Postado em 01/05/2013
Por: PAULO HEBMÜLLER
Um dia antes de receber Problemas Brasileiros para esta entrevista, a professora Katia Rubio voltara de Fortaleza (CE). Na mesma semana, viajaria para Toledo e Cascavel, no interior do Paraná. Afinada, ela canta A Vida de Viajante, de Luiz Gonzaga (“Minha vida é andar por este país/ pra ver se um dia descanso feliz”), para explicar que tantas andanças se devem ao ambicioso projeto “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos Brasileiros”, que coordena na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (Eefe-USP). A empreitada quer dar conta de entrevistar os 1.872 atletas brasileiros que disputaram alguma edição dos Jogos Olímpicos e narrar essa história do ponto de vista de seus reais protagonistas, não das instituições.
Cerca de 800 entrevistas já foram feitas. No caso dos aproximadamente 300 atletas falecidos, será utilizado material de acervo. A expectativa é lançar um livro de luxo com versões impressa e digital em 2015, o ano de intervalo entre a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro – os dois mais importantes eventos esportivos do planeta, cujas próximas edições serão no Brasil.
“Peguei desde o velhinho que foi aos Jogos de 1936, em Berlim, até gente que foi a Londres em 2012. Infelizmente vejo pouquíssima mudança no esporte brasileiro, do ponto de vista do atleta”, lamenta a professora. Pelo menos um motivo ela tem para comemorar: o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) retirou uma denúncia que encaminhara na Justiça contra ela, querendo vetar o uso da palavra “olímpico” no projeto. “E o título tem duas vezes a palavra. Da próxima vez vou ter de pagar dois advogados para me defender”, brinca.
Katia Rubio é formada em jornalismo e psicologia, tem mestrado pela Eefe-USP e doutorado pela Faculdade de Educação da mesma universidade, além de pós-doutorado em psicologia social pela Universidade Autônoma de Barcelona. É membro da Academia Olímpica Brasileira e coordena o Centro de Estudos Socioculturais do Movimento Humano da Eefe. Toda essa experiência lhe dá conhecimento de causa – e de sobra – para traçar diagnósticos pessimistas sobre o andamento da organização dos megaeventos esportivos no Brasil e sobre o legado que eles deixarão. “A grande lição dos Jogos Pan-Americanos de 2007 no Rio é como não se fazer”, compara. Um aprendizado que, afirma, as autoridades brasileiras, no esporte e fora dele, não aproveitaram. Isso fica claro nesta entrevista que a professora concedeu na USP, encaixando a conversa em meio à sua atribulada agenda de aulas, pesquisas e viagens.
Problemas Brasileiros – Estamos a poucas semanas da Copa das Confederações; ano que vem teremos a Copa do Mundo e, daqui a três anos, os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. Todos esses eventos, sediados no Brasil, vão entrar para a história do esporte, mas de que jeito?
Katia Rubio – Eu não quero ser uma mensageira do apocalipse, mas vejo isso tudo com temor. Acabo de voltar de Fortaleza, e a cidade ainda está de cabeça para baixo. O Estádio Castelão está lindo, mas eu saí com duas horas de antecedência para o aeroporto, que é no mesmo caminho, e estava tudo parado porque as obras de infraestrutura não estavam prontas. Cheguei em Guarulhos às 9 e meia da noite e esperei quase uma hora para pegar minha mala. Como vai ser em dia de jogo do Brasil? Por mais otimista que seja, sou também muito realista. Mesmo que o brasileiro seja criativo e saiba lidar com questões fora do script, a infraestrutura das cidades que receberão turistas do mundo inteiro beira a irresponsabilidade no presente momento. Não posso ser a Poliana e garantir que está tudo bem.
PB – A senhora escreveu em seu blog um texto intitulado “A Falácia de uma Nação Olímpica”, criticando os que “querem nos fazer acreditar que somos ou seremos, até 2016, uma potência olímpica”. Não é possível ser otimista?
