Postado em 01/01/2013
Diante do crescimento de expressões musicais como o rap e a música eletrônica, surge uma questão: a canção está chegando ao seu fim? No contexto contemporâneo, a emoção gerada por uma música parece estar cedendo espaço à fruição puramente estética – que toma conta dos aficionados por raves –, ou mesmo ideológica, muitas vezes relacionada ao universo do hip-hop. Para além desse debate, em vez de caminhar para a extinção, este pode ser apenas mais um capítulo de uma história de constantes mutações. Em textos inéditos, os compositores Zeca Baleiro e Arrigo Barnabé analisam o tema.
A cantilena do fim da canção
por Zeca Baleiro
Anos atrás, quando o compositor Chico Buarque falou (e a meu ver – e ouvir – falou sem maiores pretensões de polemizar) sobre o “fim da canção”, certamente não imaginou que mexia numa delicada, perigosa e interminável casa de marimbondos. O que Chico falou é semelhante, em raciocínio, ao que o pensador nipo-americano Francis Fukuyama falara anos antes sobre o “fim da História”.
Em ambos os casos o fim não é fim exatamente, mas passagem, mudança de era. A favor do meu argumento existe o fato de que o mundo (ainda) não acabou. Na tese de Fukuyama, não existiria mais hipótese de evolução, nem haveria um projeto futuro para a humanidade. Ora, só seria plenamente justificável falar que “a História acabou” se o mundo e a vida humana também tivessem acabado. Mas não, a História permanece, com status modificado, num tempo em que a necessidade de documentação e registro, que justifica em parte o conceito de “História”, foi volatizada pelas modernas tecnologias e pela pressa do mundo hipermoderno.
Assim também se dá com a canção. Vivemos uma nova era da canção, mas não vimos (tampouco acho que veremos) seu fim – e o fato de o próprio autor da célebre frase ter lançado dois discos de inéditas nos últimos seis anos é prova inconteste disso. Enquanto houver vida, haverá formas de expressão artística, ainda que novas formas surjam e em alguns casos até tomem postos. Enquanto houver vida, haverá necessidade de o mortal cantar suas dores, amores, traumas e delícias – seu desejo vão de eternidade e a certeza apavorada da própria finitude.
Mas, deixando de lado essa poesia de botequim e voltando ao início, a canção, com seus aproximados 100 anos de idade, tal como se conhece, em forma, peso e cânones, é uma manifestação muito recente, e uma das formas mais diretas e eficazes de crônica das épocas, costumes e afetividades. E porque zanza pelo universo afetivo dos ouvintes (afora as experimentações que sempre há e que quase nunca ambicionam esse contato afetivo), é assim tão permanente, onipresente, definitiva.
Pode-se argumentar, isso sim, que a canção tem outro peso e medida na sociedade moderna, diferente do que teve outrora; pode-se dizer que a audição não é o sentido mais estimulado pelas artes hoje em dia (barulho de trânsito, rave e TV ligada não contam); pode-se listar algumas formas contemporâneas de música que excluem o caráter sentimental da canção – o rap e a música eletrônica têm outras ambições – ou mesmo que prescindem da necessidade de poesia, tão essencial ao formato canção desde sua origem.
O leitor poderá contra-argumentar que: 1) a canção na origem não prezava tanto a poesia, coisa só valorizada por volta dos anos 20 do século passado, com o surgimento de bambas como Braguinha e Noel Rosa, no Brasil, e Cole Porter e Ira Gershwin nos Estados Unidos, por exemplo; 2) já havia, antes da música eletrônica, gêneros dançantes de música, como o soul, o rhythm’n’blues e o funk (o americano, de James Brown, não o carioca de Tati Quebra-Barraco), e estes podiam ser enquadrados no escopo generoso da canção, embora, porque tivessem outros apelos, nem sempre fossem considerados como tal.
Ok, o leitor que assim argumentasse teria parcial razão. A poesia de fato, digna de ser chamada de poesia, na canção não era um acontecimento obrigatório na origem. Bastava um bom refrão e uma letra com certa cadência rítmica e razoavelmente bem urdida, e o cordão andava – e bem, vide as marchinhas carnavalescas que reinaram no Brasil até os anos de 1950, quando o samba-enredo começou a tomar seu lugar entre os foliões. E músicas dançantes, ou, digamos, músicas mais “sensoriais”, já havia desde sempre (e ninguém há de negar que “Sexual Healing”, de Marvin Gaye, “We Will Rock You”, do Queen, ou “Não Quero Dinheiro”, de Tim Maia, sejam canções com C maiúsculo). Mas a música eletrônica levou isso bem mais longe, abolindo a letra – ou no máximo reduzindo-a a mero refrão – e supervalorizando o groove, criando um novo gênero, uma música extremamente funcional, cuja “função” é clara e inconfundível: fazer dançar – música essa que, nem com imensa boa vontade, poderia ser caracterizada como canção.
