Postado em 01/04/2013
Guiadas pelo consumismo desenfreado que assola a sociedade contemporânea, as pessoas se tornam reféns de um sistema capaz de transformar produtos genuinamente uradouros em descartáveis. Em meio a essa realidade, o consumidor não se dá conta de sua condição, pois ao comprar algo não está apenas adquirindo um objeto, mas sim um “estilo de vida”. No mesmo caminho seguem as relações interpessoais: as amizades e os romances são cada vez mais superficiais e virtuais, com curto prazo de validade, principalmente pela crescente necessidade de substituição que norteia o ser humano. O medo da descartabilidade aflige os envolvidos em qualquer tipo de relacionamento, mas alguns ainda buscam práticas alternativas que vão na contramão dessa situação. Em textos inéditos, a antropóloga Rita Alves e a psicóloga Cristiane Costa Cruz analisam a questão.
A descarta bilidade das mercadorias e pessoas: consumo, obsolescência e relacionamentos humanos
Por Rita Alves
Recentemente, circulou pelas redes sociais digitais uma pequena história na qual um casal de idosos, juntos há décadas, é interrogado sobre o segredo de se manter um relacionamento tão longo; respondem que na época em que se casaram não se costumava jogar fora um aparelho quebrado, mas se buscava consertá-lo e, assim, seguia-se a vida por muitos anos com os mesmos equipamentos. O casal estava dizendo, em outras palavras, que a longevidade de seu relacionamento se baseava na capacidade de “consertar” as fissuras da relação em vez de descartá-la quando os problemas aparecem.
Os relacionamentos, assim como as mercadorias, passam por um período de intensa descartabilidade. O cientista social polonês Zygmunt Bauman já apontou a íntima relação entre as práticas de consumo contemporâneas e a fragilidade dos laços humanos na atualidade.
O consumo é pautado pela obsolescência planejada e pelo desejo intenso por novidades, mudanças e, principalmente, novos desejos. Para ele, a satisfação dos desejos é angustiante na medida em que nos obriga a eleger um novo objeto de desejo; aponta que atualmente “o desejo não deseja a satisfação; o desejo deseja o desejo”. Daí a sensação constante de angústia e a incessante busca por novos desejos e realizaçõe. O mesmo acontece com os relacionamentos atuais. As relações amorosas, as amizades, os contratos de trabalho e até mesmo os laços familiares são afetados por essa lógica da descartabilidade e da efemeridade do consumo, ou melhor, do consumismo.
Segundo o antropólogo David Harvey, trata-se da lógica do capitalismo implementada após a Segunda Guerra Mundial, que trouxe a
alteração das nossas noções de tempo e espaço a partir da aceleração do tempo de giro das mercadorias. Os bens materiais passaram a ser produzidos, distribuídos, consumidos e descartados com maior velocidade. Com essa compressão do tempo, passamos a valorizar a velocidade e a aceleração, que se transformaram em valores inquestionáveis, como se o veloz fosse, necessariamente, o bom e o desejável.
A partir daí, nosso cotidiano passou a ser pautado pela efemeridade, a volatilidade, a instantaneidade, a simultaneidade e, no limite, a descartabilidade. Para Bauman, neste mundo líquido, flexível e mutável em que vivemos, a única coisa sólida e perene que nos sobra é o lixo, que se amplia, acumula e permanece como um dos maiores problemas do planeta.
O desejo de mudança já está interiorizado e presente nas nossas ações. Desejamos mudar os cabelos, a cor das paredes das nossas casas, nossos corpos, automóveis. “Mude a sua sala de estar mudando apenas a mesinha de centro”, dizia o anúncio de uma revista de decoração.
“Mude, seja outra pessoa”, sugere a cultura contemporânea. Os reality shows de intervenção trocam todo o guarda-roupa dos participantes e jogam no lixo toda sua história, todas as suas lembranças e memórias impregnadas nas roupas; trocam todos os móveis da casa por outros novos e alinhados com as tendências contemporâneas, mas que, sabe-se, não durarão mais que cinco ou seis anos em boas condições, posto que são feitos apenas para atender à moda do momento. Essas práticas de consumo envolvem não só a qualidade das mercadorias adquiridas, mas também a quantidade, nunca tivemos tantos objetos.
É esse o cenário que envolve também os relacionamentos humanos, dos matrimônios às amizades, da sexualidade aos circuitos familiares. As relações amorosas, por exemplo, entram na mesma lógica quantitativa e efêmera que desenvolvemos com os objetos, especialmente entre os jovens, que não escondem a valorização dos “ficantes” nas suas baladas noturnas; numa mesma noite “fica-se” com vários parceiros efêmeros e passageiros, às vezes nem mesmo perguntam-se os nomes e já partem para outra conquista rápida; ao final da noite, uma contabilidade geral indica o status de cada um. Mesmo quando a relação é duradoura, o tempo entre o namoro, o casamento e a separação pode ser de alguns anos, às vezes meses. A angústia do compromisso duradouro está na base dessa volatilidade amorosa; “será que estou perdendo algo melhor?”; o medo da descartabilidade aflige as duas partes: ou seremos descartados ou descartaremos nosso par. Entre as amizades juvenis, acontece quase o mesmo; troca-se de turma, incorporam-se novos amigos; as redes sociais digitais registram a intensidade do relacionamento, “adorei te conhecer!”, e, depois de alguns dias de exposição das afinidades e afetos, deixa-se que a nova amizade esfrie até que seja substituída por outra mais nova ainda. No âmbito de trabalho, antigamente dedicava-se à mesma empresa por 30 ou 40 anos; hoje em dia, dizem os especialistas em gestão de carreiras que não se deve permanecer num mesmo emprego por mais de cinco anos, que isso pode parecer acomodação e falta de ousadia profissional. Busca-se descartar o emprego antes de ser descartado pelo patrão.
