Postado em 01/03/2013
A doação de coleções privadas para instituições públicas é uma prática antiga que acompanha a criação de museus, bibliotecas e centros culturais no mundo todo. Muitos dos livros, documentos, objetos, trajes e obras de arte recebidos pelos órgãos de cultura têm valor incontestável, mas itens do dia a dia e do homem comum também compõem acervos, figurando como elementos importantes para o estudo do modo de vida dos grupos sociais. Esse processo de ampliação do conceito de fonte histórica levou ao desafio da incorporação de peças produzidas por meio das novas tecnologias de gravação, compondo arquivos sonoros e audiovisuais. São relatos de história oral, cartas, diários e fotos de família em formato eletrônico, que tornaram possível a existência de museus exclusivamente
digitais.
Essa realidade imposta à arquivologia abre novas frentes para o trabalho de conservação e exposição de acervos e também para a própria ideia de doação. Fruto desse cenário, o primeiro museu brasileiro dedicado exclusivamente à moda é também um dos pioneiros entre os museus digitais do país. Criado, em 1999, por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Design da Escola de Artes, Arquitetura, Design e Moda da Universidade Anhembi Morumbi, o Museu da Indumentária e da Moda (Mimo) tem na base do acervo fotografias de álbuns de família. As imagens doadas são digitalizadas, arquivadas em um banco de dados e ficam
disponíveis no site mimo.org.br
A primeira interpretação da fotografia é feita por seu doador, a segunda, por um historiador da moda, que identifica aspectos como época, tecido, design da peça, criador e classe social retratada. “O doador traz informações importantíssimas; estamos entre história – neste caso história oral – e memória”, afirma a coordenadora do projeto e professora da universidade, Márcia Merlo.
Segundo ela, a proposta do Mimo difere da dos sites de museus tradicionais. “Eles democratizam a acessibilidade de parte de sua reserva técnica, e mesmo das exposições permanentes, em meio digital, até como divulgação.
O nosso intuito é ser um museu digital, ou seja, sem acervo físico, e não só online.” Márcia acredita que a falta de acervo físico não significa empobrecimento para as pesquisas e consultas. “Podemos abranger a moda em todos os sentidos, veicular e promover estudos”, diz. Outra iniciativa virtual cujo acervo é composto por relatos de história oral é o Museu da Pessoa (museudapessoa.
net). Em funcionamento desde 1991, o site colaborativo reúne 15 mil narrativas em textos, imagens, vídeos e áudios. Qualquer pessoa pode agendar uma sessão na sede da instituição, no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, para que sua história seja gravada, editada e disponibilizada no site.
De acordo com a professora e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV) Luciana Heymann, o surgimento da internet revolucionou a criação, circulação e gestão dos documentos, estimulando mudanças profundas na forma de guardá-los.
“Os meios digitais têm um impacto enorme na arquivologia. Os documentos, hoje, nascem digitais e muitas vezes nunca assumem o formato tradicional”, explica. Além disso, aumentaram as possibilidades de acesso remoto aos dados – sejam textuais, sonoros, audiovisuais –, de uso dos acervos e preservação dos originais do manuseio. “Ampliou-se exponencialmente a circulação de informações e democratização do acesso, por meio, por exemplo, da criação de páginas temáticas na internet, com a visualização de documentos, ou mesmo das exposições virtuais.”
Porém, Luciana alerta que a digitalização de documentos históricos, considerados de guarda permanente, não elimina a necessidade de preservação dos originais. Assim como é preciso estar atento às rotinas de preservação dos acervos digitais, o que inclui mecanismos de monitoramento dos dados e atualização constante dos sistemas e plataformas utilizadas.
Política de doações
Com mais de 200 mil itens, incluindo fotografias, filmes, registros sonoros, vídeos, peças gráficas, equipamentos de imagem e som, além de livros, periódicos, CDs, DVDs e VHS, o acervo do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS) é formado majoritariamente por doações de coleções particulares.
Segundo seu diretor executivo, André Sturm, até poucos anos a instituição não tinha nenhuma política de doação, o que fez com que o acervo se tornasse muito heterogêneo. Após a Secretaria da Cultura do Estado estabelecer uma norma de que os museus não poderiam mais receber coleções sem prévia autorização, foi criado um conselho para avaliar as ofertas de doação.
Outra forma utilizada pelo museu para ampliar o acervo atualmente é o projeto de memória oral, que reúne depoimentos de importantes nomes da cultura. “No ano passado, trabalhamos em dois eixos, com profissionais ligados ao cinema da Boca do Lixo e com compositores de música erudita contemporânea”, informa. Esse material é gravado e fica à disposição de pesquisadores, programadores e do público em geral.
