Postado em 01/01/2013
Domingos de Oliveira carrega em sua vasta biografia diversos filmes, peças e atuações. No entanto, o autor se reconhece mais no papel de roteirista. No cinema, foi responsável pelo roteiro de Separações, Dois Filhos de Francisco, Juventude, Todas as Mulheres do Mundo, Edu Coração de Ouro, Era Uma Vez, Primeiro Dia de um Ano Qualquer, entre outros filmes. Já na televisão, roteirizou obras como Os Anjos do Sexo, Confissões de Mulheres de 30, Contos de Verão e Vestido de Noiva. Em entrevista à Revista E, Oliveira fala sobre o reflexo da visão mercadológica no cinema brasileiro, analisa o comprometimento do Estado diante do papel social da arte, revela detalhes de seu trabalho e expõe sua relação com os atores. “Acho melhor dirigir para ver o que está bom na cena. Se você fizer uma cena de 15 minutos na minha frente e tiver um minuto bom, vou falar muito sobre aquele minuto”, diz. “Tem muita gente no teatro que não é ator de verdade e usa o teatro para outros fins. Por sua vaidade, por seu poder, para o sexo.” A seguir, trechos.
Você acha que os roteiros do cinema brasileiro têm melhorado no país?
Eu não acho o cinema brasileiro nada bom por conta do “industrialismo”, de querer fazer filmes para bater um milhão de espectadores. No meu tempo a gente fazia um filme para a humanidade, para repercutir como arte.
O filme feito como negócio não tem sentido no Brasil. Podem ser abertas algumas exceções honrosas para determinados cineastas como, por exemplo, o Breno Silveira, que tem uma pureza natural. Era Uma Vez, Dois Filhos de Francisco, Gonzaga [em referência aos filmes dirigidos por Breno Silveira]... Gonzaguinha e Gonzagão é um tema muito bom. É o pai do norte, de direita, um homem bruto, um homem alegre, em oposição a um filho bastardo, de esquerda, magrinho, frágil... É um grande tema.
Como a visão mercadológica do cinema reflete na escritura do roteiro?
Um filme comercial dá ao grande público o que ele quer – o que é um crime para um autor. Um autor tem que dar ao público o que ele precisa, porque este não sabe o que quer. Essa é a intenção generosa de escrever. Acho que a arte é isso, é uma atividade para fazer bem às pessoas. Todos os filmes de que gostei são filmes que me fizeram bem, que me ensinaram a viver, abordando assuntos e regiões do temperamento humano que só a arte atinge. É extremamente útil.
Qual é a diferença do teatro para o cinema como autor?
Não há diferença nenhuma. O que importa no roteiro é o que ele está dizendo. Quando você ainda não viu um filme no cinema, você pergunta ao seu amigo: “Você viu o filme? É sobre o quê?”. São perguntas básicas. E não posso dizer que sou um escritor de teatro porque o meu teatro é muito cinematográfico. Já fiz mais de seis filmes baseados em peça e não saem filmes com cara de teatro.
Tenho o ritmo e a linguagem do cinema. Minha geração era jovem quando surgiu a nouvelle vague, quando viveu o Cinema Novo. É uma geração do cinema. Tenho impressão de que, se o cinema existisse antes do século 19, o Dostoiévski [romancista da literatura russa (1821-1881)] e o Shakespeare [poeta e dramaturgo inglês (1564-1616)] teriam sido grandes cineastas. É a linguagem desse século, que agora está em plena decadência.
Você acha que o cinema autoral está em decadência?
Tenho certeza que sim. Olha que não sou saudosista. Você diz três que estão trabalhando atualmente, que eu te digo 30 de gabarito que trabalharam antes. O cinema italiano, por exemplo, reúne uma plêiade de artistas tão poderosos que é comparável com o século 6 antes de Cristo, ou com a Renascença, em que os artistas surgem todos juntos. Tem o Fellini, o Rossellini, o Visconti. Acho difícil ver um filme bom hoje.
As pessoas costumam dizer que o cinema argentino é muito melhor que o brasileiro. Você concorda?
Não tenho dúvida nenhuma. Eles estão dando conta do serviço, do cinema que quer contar a sociedade de seu tempo. O filme argentino pode ser ruim, pode ser bom, mas é um filme. É uma pessoa que está contando uma história, que está dando um depoimento sobre a vida dela, é um filme. Vai ver um filme brasileiro! Não é um filme, é um produto. São poucos os autores. Mesmo o Breno Silveira não é um autor. É um cineasta bem intencionado e talentoso. Ele ainda está começando.
Por que o cinema brasileiro engatinha?
Primeiro, acho que os problemas todos com a arte provêm do fato de que as autoridades não entendem que ela tem um papel social sério. Só em um país muito desenvolvido é que se entende isso. Se fechassem hoje todos os cinemas e teatros, não iria fazer falta, mas a sociedade iria ruir. A arte fala sobre assuntos como a honra, o patriotismo, a cidadania, o amor – os sentimentos mais profundos do homem. Não fala só sobre dinheiro. O tirano odeia a arte.
