cruz; e o Cinema Novo.
Durante a época de ouro da chanchada, o público comparecia em massa às sessões. A grande atração era a parceria entre os atores Oscarito (1906-1970) e Grande Otelo (1915-1993). A dupla formada por um ator negro e outro branco, de acordo com o cineasta e autor do livro Dogma Feijoada – O Cinema Negro Brasileiro (Imprensa Oficial, 2005), Jeferson De, foi a celebração cinematográfica do convívio entre negros e brancos, mas que revelou assimetrias e tensões. No livro vemos que Grande Otelo se queixava quando seu nome vinha depois do de Oscarito, que não concordava com a disparidade salarial e se opunha a servir de escada para o parceiro.
Posteriormente, vemos os personagens negros nas produções da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, inaugurada em 1949, pelo produtor italiano Franco Zampari e pelo industrial Francisco Matarazzo Sobrinho. Nos filmes da companhia, em geral a representação do negro era mediada pela ideologia liberal que a regia. Para De, um exemplo dessa postura é o filme Sinhá Moça (Tom Payne, 1953). “Um melodrama histórico que mostra como a Vera Cruz tratou a questão racial. No filme os negros são símbolos do arcaico, que deveriam ser preparados para o trabalho disciplinado que a liberdade do capitalismo exigiria”, justifica.
Ainda para o autor, o terceiro momento se deu com o Cinema Novo, ou, em sua designação, o cinema pré-novo. O negro e aspectos da sua cultura e história estão na maioria dos filmes da primeira fase do movimento, cuja temática reunia o Nordeste, o litoral e a favela.
É o que vemos em filmes como Aruanda (1959-1960), de Linduarte Noronha, Barravento (1962), de Glauber Rocha, e Ganga Zumba (1964), de Carlos Diegues, “que é o filme negro por excelência, desenvolvido sobre o problema da cor. Nele, os personagens existem em função dela, vivem, lutam, morrem e se imortalizam por ela. Num sentido restrito, é o único filme de assunto negro feito pelo cinema novo”, explica.
Embora essa trajetória mostre avanços no tema, falta à produção contemporânea mostrar o negro contemporâneo. Essa é a opinião da professora de Língua e Literatura Francesa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora de Literatura Afro-Brasileira Lígia Fonseca Ferreira, organizadora do livro Com a Palavra Luiz Gama (Imprensa Oficial, 2011), que reúne artigos, cartas e poemas do abolicionista e intelectual negro que viveu em Salvador entre os anos de 1830 e 1882. “Às vezes a publicidade está mais próxima do negro atual ao apresentar diferentes vivências que se mostram ausentes no cinema”, diz. A professora acrescenta que uma referência expressiva para esse pensamento é o trabalho do geógrafo Milton Santos (1926-2001), que, ao ser questionado sobre sua opção pela Geografia, disse preferir o movimento. “Cito o Milton, pois estamos vendo o negro em ascendência, o que precisa se refletir na mídia e no audiovisual. Negros em movimento e em várias direções”, completa.
Outra questão atual ligada à representação do realizador negro são as séries televisivas. Para De, nada mudará enquanto os negros forem apenas objetos de retratos. “A mudança virá quando os negros se tornarem protagonistas da produção, direção e roteiro”, sintetiza.
Sociedade miscigenada
Ciclo de filmes exibidos pelo SescTV inspirado no trabalho do geógrafo Milton Santos foi destaque na programação especial do Dia da Consciência Negra
No ano 2000, o geógrafo Milton Santos escreveu um artigo publicado pelo jornal Folha de S.Paulo, em virtude da comemoração dos 500 anos de descobrimento do Brasil e a ação abolicionista, que tem como marco o ano de 1888 e a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, instituindo o fim do trabalho escravo no Brasil.
O texto do geógrafo, com o título Ser Negro no Brasil Hoje, inspirou o ciclo Ser Negro no Brasil O Que É?, destaque da programação do SescTV, entre os dias 20 e 25 de novembro, em lembrança ao Dia da Consciência Negra, celebrado em homenagem a Zumbi dos Palmares, líder quilombola que foi morto em 20 de novembro de 1695.
Para a professora da área de Língua e Literatura Francesa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora de Literatura Afro-Brasileira e abolicionismo Lígia Fonseca Ferreira, a seleção dos filmes proposta foi interessante, pois são obras que não reproduzem o estereótipo do ator negro no cinema, em especial Quase Dois Irmãos, (2004) de Lúcia Murat. “É um filme sensacional. O ‘quase’ do título mostra que ainda há uma separação entre negros e brancos no Brasil, simbolizando um processo de miscigenação que não está completo. Não existe ‘quase eu te amo’, como não existe ‘quase dois irmãos’. Essa percepção foi muito feliz e, mesmo sendo ficção, nos projetamos na história”, comenta.
Além de produções que ficaram marcadas na história do cinema, como Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, e Compasso de Espera (1973), único filme do dramaturgo Antunes Filho, que trouxe à tela o primeiro personagem negro como parte da classe média, houve a exibição do documentário inédito Em Quadro: A História de 4 Negros nas Telas, (2009), de Luis Antônio Pilar.
Após cada exibição, um especialista comentou não os filmes em si, mas temas transversais a eles. Entre os convidados estavam o historiador Joel Rufino dos Santos, a cineasta Lúcia Murat e o ator e diretor Zózimo Bulbul.
Na opinião da Técnica de Programação do SescTV, Sílvia Garcia, a programação não tinha objetivo de denúncia “e sim de expor obras de arte emblemáticas, que revelam questões sobre o negro brasileiro e sua atual representação na sociedade. Por isso o nome do ciclo, porque existem várias formas de vivenciar essa indagação”.
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