Postado em 20/03/2013
MILU LEITE
No final de 2012, a saga de Harry Potter, escrita pela inglesa J. K. Rowling e tida como um dos maiores fenômenos da literatura mundial, ganhou uma edição especial da Rocco e saiu numa luxuosa caixa com sete volumes. Que obra brasileira recebeu tratamento semelhante no exterior, um sonho de muito escritor pátrio pouco acalentado, diante da falta de interesse do mercado internacional? Apesar disso, temos uma boa notícia: a despeito de todos os senões, ao que parece esse panorama vai mudar.
Depois de anos de marasmo e falta de perspectiva, a indústria editorial se agita em torno de debates sobre o Programa de Internacionalização do Livro e da Literatura Brasileira, com um investimento federal da ordem de US$ 35 milhões que pretende, até 2020, colocar escritores brasileiros nas prateleiras das livrarias do mundo todo, sobretudo na Europa, onde a receptividade é maior. “O programa foi relançado em um contexto de franco crescimento econômico do Brasil”, comemora Ana Cristina Sá, coordenadora geral substituta do Centro Internacional do Livro (CIL) da Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Essa conjuntura, ela diz, desperta o interesse do mundo pela cultura brasileira e se transforma em excelente oportunidade para a divulgação de nossa literatura.
De acordo com pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), vinculada à Universidade de São Paulo (USP), para a Câmara Brasileira do Livro (CBL), os leitores brasileiros somam hoje 88,2 milhões (pouco menos de 50% da população do país). Além disso, eles têm lido mais – quase 50% deles aumentaram o volume de leitura em comparação com 2007. Tal incremento se reflete diretamente nas vendas do setor. Em 2011, o faturamento do ramo editorial, de US$ 2,39 bilhões – correspondentes à comercialização de 470 milhões de exemplares, a maior vendagem da história, segundo boletim da FBN –, cresceu 7,3%. É preciso salientar, entretanto, que a cifra animadora traz embutida a compra de livros didáticos feita pelo governo federal para as escolas públicas.
Como se vê, o cenário promete. A evolução dos negócios na área vem sendo experimentada em um número crescente de nações e, acertadamente, o governo brasileiro quer tirar proveito da situação, levando nossa literatura a um patamar ainda inédito. Nesse contexto, o plano de internacionalização tem se revelado um importante instrumento comercial, pois, além de enfocar a difusão da produção nacional, pode criar meios para a avaliação do real interesse pelo Brasil no exterior. Adicionalmente, o programa funciona como base para a formulação de políticas públicas para o livro no âmbito global. De acordo com Ana Cristina, um número crescente de editoras tem sido atraído pela eficiência na execução desse plano. “Essa maior participação permite aos autores brasileiros uma notável visibilidade internacional, além de motivar homenagens ao país em eventos editoriais de destaque mundo afora”, ressalta. Ela explica que os principais objetivos do projeto dizem respeito ao fomento às edições e às traduções, destacando a importância de editais aprimorados para diferentes tipos de livros e demandas, a valorização e o treinamento do tradutor da língua portuguesa e a difusão das obras no exterior com a participação de escritores brasileiros. “O melhor agente para divulgar a literatura brasileira é o próprio autor”, avalia a coordenadora do CIL.
Parte integrante do plano, o Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior é a menina dos olhos das editoras e do governo, pois é através dele que se pretende fortalecer a conquista de espaços lá fora. Para tanto, a FBN reestruturou suas bases (criadas ainda em 1991) e, em meados de 2011, anunciou uma medida tida como a mais importante: pela primeira vez, esse programa passou a funcionar de forma ininterrupta e com a orientação de atender a todas as propostas que cumpram as exigências do edital e não somente as melhores, como ocorria antes. Esse é um plano ousado e que tem tudo para dar certo: os investimentos previstos até 2020 giram em torno de R$ 15 milhões.
Os primeiros frutos
E não é apenas isso. Além de apoio à tradução, o CIL pretende construir alicerces para aprofundar sua atuação, por meio de medidas pontuais. Uma delas visa estimular a publicação de autores brasileiros na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), já que outro eixo do programa enfoca propostas para publicar e distribuir naquelas nações, em formato impresso ou digital, obras de literatura e de humanidades lançadas em português em território nacional. De acordo com o CIL, cada projeto poderá receber o apoio máximo de US$ 6 mil. As inscrições para a primeira fase foram encerradas em setembro de 2012, mas o programa continua em 2013. Os países que falam nossa língua e que são beneficiados pelo programa poderão editar obras de Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Francisca Júlia da Silva, João Antônio, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Raimundo Correia.