Uma coleção, um museu
A história do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) começou com a doação da coleção particular de Francisco (Ciccillo) Matarazzo Sobrinho e de sua mulher, Yolanda Penteado (veja boxe Célebres coleções). Atualmente, o programa de doações do museu é realizado por meio de solicitação dos curadores ou comodato.
No primeiro caso, a diretoria e os curadores decidem quais obras poderiam entrar para a coleção, e é feito o pedido de doação para o artista ou galerista em questão. “O que mobiliza a escolha de uma obra é o próprio acervo já existente, pois a nova peça tem que dialogar com as outras do museu”, afirma o diretor da instituição, Tadeu Chiarelli. Caso a obra tenha sido vendida, a Associação
dos Amigos do Museu de Arte Contemporânea da USP (AAMAC) solicita ao Ministério da Cultura a possibilidade de arrecadar verba para a compra da peça.
Já o comodato é um contrato que estabelece que determinadas obras fiquem sob a guarda do museu por certo tempo. “O comodato seria como um teste para o colecionador avaliar se o museu cuida bem das obras, exibe-as, demonstra na prática o interesse por aquela coleção, seu objetivo é a doação integral ou parcial da coleção no futuro”, esclarece Chiarelli.
Certos tipos de produções artísticas contemporâneas propõem desafios à museologia, como é o caso das publicações [manifestação artística que tem início no século 20, são livros de peça única, tiragem reduzida ou mesmo de grande tiragem, cuja experiência estética advém de sua manipulação], documentações de performances e instalações. “Hoje você vai a uma exposição e há livros expostos, o que não era tão comum tempos atrás. Onde ficam essas obras? Na biblioteca ou no acervo? Elas são exibidas como livro ou como obra?
Esse é um debate muito importante que demonstra esses momentos de imbricação de uma área com outra”, analisa Chiarelli. “Outra questão são as plotagens [impressão de imagem em larga escala], por exemplo. Quando termina a exposição, o museu não vai guardar aquela plotagem. Você joga fora, porque tem no HD a imagem e, quando precisar, vai ao escritório que faz esse tipo de
trabalho e encomenda outra.”
Segundo o diretor, esses questionamentos são muito recentes e têm impacto direto na conservação. “A maneira de arquivar um HD é diferente da de uma pintura. O MAC faz parte de uma rede internacional de museus que se reúne periodicamente para discutir esses novos protocolos de conservação, de obras produzidas com materiais absolutamente fora dos padrões da grande tradição.”
Livros em exposição
A Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura é outro caso em que uma doação particular definiu os rumos de uma instituição (veja o boxe Célebres coleções). “Ter a biblioteca do Haroldo de Campos, um dos maiores intelectuais e poetas do século 20, é importante não só para a Casa das Rosas, mas para a cultura brasileira como um todo.
Vários estudiosos brasileiros e mesmo do exterior vêm fazer pesquisas aqui e várias teses já surgiram, sejam centradas na própria coleção ou usando a coleção como ponto de apoio”, diz o diretor da instituição, Frederico Barbosa. Segundo ele, além dos títulos clássicos, como do poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898) e do romancista irlandês James Joyce (1882-1941), a biblioteca Haroldo de Campos é composta de exemplares de revistas, gibis, um manual de pôquer... itens considerados menos relevantes do ponto de vista do conteúdo, mas que são importantes para analisar a vida de um intelectual do século 20.
Muitas pessoas doam seus acervos particulares para o Estado no intuito de garantir que a coleção seja preservada, se mantenha unida e esteja à disposição do público. Porém Barbosa afirma que essa não é a realidade em muitos lugares. “Frequentemente, as bibliotecas doadas não são bem cuidadas, não há divulgação, elas se perdem, pois o próprio Estado envia parte da coleção para uma biblioteca e o restante para outra”, diz. “É fundamental que essas bibliotecas sejam bem tratadas, se mantenham íntegras e à disposição das pessoas. O acervo não pode ser algo morto.”
Outra importante coleção privada que se encontra em domínio público é a do bibliófilo José Mindlin. Com cerca de 60 mil volumes, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin foi transferida, em fevereiro, para o prédio definitivo, localizado no campus Butantã da Universidade de São Paulo (USP).
Os livros, manuscritos, mapas, periódicos e imagens ficavam antes em uma residência da família no Brooklin, zona sul da
capital.
