Postado em 01/12/2012
Antropólogo, sociólogo e filósofo francês nascido em 1921, Edgar Morin expandiu as fronteiras do pensamento ocidental, tornando-se referência no estudo das ciências humanas em todo o mundo, arrematando muitos admiradores.
Parte deles pôde vê-lo de perto no encontro entre o autor e o público promovido pelo Sesc Pompeia em 30 de outubro, para o lançamento de sua coleção de diários, publicada pela Edições Sesc.
Com um viés profundo e reflexivo de análise, Morin escreveu mais de 30 livros, entre eles Pensar a Europa (Publicações Europa-América, 1988), O Método (Volumes 1, 2, 3 e 4, Publicações Europa-América, 1991/1992), Meus Demônios (Bertrand Brasil, 1997), Introdução ao Pensamento Complexo (Sulina Editora, 2011) e Um ano Sísifo (Edições Sesc, 2012).
No depoimento a seguir, o pensador relembra o processo de composição de seus diários e fala de sua relação com a vida e com o tempo. “Ler os diários me permitiu uma tentativa de reconhecimento, estabelecendo o que é importante e o que é secundário”, afirma.
Por que escrever diários?
Quando eu era adolescente, tinha muitos colegas na escola, mas sentia uma grande solidão interior e não falava dos meus problemas mais profundos com os meus amigos. Eu era filho único e minha mãe morreu quando eu tinha 10 anos. Então, escrevi um diário. Eram notas que costumava registrar naqueles blocos, que se tornaram meus confidentes. A eles eu confiava minhas preocupações, pensamentos e reflexões.
Comecei a escrever os diários entre os 12 e 13 anos de idade e parei de escrevê-los no fim da adolescência, aos 20 anos, ainda sob a ocupação nazista na França. Nesse período decidi entrar para a resistência francesa, ou seja, decidi correr riscos, ter uma vida ativa, por isso abandonei o hábito de escrever diários por muitos anos. Mas decidi retomar após uma hospitalização em Nova York, quando fiquei um mês em coma e perguntei para mim mesmo: depois de uma vida assim, o que é importante e o que é secundário, o que eu devo abandonar? Em que eu acredito? Essas eram questões que eu sempre me colocava e escrevi um pouco para meditar.
Fiz um tipo de diário que alternava essas meditações, que publiquei dez anos mais tarde. Considero que um diário é, primeiramente, uma luta contra o tempo. Utilizei-os para fazer com que os dias não se dissolvessem inteiramente e que ficassem deles alguns vestígios dos quais eu poderia ressuscitar ao menos através da memória e da mente. Isso significa correr atrás da vida que está partindo ou avançando. Assumo que, ao reler essas notas, sempre tenho um grande prazer ao encontrar pessoas e acontecimentos que, caso não tivesse registrado, eu teria esquecido.
Um diário é também um caldo de cultura, ali existem reflexões, ideias, pensamentos que de alguma forma serão o início de algo. Os Diários da Califórnia guardavam em si um caráter existencial, pois era a época do movimento hippie, da contracultura. Inspirei-me na juventude californiana e seu Peace and Love, a ideia de vida comunitária e livre. Os diários servem ainda como instrumento de trabalho. Em 1991 fui convidado a visitar a China e fiz um diário com o relato da minha vivência no país.
O que somos e o que aparentamos ser
Eu sabia que os diários escritos por mim seriam publicados, então pensei em até que ponto eu deveria expor neles a minha vida particular. Será que eu posso falar das pessoas abertamente, devo tomar cuidado? Também tenho uma parte da minha vida que continua subterrânea, o que talvez possa decepcionar as pessoas, contudo, cada um tem uma parte da vida clandestina, uma parte de sombra.
Muitos aspectos da minha vida particular se tornam transparentes, então existe uma questão que assumi, pois de certa maneira sou discípulo de Jean-Jacques Rousseau [filósofo francês, 1712-1778], que escreveu suas confissões e tentou se mostrar como era. Ele estava persuadido a falar toda a verdade sobre si mesmo, mas a sinceridade não basta, porque nós nos enganamos, por mais sinceridade que eu aparente, pode ser que eu esteja fazendo um teatro, enganando a mim mesmo.
Várias pessoas escrevem suas memórias e também publicam seus diários, muitos fazem isso para enaltecer a sua própria estátua, mas eu preciso “desestatificar”, negar essa aura impenetrável. Eu recebo honras, sou aplaudido e isso me transforma em estátua, mas, por outro lado, minha vida em Paris é composta de atividades comuns, vou à feira e ando de metrô.
Arquivo de ideias
Nas relações entre os diários podemos ver o conjunto do meu pensamento e da minha obra. Sou animado por uma ética da auto- observação. Acredito que essa prática é necessária, pois cada um pensa conhecer a si mesmo, mas nos conhecemos muito mal, porque mascaramos as nossas carências, nossos defeitos e ressaltamos o que acreditamos ser as nossas qualidades ou um teatro das nossas qualidades.
Não há conhecimento sem autoconhecimento, isso é um ciclo permanente entre o que estamos observando e o sujeito que queremos conhecer.
Uma das minhas divisas é: não há razão sem paixão e nem paixão sem razão. O nosso sofrimento pode nos educar para entendermos o sofrimento alheio. Não há razão nem sabedoria fria, pois devemos nos arriscar na vida, essa é a primeira lição. A segunda está em meu livro Um ano Sísifo. E por que se chama assim? Porque uma vez que ele estava terminado precisávamos recomeçá-lo.
Não há vida sem o recomeço permanente. A complexidade está sempre presente nos diários e um grande problema da vida é reconhecer essa complexidade. E, finalmente, eu acho que ler os diários me permitiu o reconhecimento do que é importante e do que é secundário. Às vezes me deixava levar, dispersar, mas sempre me perguntava: “Será que isso é necessário na idade na qual estou?”.
Amor, amizade são as coisas mais importantes? Há pouco tempo eu recebi um comunicado feito por um amigo desenhista, que está com leucemia. Em resumo dizia: “A morte me chamou: você vem, meu querido?”. E eu respondi a ele: “Morra você”.
Nesse comunicado, que eu considero incrível, ele diz que em seu estado é obrigado a se livrar das coisas secundárias e que ficará apenas com as importantes, que são o amor e a amizade. O que eu entendo como a lição final.