O mercado sabe que a arte é necessária, mas odeia o artista. Eu costumo dizer que se você é ruim no Brasil, eles te botam para fora; se você é bom, você é recompensado; se você é ótimo, eles te matam. A arte ofende. Parece uma palavra elitista. Elitista é pensar assim, pois não temos outra palavra. Há muito tempo eu me bato pelo mistério da arte. Cultura é imensamente importante, mas não é arte. Ela ainda se refere ao passado, de alguma forma. A arte se refere sempre ao futuro. Tem menor desenvoltura, mas é locomotiva: sem ela, nada se move. A arte se refere a botar alguma coisa no mundo que não existia lá antes. A cultura serve para preservar, para manter o que já existe.
Um filme como Todas as Mulheres do Mundo ou Edu, Coração de Ouro são duas pequenas obras-primas suas maravilhosas. Você acha que hoje em dia seria possível fazer um cinema com aquele espírito, com o mercado controlando as relações?
Tem que ser possível dar um depoimento sobre a sua vida de forma sincera. Tudo o que faz sucesso, já há muito tempo, é a violência e o sexo. Tem tido filmes como o Tropa de Elite 2, ?que começaram a sacar o que o cinema americano compreendeu há dezenas de anos: que a autocrítica dá dinheiro. O cinema americano sempre criticou os Estados Unidos nos filmes de tribunal, de Frank Capra.
No Brasil começam a descobrir, mas já encheu o saco. Eu não aguento mais ver filme de favela de jeito nenhum. Na verdade, já fizeram todos, já fizeram quase todos. Você precisa ser muito bom para fazer algo novo. Acho que deve haver apoio dos poderosos. O mercado não sabe o que quer. É arte, é coisa nova, não tem uma referência. Você ser artista é entrar na cabeça do mundo e descobri-lo. Na realidade ele o faz porque precisa fazer, porque não acha sentido em outra vida, como dizia o velho Rainer Maria Rilke [poeta de língua alemã do século 20]: “Se você não fosse artista você morreria?”.
Se tiver alguma dúvida na sua resposta, não seja. É preciso que seja uma necessidade vital. Quando estou escrevendo uma peça, não sei de onde ela veio. Agora mesmo, eu estou escrevendo uma peça e estou jurando para mim mesmo que é a última peça que eu escrevo. Não quero mais passar por isso.
Por que a última peça?
É mentira tudo isso, provavelmente [risos]. Quando começo uma peça, eu me sinto um burro, um imbecil, um farsante que conseguiu enganar as pessoas por muito tempo. Sinto que não tenho talento para escrever e tal. Já tenho tantos livros e filmes no mundo, para que fazer mais um? Até o momento em que os personagens começam a mandar na peça. Então aquilo toma vida. Aí é a coisa mais maravilhosa do mundo, um segredo que você possui.
Como é o seu processo de trabalho?
O meu processo de trabalho é o seguinte: eu tive uma ideia, criei o Crimon, um personagem. É uma coisa que não sai mais de você, que o persegue. Você vai ter que escolher aquilo. Aí você anota no papel todo o material correlato que você tenha pensado, coisas que amigos ou conhecidos tenham falado sobre aquele assunto. Joga tudo dentro de uma cesta e deixa lá. Aí uma hora você cansa de fazer isso e escreve uma peça.
O meu filme Todas as Mulheres do Mundo, que tem 50 anos, é até hoje um filme famoso. Mas foi um filme de necessidade mesmo, porque eu queria que a minha antiga mulher voltasse para mim. Então eu tive a necessidade de fazer esse filme, senão eu morreria. E assim foram muitos. Eu já fiz dois filmes esse ano – roteiro e direção. Dois filmes independentes, feitos com amigos. Um estreou no Festival do Rio [27 de setembro a 11 de outubro], o outro ainda estou procurando distribuição.
O Primeiro Dia de Um Ano Qualquer [que estreou no festival] trata de um final de semana na casa da minha amiga [a atriz] Maitê Proença, na serra. Ela perguntou: “Vamos fazer um filme aqui? Aí não precisa pagar locação nem o trabalho de um diretor de arte”. Eu disse: “Tá certo”. Era bom que o lugar era bem silencioso, dava para levar bem. Além disso, o filme se passa durante o dia. E aí eu comecei a perceber que a minha necessidade de recursos estava conspirando ao meu favor. Esse filme foi inspirado na vida dela. Ela me deu uma ideia bonita: um filme que se passa no primeiro dia do ano e que termina no seu entardecer.
Ir mostrando aquelas horas... Deve ser um filme interessante para qualquer um. Aquele é o momento que a gente compreende que o mundo não vai acabar e que você vai ter que se virar dentro dele. São personagens que se apresentam, com seus problemas, é um filme aberto, não é uma dramaturgia fechada de causa e consequência, com princípio, meio e fim. Acabou sendo um filme com 22 atores. O outro filme é o Jogos da Paixão. Primeiro, vai ser exibido no Canal Brasil sob formato de série. É um filme sobre psicanálise, uma comédia, muito romântica.