De volta ao começo: quando eu era menino e a família comprava um LP, ouvia-se o disco por inteiro, quase como um ritual, ainda que algumas pessoas continuassem seus afazeres domésticos ou escolares. A audição de um disco era uma fruição coletiva, familiar, gerava emoções, debates sobre preferências, às vezes brigas... Lembro quando chegou à casa dos meus pais o primeiro disco do Jair Rodrigues, Orgulho de um Sambista, hoje um clássico. Eu, com sete ou oito anos, exultava com os sambas Tristeza, Folia, Carnaval e Cinzas e o samba-título, e Juca, um primo que morava longe e sempre nos visitava, ia às lágrimas com O Menino da Porteira, triste e antológica moda de viola.
Hoje, quem se dispõe a gastar 40 minutos de seu precioso tempo para ouvir detidamente um disco, lendo suas letras, informações técnicas contidas no encarte, conferindo os músicos desta ou daquela faixa etc.? Hoje, por força da velocidade de nossa época, ouve-se música mais fortuitamente que antes, de modo expresso, no carro, na festa, no almoço com amigos, no churrasco, na viagem de carro, enquanto se trabalha no computador... Mas, quem é que para e degusta um disco como se fosse um manjar divino nos dias que correm (literalmente correm)? Antes, que artista produz um disco para ser esse manjar hoje em dia?
Engana-se quem pensa que, com essas minhas indagações sem resposta, eu compactue com a cantilena de que “a canção acabou” (Até porque, a crer nisso, o que seria feito deste pobre compositor popular que ora vos escreve este mísero texto?). Não, não concordo com que a canção tenha acabado, vejo inúmeros bons compositores surgindo ano após ano, todos, ainda que com suas particularidades, rendendo tributos em sua obra ao formato clássico da canção – com mais ou menos reverência. Mas é inegável que a importância da música popular na vida dos mortais diminuiu com o tempo.
O próprio conceito de canção transformou-se. Antes, podia-se falar que a canção era composta basicamente de letra e melodia. Com o advento do jazz e, no Brasil, da bossa nova, a harmonia passou a ter importância extrema. Com o passar do tempo, arranjo e concepção sonora começaram a constar como itens básicos da canção. E hoje, com o surgimento dos modernos softwares de música e o uso cada vez mais frequente dos recursos eletrônicos na música popular, novos elementos foram sendo incorporados.
Hoje, não há resenha de disco que não mencione palavras outrora estranhas ao território da música, tais como “texturas”, “recheios” e “camadas” (o sujeito desavisado que entrasse numa máquina do tempo nos anos de 1970 e caísse no século 21, e se deparasse com a resenha de um crítico musical sobre um disco destes tempos, poderia por um minuto pensar que se tratava de um comentário sobre bolos confeitados).
A poesia merece uma reflexão à parte. Superestimada por uns, desprezada por outros, não há canção que se sustente sem o aporte de uma letra bem urdida. E quando falo “bem urdida”, isso exclui categorias, gêneros e julgamentos preconcebidos, tais como “música de má qualidade” ou “boa música”, “música elitista” ou “música popularesca”. A música em questão pode ser do repertório de João Donato, Jota Quest, Bruno e Marrone ou Tom Jobim. Há ilustres que escorregam e há “banidos” que acertam.
E assim segue o bonde da canção, entre profecias apocalípticas e promessas de redenção. Bem provável que o seu apogeu já tenha passado. Mesmo assim, os fazedores de canções prosseguem, “por destino, ofício ou paixão” – como diz antiga canção do compositor cearense Ednardo –, em sua empreitada gauche de encantar serpentes, ainda que tenham que engolir cobras, lagartos e o eterno anúncio do fim.
Zeca Baleiro é cantor, compositor, músico e cronista.
“Vivemos uma nova era da canção, mas não vimos (tampouco acho que veremos) seu fim – e o fato de o próprio autor [Chico Buarque] da célebre frase ter lançado dois discos de inéditas nos últimos seis anos
é prova inconteste disso”
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O fim da canção – melodrama
por Arrigo Barnabé
Personagens: Alfredo, Rocha e Viana, três amigos em um botequim.
Cenário: no palco, uma mesa e algumas garrafas de cerveja. Ocasionalmente Viana traz da coxia uma nova cerveja. Luz de botequim.
Alfredo, depois de entornar um copo, diz: – Mas que papo é esse aí, isso também não é o fim do mundo! Qual é o problema? É o fim da canção, mas não é o fim da música, aí sim é que ia ser complicado, se fosse o fim da música… Como naquela cena do Macbeth em que ele diz: “Uma voz pareceu-me ouvir, aos gritos de: ‘Não durmais! Macbeth matou o sono!’, o meigo sono, o sono que desata a emaranhada teia dos cuidados, que é o sepulcro da vida cotidiana, bálsamo dos corações feridos…”. Imagine agora, Rocha, se você coloca música em lugar de sono, imagine o que seria isso, alguém matar a música, que tragédia, o fim da música!