Katia – Já entrevistei mais de 800 atletas olímpicos brasileiros de diferentes gerações. Ouvi desde o velhinho que participou dos Jogos de 1936, em Berlim, até gente que esteve em Londres em 2012. Infelizmente, vejo pouquíssima mudança no esporte brasileiro, do ponto de vista do atleta. As instituições estão se tornando cada vez mais complexas, algumas estruturas são cada vez mais profissionais, mas isso ainda deixa de fora o atleta, e sem atleta não há espetáculo. Você pode construir o estádio mais maravilhoso e ter toda a expertise na administração das arenas, mas, se não tem atleta para fazer o espetáculo, não tem nada. Fico cada vez mais abismada com as histórias que ouço de descaso, de desprezo e de desconsideração por aquele que é o protagonista do espetáculo. Para mim está claro que vamos fazer uma festa para os convidados, porque não vai dar tempo de preparar nossos atletas para que o Brasil termine entre os dez primeiros.
PB – Nosso esporte olímpico vai continuar sobrevivendo de milagres individuais como o Arthur Zanetti (ouro na ginástica em Londres)?
Katia – E de superação social, não só esportiva. Estou pasma de ouvir histórias de discriminação regional, por exemplo, porque o atleta é de fora do eixo de poder. Uma nação que ainda trata atleta de nível olímpico dessa forma vai passar vexame. Temos medalhista olímpico à margem da seleção de vôlei de praia... Eu me esforço muito para acreditar que possa ser diferente, mas está bem difícil.
PB – E, sendo os jogos em casa, a cobrança vai ser muito maior.
Katia – Sabe o que acabei de ouvir da Juliana, medalhista no Pan-Americano em 2007, em Londres em 2012 e hexacampeã mundial de vôlei de praia? Que é preciso preparar o atleta porque ele não tem ideia do que é competir aqui no Brasil – ainda mais nos Jogos Olímpicos, que são uma coisa diferente de tudo o que ele já experimentou na vida. Ou o atleta tem amparo para lidar com isso, ou vai tremer o joelho na hora, mesmo que esteja tecnicamente tinindo. Quem é psicólogo do esporte está careca de saber disso. E por que não se previne? Aí pensam que a gente fala isso para ter reserva de mercado.
PB – Como assim?
Katia – Porque é o psicólogo falando que o outro precisa de cuidado.
PB – Tem gente aí dizendo que o negócio para 2016 é focar nas modalidades em que o Brasil tradicionalmente ganha medalhas (vôlei, judô etc.) e naquelas em que uma ou outra vez pinga uma medalha, como natação, atletismo e outras. A senhora concorda com esse raciocínio?
Katia – Isso é tão equivocado que, se fosse assim, o Zanetti não teria medalha, a Yane Marques [pentatlo moderno] e a Adriana Araújo [boxe] também não. Ou se é uma nação olímpica de fato ou não. No Rio de Janeiro, o Brasil vai ter a chance de disputar todas as modalidades, coisa que nunca aconteceu. E aí você vai chegar para a equipe de badminton e dizer: “Olha, valeu aí, mas, como você não tem chance de medalha, não vai jogar...” Veja o equívoco! Se é para brincar sério, vamos brincar sério. E dinheiro não falta. Nunca antes na história deste país se teve tanto dinheiro investido no esporte como agora.
PB – Público e privado?
Katia – Público e privado, mais patrocínios, lei de incentivo, tudo. Nunca se teve tanto dinheiro. Mas a gente continua na miséria do ponto de vista do resultado.
PB – Por quê?
Katia – Falta uma cultura esportiva para o país. Não é porque a Olimpíada vai acontecer aqui que vamos ter essa cultura, porque isso é um processo que começa lá atrás, quando as crianças veem os outros jogarem e se identificam com os atletas bem-sucedidos. Um bom resultado é sempre uma alavanca para que novos atletas surjam, porque o ser humano se identifica com o outro para poder construir a própria identidade. Quando você tem um país com uma monocultura esportiva, no nosso caso o futebol, já é difícil ter essas subculturas de modalidades – o grupo do iatismo, do hipismo, do judô etc. –, que sobrevivem a duras penas construindo essa identidade. Com a falta de uma política maior, fica bem mais complicado.