Em outubro passado, a Fundação Biblioteca Nacional aprovou a concessão de 22 bolsas para a difusão da literatura brasileira – 12 projetos para o Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior e dez para o Programa de Apoio à Publicação de Autores Brasileiros na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. De acordo com a FBN, o Brasil superou a meta prevista para 2012, de 150 bolsas para tradutores estrangeiros no período compreendido entre julho de 2011 e outubro do ano passado. Com isso, as editoras estrangeiras que tiveram seus projetos aprovados vão receber até US$ 8 mil de apoio. Estão entre os autores escolhidos Ronaldo Wrobel, Adriana Lisboa e Haroldo de Campos (na Alemanha), Reginaldo Prandi e Luis Fernando Verissimo (na França), Marilena Chaui, Hélio Oiticica e Marcelino Freire (na Argentina) e Francisco Azevedo (Noruega e Suíça). A quantidade de escritores indicados para a França e a Alemanha coloca os dois mercados na lista dos maiores tradutores de obras brasileiras na Europa.
Os medalhões da literatura nacional, autores já publicados em uma dezena de países, também podem engrossar os catálogos das editoras estrangeiras, caso de Jorge Amado, por exemplo. Um dos escritores brasileiros mais traduzidos, ele será apresentado aos espanhóis da Catalunha com o livro A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua. No outro extremo, distante de nomes de tamanho peso, uma editora chilena teve aprovado seu projeto para a tradução de Viagem pelo Brasil em 52 Histórias, livro infanto-juvenil de Silvana Salerno, a primeira obra dessa categoria a ser beneficiada pelo programa. “Foram escolhidas cinco histórias, que serão lançadas em volumes infantis. Uma amiga, tradutora em Buenos Aires, viu meus livros e se interessou”, relata Silvana. “A iniciativa da FBN é importante porque pode ajudar a diminuir o fosso existente entre a comunicação literária do Brasil e o mundo”, sugere Silvana, que na época em que falou a Problemas Brasileiros aguardava a avaliação por uma editora italiana de uma outra obra de sua autoria.
De acordo com a escritora, é essencial alargar o alcance da literatura brasileira, já que a maior parte dos países da América do Sul mantém intenso intercâmbio entre si, mas o Brasil, com a barreira da língua, acaba ficando ilhado, isolado no continente. “Se queremos nos consolidar no mercado mundial, é fundamental que tenhamos uma presença minimamente razoável nos países próximos”, diz também Ana Cristina. As obras técnicas e científicas serão igualmente contempladas, graças a uma parceria a ser firmada entre o CIL e o Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (CNPq-MCTI). “Além da questão geopolítica, temos de considerar que o espanhol é uma das línguas mais faladas no mundo”, ela frisa.
Crise na Europa
Outra boa notícia é que o CIL aprovou a primeira lista de selecionados para o novo Programa de Residência de Tradutores Estrangeiros no Brasil. Virão ao país, entre janeiro e agosto de 2013, 16 profissionais contratados por editoras estrangeiras para traduzir obras brasileiras clássicas e contemporâneas. Serão seis tradutores do português para o espanhol, quatro para o francês, dois para o inglês, dois para o italiano, um para o alemão e um para o grego. Eles deverão ficar, no mínimo, cinco semanas no Brasil e participar de programação especial elaborada pelas instituições parceiras da FBN no projeto (Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal de Santa Catarina e Casa Guilherme de Almeida, de São Paulo). De acordo com a FBN, a próxima chamada, ainda em 2013, elegerá obras de escritores consagrados, como Machado de Assis, Erico Verissimo, Nelson Rodrigues e José Lins do Rego, além da outsider Hilda Hilst.
As editoras, ao que tudo indica, estão vendo com bons olhos a iniciativa do governo. A crise na Europa, se não afugentou todos os possíveis compradores de obras brasileiras, desencorajou alguns países, relata o editor Fernando Nuno, que também é escritor – é de sua autoria o livro Antônio – O Santo do Amor, já publicado também em Portugal. “Uma editora portuguesa que se interessava por outros títulos nossos preferiu deixar a conversa para um futuro que ainda não se sabe quando será”.
O escritor Bernardo Carvalho, autor de O Filho da Mãe, seu mais recente trabalho, tem outro entendimento. “Sempre foi difícil vender literatura brasileira no exterior. Não está pior agora. O problema não é a crise na Europa, mas a falta de interesse de parte dos europeus por nossas obras.” Carvalho diz que, “com crise ou sem crise, eles continuam comprando literatura americana a rodo”. Com dez livros já traduzidos, ele considera o apoio a tradutores estrangeiros um ponto estratégico para um país que ambiciona internacionalizar sua literatura. “Não conheço o programa da FBN, mas acho bom que exista uma estratégia incisiva de difusão da cultura brasileira no exterior. No que diz respeito à literatura, nada é possível se não tivermos bons tradutores”, ressalta.