Célebres coleções
Saiba quais doações privadas deram início às atividades de importantes museus, instituições e bibliotecas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP)
Um dos mais importantes museus de arte moderna e contemporânea da América Latina, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) foi criado em 1963 com a doação de Francisco (Ciccillo) Matarazzo Sobrinho, então presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). Naquele momento, a USP recebeu o acervo que constituía o MAM, além de sua coleção particular e de sua mulher, Yolanda Penteado. Hoje, o MAC-USP ocupa três edifícios – um no Parque Ibirapuera, um
entre as Avenidas 23 de Maio e Dante Pazzanete e outro na Cidade Universitária – e seu acervo possui cerca de 10 mil obras, entre pinturas, desenhos, gravuras, fotografias, esculturas, objetos e obras de arte conceitual e de arte contemporânea.
Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM)
Após cinco anos da transferência da coleção do MAM para o MAC, em 1968, o museu ganhou nova sede, sob a marquise do Ibirapuera, em São Paulo, e retomou suas atividades com a doação de 81 obras de Carlo Tamagni, colecionador e então conselheiro do MAM.
O acervo reúne grandes nomes do modernismo, como Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti, com obras raras de mestres como Alfredo Volpi, José Pancetti e Aldo Bonadei.
Biblioteca Nacional
Considerada pela Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – uma das dez maiores bibliotecas nacionais do mundo, a Biblioteca Nacional do Brasil tem como núcleo original do acervo a antiga livraria de D. José, criada para substituir a Livraria Real, que reunia a coleção de livros de D. João I e a de seu filho D. Duarte, perdida em um incêndio. Inicialmente acomodado numa das salas do Hospital do Convento da Ordem Terceira do Carmo, no Rio de Janeiro, o acervo trazido para o Brasil era composto por 60 mil peças, entre livros, manuscritos, mapas, estampas, moedas e medalhas. Em 1810, a Real Biblioteca foi fundada e os itens, transferidos para o local, mas apenas em 1814 ela foi aberta ao público.
Depois da proclamação da Independência, a aquisição da Biblioteca Real pelo Brasil foi regulada. Atualmente, sua sede está localizada na Avenida Rio Branco, centro do Rio de Janeiro, e seu acervo é composto por cerca de 9 milhões de itens.
Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura
De 1991 a 2003, a Casa das Rosas era um centro cultural de artes plásticas, localizado na Avenida Paulista. Com a doação do acervo de 20 mil volumes da biblioteca do poeta Haroldo de Campos, em 2004, o local mudou de nome e de vocação, passando a dedicar-se à poesia e literatura. Um dos mais importantes acervos literários do país, a biblioteca é constituída por obras de literatura, poesia, filosofia, crítica literária, além de catálogos, periódicos e teses em diversos idiomas. Entre os títulos, estão raridades como O Cão Sem Plumas, com dedicatória de João Cabral de Melo Neto a Haroldo de Campos, e a primeira edição de Macunaíma, de Mário de Andrade, de 1928.
História preservada
Fotos, textos, vídeos, fotografias e áudios recontam a trajetória do Sesc
Criado em 2006, o Sesc Memórias tem como objetivo arquivar a documentação institucional do Sesc, que inclui materiais de divulgação, registro de suas ações e relatos dos funcionários e colaboradores. A equipe da área é responsável pela coleta, organização, tratamento e disponibilização de folhetos, cartazes, fotografias, vídeos, áudios e relatórios produzidos pela instituição
ao longo de sua existência.
O trabalho do Sesc Memórias é organizado pelos núcleos gráfico-textual, fotográfico, audiovisual, história oral, documentos
tridimensionais (composto por objetos de premiações e homenagens) e Centro de Pesquisa Teatral (CPT/Sesc). O último
diz respeito à guarda dos figurinos e objetos de cena usados nas peças da companhia dirigida por Antunes Filho.
Há também uma biblioteca, cujo acervo atende às necessidades informacionais dos pesquisadores de cada núcleo, com títulos de história, ciências sociais, antropologia, arquivologia, entre outros. Uma das atribuições da equipe é o tratamento e preservação
dos documentos do acervo de maneira a garantir sua integridade em longo prazo. Segundo a coordenadora do Sesc Memórias,
Elisabeth Brasileiro, um dos objetivos da área é tornar disponível para pesquisa interna e externa a documentação identificada.
“Há procura por informação por parte de funcionários, de estudantes de graduação e pós-graduação, da imprensa e
de produtores ligados à cultura de forma geral”, diz.
Com o objetivo de ouvir profissionais ou pesquisadores nos campos da história, memória, arquivos e patrimônio, conhecer e compartilhar suas práticas ligadas à guarda de acervos, são realizados, desde 2009, os Encontros Sesc Memórias. Em 2013, os Encontros acontecem todas as terças-feiras e cada mês é dedicado a um tema. Em março, os eventos são sobre acervos sonoros.