PB – Como seria uma política pública que juntasse educação e esporte?
Katia – A formação esportiva no Brasil depende muito dos clubes, porque não temos uma política efetiva de formação escolar. A educação física brasileira é uma grande confusão. Você tem os grupos que idolatram o esporte na escola e os que o demonizam. Enquanto eles brigam, as crianças ficam sem atividade.
PB – E na escola da periferia é preciso negociar a quadra, quando ela existe, porque muitas vezes são pessoas que não têm nada a ver com a rotina do lugar que a ocupam.
Katia – Tenho ouvido muitas histórias sobre isso. É muito legal ver quantos atletas olímpicos foram descobertos nas escolas por professores de educação física que conseguiram enxergar algo de especial neles e os incentivaram, fizeram rifas e vaquinhas e os impulsionaram. Mas quantos potenciais atletas ficaram pelo caminho por não terem contado com pessoas tão apaixonadas? Também me preocupa a verticalização das comunidades, que tira a rua da criança. Na rua, pelo menos ela ainda tem a chance de construir um repertório motor. Com a verticalização, ela fica em casa, fixada na TV ou no videogame. Começa a rarear a busca de possíveis atletas na periferia. Uma pesquisa nossa mostra que o perfil do atleta que entra no São Paulo Futebol Clube está mudando rápida e radicalmente. Quem chega agora vem da escolinha de futebol, não mais da rua.
PB – Em termos de legado para os megaeventos, o Pan 2007 do Rio deixou alguma lição?
Katia – A grande lição do Pan é como não se fazer algo, e quem está falando isso é o Tribunal de Contas da União [TCU]. O evento foi realizado há seis anos e as contas não fecharam ainda. Tem gente devendo muita coisa e pouco se fala nisso, porque já entramos no “auê” dos Jogos Olímpicos. Construir uma vila olímpica para afundar depois, uma piscina que fecha porque está fora da medida – isso não é legado, isso é vergonhoso. [N. do E.: Esta entrevista foi realizada antes da interdição do Engenhão por problemas estruturais.]
PB – Mas alguém aprendeu essa lição?
Katia – Acho que quem aprendeu a lição são as pessoas que investigam. Estão aí o site Contas Abertas, os jornalistas que se dedicam a buscar a prestação de contas que não foi feita, e isso para mim é uma lição de cidadania. Ninguém fala dessa dívida porque o Brasil está numa curva ascendente – mas parte da responsabilidade pela quebradeira da Grécia vem de contas impagáveis dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004.
PB – O vôlei brasileiro tem desde a década de 1980 uma história de sucesso. Por que ela não é reproduzida em outras modalidades?
Katia – Porque as outras confederações não se profissionalizaram como a de vôlei. Não é difícil entender o sucesso quando se faz um trabalho bem-feito.
PB – O COB e o Ministério do Esporte estão batendo cabeça ou atuam bem juntos?
Katia – Cada um faz um papel diferente. O ministério deveria estar preocupado com a construção das políticas públicas. E o COB tem de ser responsável pelos atletas olímpicos brasileiros. Se houvesse uma convivência de fato harmoniosa, seriam duas instâncias que dialogariam em prol de uma mesma política. Mas não é o que parece que acontece.
PB – Por quê?
Katia – Porque o esporte olímpico não se desenvolve. E, de novo, se por muitos anos a desculpa era a falta de dinheiro, hoje o que existe é uma falta de política. Sob a tutela do COB estão as federações e confederações responsáveis por todos os níveis de esporte organizado, e agora também os Jogos Escolares, de onde teoricamente sairiam os expoentes para o esporte olímpico. Mas como o COB pode cuidar dos Jogos Escolares se quem faz a política de educação é o Ministério da Educação, que nesse aspecto deveria estar junto com o do Esporte? Como dizem lá em casa, cachorro com dois donos morre de fome, porque ninguém põe comida.
PB – Do ponto de vista político, o Brasil está aproveitando esses eventos?