Os seus textos são muito ligados à sua história?
Só me sinto realizado se há uma base muito concreta em uma vivência. Uma coisa que eu vi... E uso a imaginação para completar. A mentira é a alma do negócio! É preciso mentir para dizer a verdade, sempre invento muito em cima. Fica mais parecido ainda na sua vivência do que na recordação. Mas sempre tento me basear nas coisas pelas quais eu passei ou vi dos meus amigos. Não saberia fazer uma peça sobre o Bertold Brecht [dramaturgo, poeta e encenador alemão do século 20] ou sobre a China. Prefiro trabalhar sobre a novela da minha vivência.
Como você vê a questão do tempo no teatro em contraposição ao cinema?
O teatro trata do eterno, daquilo que caracteriza realmente o ser humano. O Hamlet [personagem de Shakespeare] vai continuar sendo o mesmo daqui a 500 ou mil anos, falando da essência do ser humano. Mesmo quando não está nessa esfera da obra-prima, ele é real. Ele é gente em frente da gente, exercendo o único poder livre do homem, a única capacidade livre do homem, que é a imaginação.
O cinema pega você, com todo o recurso que tem, coloca você para girar, girar, girar e devolve você para a sessão. O teatro não. O teatro quer que você pense. Você tem que ter o tempo da reflexão. O cinema não quer que você pense, quer que você delire, que você se deleite. Uma vez tive um insight e passei a ver isso toda a vez que vou ao cinema.
Há muitos anos, vi o rosto de uma mulher e tive um dejavù. Pensei “já vi isso em algum lugar”. E aí me lembrei. Era o rosto da minha mãe, como eu a via quando era neném, no colo dela. É como as crianças veem o mundo: a tela gigante e você pequenininho. O cinema te devolve a inocência, te coloca em um estado infantil, no melhor sentido da palavra. No estado de quem ouve as histórias contadas ao redor da fogueira, as histórias da vovó. Não se discute com o cinema. Assiste-se na inocência. Uma obra de arte.
Como é o seu método para ajudar o ator a buscar o personagem, a costurar essa dramaturgia?
Há diretores que trabalham pelo sim e diretores que trabalham pelo não. Antunes [Filho] é o melhor diretor do mundo, foi através dele que compreendi o alcance do teatro. É um gênio absoluto. Ele acha que tem que destruir o ator, desmontá-lo, para dali surgir outra coisa, danada e mais bela, que é da pessoa do ator. Você dirige pelo que já está ruim na cena.
Eu dirijo pelo sim. Acho melhor dirigir para ver o que está bom na cena. Se você fizer uma cena de 15 minutos na minha frente e tiver um minuto bom, vou falar muito sobre aquele minuto. Então são dois caminhos. Acredito mais no caminho do sim do que no caminho do não. O diretor é um intérprete, assim como um pianista, um saxofonista. Tenho esse lado de intérprete, de entender a história, de comentar, discutir a história com os atores. Esse é o papel nobre do diretor. Ajudar o ator a compreender a grandeza do seu personagem.
Você dirigiu várias pessoas. Entre elas, sua ex-mulher Leila Diniz. Como era a relação de trabalho com ela? Ela era uma pessoa fácil?
Tenho fama de gostar de trabalhar com os amigos, trabalho com as mesmas pessoas há muitos anos. Fiz filmes com a Priscila [Rosenbaum, sua atual mulher] e com a Leila [Diniz, ex-mulher]. São seres humanos em uma questão muito maior do que o afeto, que é o teatro. Nós estamos aí para resolver o que é o teatro e contar uma história com profundidade.
E não tem nada disso, não tem pessoa difícil, pessoa fácil. Tem muita gente no teatro que não é ator de verdade e usa o teatro para outros fins. Por sua vaidade, por seu poder, para o sexo. Acho que você tem que ser ator – embora o Antunes [Filho, dramaturgo] não o seja. Ele diz que não é, mas é um ator excelente. Todo bom diretor tem que ser ator, tem que saber o que o ator sente quando passa por esse processo frágil de tentar imaginar ser aquilo que não é. Tem que entender desse processo, saber o que é esse método para poder respeitar o ator e ajudá-lo a seguir esse caminho.
“Tenho impressão de que, se o cinema existisse antes do século 19, o Dostoiévski e o Shakespeare teriam sido grandes cineastas”
“A arte se refere sempre ao futuro. Tem menor desenvoltura, mas é locomotiva: sem ela, nada se move”
“Todo bom diretor tem que ser ator, tem que saber o que o ator sente quando passa por esse processo frágil de tentar imaginar ser aquilo que não é”
“Todo bom diretor tem que ser ator, tem que saber o que o ator sente quando passa por esse processo frágil de tentar imaginar ser aquilo que não é”