Rocha – Para com isso, Alfredo. Você sempre com essa história do Macbeth, pô! É o seguinte: ele, o “homem”, disse que a canção acabou… e ele, você sabe, é o maior compositor, ou autor de canções (como você gosta de falar) vivo! Não é moleza não, não vem com esse papo de Macbeth aí…
Alfredo – Justamente isso que eu estou dizendo, Rocha, o fim da canção é aceitável, o fim da música, não. Já imaginou um mundo sem música? Eu sei que o homem falou de uma outra forma, de um outro ponto de vista, não é tão simples assim.
Viana (se aproximando e servindo cerveja) – Mas como assim, que que é isso? Ué, a canção não é a música?
Rocha – O que ele quer dizer é que a canção depende da memória, e existe uma música que pode depender da memória, mas pode existir sem ela também...
Viana – Pô, Rocha, num começa a confundir. Tá certo que a canção depende sempre da memória, mas, fora alguma coisa da música do século 20, toda a produção anterior depende da memória também. Música sinfônica, de câmara, vocal e instrumental, toda ela depende de mecanismos da memória para adquirir sentido!
Rocha – É, mas a melodia, a gente pode perceber que a melodia vem desaparecendo, aos pouquinhos, nos últimos anos… e agora tem o rap, quer dizer “poesia e ritmo”, quer dizer, a palavra com sua musicalidade própria, que parece satisfazer essa estranha necessidade de reduzir mais ainda a “ideia” de melodia. Quer dizer, aí a melodia com sua lógica interna desaparece completamente, e sobra o ritmo como elemento condutor...
Viana – Olha, cara, eu acho que isso começou com a bossa nova, tá? Isso da canção acabar… Porque a melodia foi desaparecendo, se desmilinguindo, né?
Alfredo – Mas olha a melodia do Chega de Saudade, aquilo é quase um choro, toda cheia de saltos, arpejos…
Viana (se aproximando e servindo outra cerveja) – É, foi aí que começou essa coisa de harmonia, harmonia, e a melodia foi pras cucai… Antes existia sentimento mesmo, né? A gente chorava ou ficava alegre ou apaixonado… Daí veio a bossa nova e ficou essa coisa morna...
Alfredo – Cê tá falando por causa do Samba de uma nota só, é por isso? Pô, vocês não entendem que essa mudança reflete uma mudança maior que estava acontecendo na sociedade? Uma transformação social? Você não vê isso como um sintoma? A bossa nova não podia ser um sintoma...
Viana – Que transformação social é essa? Pobre deixou de ser pobre na época da bossa nova?
Rocha – Não, veja bem o que o Alfredo está dizendo, Viana… A sensibilidade da sociedade se transforma enquanto ela própria se transforma... Você acha que a necessidade de beleza, a necessidade estética, de um homem não é condicionada pelo tempo em que ele vive, pela sua contemporaneidade?
Viana – Que embromação, Rocha! Logo você me falando em estética? Diz que eu não tenho um pouco de razão nisso, diz. Diz que não começa uma mudança no pensamento da função da melodia, quando a bossa nova aparece? E a melodia não vai perdendo importância? E o negócio fica pro lado da harmonia? E a canção não é antes de tudo melodia?
Alfredo e Rocha se entreolham. Silêncio por uns 2 minutos. Rocha esvazia seu copo e Alfredo cutuca os dentes tentando tirar um pedaço de tremoço que se encalacrou entre o molar e o canino.
Alfredo – Você entendeu o que eu tava falando, que a bossa nova pode ser um sintoma? Um sintoma de uma sociedade que começa considerar como supérfluo todo excesso? Que não precisa mais tanto assim do ornamento, da ênfase? Que não precisa mais “sentir” tanto assim, como no período anterior? A bossa nova não pode ter sido um sintoma disso?
Viana – Tá. Posso pensar nisso, posso pensar… mas ninguém vai me convencer de que não foi aí que a melodia começou a sumir…
Rocha – Está registrado, Viana, está registrado, mas as coisas mudam, né? E depois veio o ié ié ié e a mpb, e o tropicalismo… e a coisa foi muito mais para o lado do texto, já começou a apontar aí…
Alfredo – Mas é evidente que o estatuto agora é outro para os compositores, né? A canção de autor já não é mais o motor principal da indústria fotográfica… a sociedade parece não ter mais a mesma necessidade de canções…
Viana – Mas como assim? A canção nunca vai acabar, nunca!
Rocha – A música cantada, você quer dizer, Viana…
Viana – É canção, num é? Tudo que é cantado não é canção?
Rocha – Como forma é diferente. A canção tem uma coisa clara de forma, de engendramento, e isso está sumindo mesmo, é verdade; parece que as novas gerações não têm a mesma necessidade que as anteriores, e isso é só uma constatação, talvez seja um reflexo do triunfo do capitalismo, quem vai saber?
Viana (dirigindo-se a Rocha com gestos teatrais) – Até tu, Brutus!
Arrigo Barnabé é compositor e ator
“A canção tem uma coisa clara de forma, de engendramento, e isso está sumindo mesmo, é verdade; parece que as novas gerações ?não têm a mesma necessidade que as anteriores, e isso é só uma constatação”