Katia – O país vive um momento privilegiado. Que me desculpem os pessimistas de plantão, mas o Brasil vai bem e é a bola da vez. Eu viajo muito por conta de congressos e há uma imensa curiosidade para saber o que acontece neste país cuja economia se mostra tão diferente do que está acontecendo no resto do mundo. Nunca fui tão respeitada no exterior como nestes três últimos anos. As pessoas querem me ouvir, querem ler o que estou escrevendo. A Copa e os Jogos seriam uma oportunidade de ouro de afirmar essa condição de um país que está mudando. Mas é uma pena que as coisas estejam acontecendo como estão.
PB – Vamos jogar fora essa oportunidade?
Katia – Fora não, porque alguma coisa sempre se aproveita. Mas é como matar o boi, tirar só o filé-mignon e descartar o resto.
PB – Como a senhora avalia o resultado do país nos Jogos de Londres?
Katia – Não houve surpresa. O Brasil tem 109 medalhas olímpicas na história. Quanto mais ouço os atletas, mais é difícil acreditar que tenha ganhado tudo isso. Não fosse a bravura desses meninos e meninas, homens e mulheres, que abrem mão de tudo por conta de um sonho, não teríamos a metade delas. Se fôssemos contar só aquelas que o Brasil ganhou como fruto de um investimento sério e de um trabalho organizado e sistemático, não chegariam a dez. Dá para imaginar que o bicampeão olímpico Adhemar Ferreira da Silva foi tuberculoso aos Jogos de Roma, em 1960? “Ah, mas isso é passado”, alguém pode dizer. Mais ou menos, porque ainda temos atleta que chega aos Jogos com infecção em canal de dente, e aí o rim não funciona direito, e com isso ele não vai render. Eu ouvi a história de um atleta que só descobriu esse problema quando voltou para o Brasil. Ou seja, ainda temos atleta indo aos Jogos Olímpicos sem fazer exame médico!
PB – Isso é um risco até para ser pego em exame antidoping, não é?
Katia – Doping é outra história. O que mais tenho ouvido no esporte contemporâneo é sobre venda de resultado de jogo, o que para mim é uma grande surpresa. Estou assustada. O que vale é o dinheiro. Se perco hoje para você, mas ganho R$ 100 mil e amanhã continuo a jogar, para mim valeu.
PB – Há quem diga que em algum momento vamos ter os Jogos Olímpicos “limpos” e os Jogos para os “bombados”. Está próximo esse dia?
Katia – Na Inglaterra, principalmente, há um grupo muito forte defendendo isso. Ou seja, se a condição do esporte é o limite, o que divide os jogos “limpos” dos “sujos” é uma questão ética e moral. Então vale maiô especial, equipamento com fibra de carbono etc. A ciência desenvolve tudo o que faça o esporte chegar ao limite, e o doping é parte disso. Agora, é tão bonito você falar: “Menino feio, você descumpriu a regra”. E o médico que receitou, o técnico que foi conivente? Eles não são punidos. Só quem paga é o atleta. Se é para repensar, é preciso repensar tudo, e não simplesmente demonizar o atleta pego em doping.
PB – O ciclista Lance Armstrong foi execrado, mas havia toda uma indústria que girava em torno dele.
Katia – O problema é que ele deixou de ser só usuário para ser gerente do negócio. O caso dele é curioso. As pessoas ficaram bravas não porque ele tomou doping, mas porque, egoisticamente, acreditaram que ele era um herói que não se provou herói até o fim. Olha o egoísmo: a pessoa não está fula porque ele tomou doping, mas porque comprou o livro dele, a pulseirinha, indicou o livro para os seus atletas...
PB – A senhora continua acreditando no esporte brasileiro?
Katia – Torço muito pelos atletas brasileiros. Quanto mais histórias ouço, quanto mais fundo mergulho nesse universo, mais vejo quanto eles são frágeis diante da estrutura que os cerca. Se eles são super-heróis no desempenho de suas habilidades, do ponto de vista institucional são feitos de cristal, e qualquer peteleco os quebra mesmo. Eles muitas vezes vão à lona sem saber por que caíram. Alguns pagam por muitos anos de vida o preço por decisões que tomaram, coisas que falaram, posições que assumiram. E isso é desastroso.