Os livros de Carvalho são publicados pela Companhia das Letras, editora onde o plano também ecoa de maneira positiva. “Ele é importantíssimo”, afirma Ana Paula Hisayama, diretora do departamento de direitos autorais da empresa. “Para algumas editoras, era o que faltava para concretizar um projeto de publicação/promoção do livro brasileiro. São poucos os profissionais que traduzem, e a tradução em geral é cara”, ela argumenta. Já Nina Schipper, da Editora 34, acredita que o suporte a tradutores estrangeiros vai estimular conversas com os editores, mas não vai alterar a política editorial da 34. Ela explica que, até o momento, nenhum de seus autores foi beneficiado diretamente pelo plano. “Tenho a impressão de que o programa ainda é desconhecido da maior parte dos editores estrangeiros. Ele seria mais eficaz com uma divulgação mais ampla em feiras internacionais, por meio de catálogos e de encontros entre representantes da FBN, do Ministério da Cultura e editores estrangeiros”, diz.
Feiras internacionais
Ainda de acordo com Nina, uma política de internacionalização de nossa literatura não se faz da noite para o dia, dependendo, também, de outros fatores, como o bom relacionamento com editores de outros países (“trabalho que já vem sendo feito pelos brasileiros”) e o empenho pessoal dos escritores. “Estamos começando a agenciar autores no exterior. Ainda se trata de um número pequeno de profissionais. Essa parceria se dá, sobretudo, quando somos procurados por editores estrangeiros decididamente empenhados em publicar títulos de nosso catálogo em seus respectivos países”, conta a executiva da Editora 34. Embora ainda não tenha participado do plano, a empresa, assim como outras em situação semelhante, sabe que poderá ser uma das grandes beneficiárias num futuro próximo.
O governo brasileiro deixou claro que apostou muitas fichas na Feira do Livro de Frankfurt, um dos grandes acontecimentos anuais do setor. Foram investidos cerca de R$ 4 milhões na edição de 2012 daquele evento, visando aumentar o número de estandes e a participação de editores e escritores brasileiros na programação, com palestras e bate-papos. A comitiva brasileira foi integrada por nove escritores, o triplo de 2011, segundo divulgou a FBN. Buscou-se, enfim, maior visibilidade, já com vistas à feira de 2013, que terá pela segunda vez o Brasil como país homenageado (além do Brasil, já reverenciado em 1994, a única nação a receber dupla distinção foi a Índia). Na exposição deste ano, a delegação brasileira deverá ser formada por 50 escritores, além de artistas, autoridades e profissionais da área. A Feira do Livro de Frankfurt, que recebe em torno de 300 mil visitantes, abrigou, no ano passado, estandes de mais de 130 países, segundo a CBL, entidade que desde 2008 se acha às voltas com o desenvolvimento do Brazilian Publishers, um projeto executado em parceria com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) com vistas a fomentar e incentivar o comércio de conteúdo editorial.
O resultado de Frankfurt, segundo repercussão na imprensa, agradou aos editores. O Grupo Editorial Record e a Companhia das Letras, por exemplo, receberam muitas visitas de editores estrangeiros interessados em jovens autores brasileiros. Editores independentes também chamaram a atenção e puderam contatar profissionais da área provenientes da China, da Croácia e do Japão, entre muitos outros países.
Confiante no sucesso da estratégia adotada, o Ministério da Cultura promete ampliar a presença do país em eventos internacionais do gênero, intensificando assim a inserção das editoras brasileiras no mundo. A exemplo do que ocorrerá neste ano em Frankfurt, o Brasil, que em 2012 foi o convidado de honra da Feira Internacional do Livro de Bogotá, na Colômbia, será destaque na Feira do Livro Infantil de Bolonha, na Itália, em 2014. Dedicada ao mercado de livros infanto-juvenis, a feira italiana é considerada o evento mais significativo do segmento. Trata-se de uma exposição cuja participação interessa ao Brasil porque, conforme depoimento de Eny Maia, da Editora Biruta, “é difícil vender no exterior, principalmente infantis e juvenis”. Difícil, mas não impossível, desde que, é claro, os planos traçados pelo Ministério da Cultura não sofram interrupção e as editoras estrangeiras cumpram seu papel.
Ana Cristina, do CIL, diz que devemos seguir a trilha aberta pela França, Portugal e Alemanha, que têm programas de estímulo à tradução e à edição de seus autores no exterior, obtendo, com isso, um ótimo retorno. Seja como for, é preciso aproveitar as oportunidades abertas para o Brasil, que, em seguida às homenagens de Frankfurt e Bolonha, vai ser destaque no Salão do Livro de Paris em 2015, na Feira do Livro de Londres em 2016 e na Feira do Livro de Nova York em 2017.