De certa forma, as redes sociais digitais vieram contribuir para essa situação, provocando o aumento dos relacionamentos superficiais e passageiros, as conversas fragmentadas e teatralizadas, o excesso de “amigos” e convites para eventos aos quais não conseguimos dar muita atenção.
As vozes pessimistas consideram que as tecnologias digitais estão contribuindo para o isolamento, a separação e a superficialidade das relações humanas. Isso pode ser verdadeiro em muitas situações, mas existem outros lados dessa questão. As redes online também resgatam antigas amizades e recuperam, mesmo que pontualmente, relações deixadas no passado; recuperam-se fotografias antigas, marcam-se encontros de turmas do colégio, apresentam-se os filhos e maridos ou esposas. Com a recente entrada dos idosos nas redes sociais, temos presenciado interessantes alterações nas dinâmicas familiares, com a criação de novos canais de comunicação entre avós e netos, por exemplo, ou ainda entre parentes há muito separados pela distância ou dificuldades de locomoção; as separações geográficas e geracionais no âmbito familiar estão sendo reconfiguradas de forma interessante e contribuindo positivamente para o resgate da socialização dos idosos.
Apesar do quadro desalentador que envolve o consumo exacerbado e os relacionamentos humanos, temos observado práticas alternativas que vão na contramão dessa situação. Espalha-se pelo mundo o Movimento Slow, que questiona a velocidade e a descartabilidade das mercadorias e relações, propondo um retorno às práticas desaceleradas de tempos atrás. A vertente mais conhecida desse movimento é o slow food que propõe que voltemos a preparar a comida lentamente, que conversemos com o açougueiro, o padeiro e o verdureiro; que convivamos com nossos amigos na beira do fogão enquanto preparamos a comida lentamente. Na contramão do fast food, o slow food busca resgatar os rituais de alimentação que sempre estruturaram as relações familiares e de amizades. Vemos ainda a emergência de grupos que questionam o consumo excessivo e inconsequente, propondo o consumo consciente no qual se buscam informações sobre as práticas sociais das empresas produtoras, questionam-se as embalagens, aponta-se a possibilidade de reutilizar e reciclar embalagens e objetos.
Existe ainda o recente consumo colaborativo, no qual os sujeitos partilham equipamentos como máquinas de cortar grama, furadeiras elétricas e até automóveis, considerando que individualmente estão subutilizados e que com os usos partilhados e coletivos pode-se otimizar os recursos. Do ponto de vista das relações humanas, temos observado nas grandes cidades o surgimento de grupos que propõem o resgate das relações de vizinhança, a ocupação e revitalização das praças públicas, a produção de hortas urbanas comunitárias, piqueniques coletivos e o resgate da convivência comunitária nos bairros. Na base desses movimentos está uma consciência ecológica renovada, que vai além dos discursos de preservação da natureza e que se volta à transformação dos cotidianos e das relações interpessoais. Para além da descartabilidade das mercadorias e pessoas, continuamos com a certeza de que a base da humanidade não está no avanço da tecnologia ou no acúmulo de riquezas, mas na força dos relacionamentos humanos; foram eles que ergueram o edifício da sociedade e da cultura e, seguramente, não serão descartados com tanta facilidade.
Rita Alves é antropóloga, professora do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e integra o grupo de pesquisa Imagens, Metrópole e Culturas Juvenis.
A era dos sentimentos descartáveis
por Cristiane Costa Cruz
Até o início do século 20, os objetos para uso diário eram produzidos artesanalmente e duravam muito tempo. Os pregos, por exemplo, eram feitos à mão e custavam tão caro que, quando uma casa pegava fogo, os escombros eram vasculhados após o incêndio para recuperá-los. Depois surgiram as técnicas de produção em massa, que tornaram pregos e diversos outros objetos
tão baratos, que passaram a ser usados e jogados fora. Criou-se então o conceito de objeto descartável. Situação semelhante ocorre hoje com muitos equipamentos eletrônicos.
Há não muitos nos, os preços elevados desses produtos e os custos baixos para manutenção encorajavam as pessoas a consertar os aparelhos. Atualmente, quando um dispositivo quebra, é mais barato jogar fora e comprar um novo do que tentar consertar.
Na década de 1930, os países capitalistas enfrentavam uma grave crise econômica e foi criada uma estratégia de mercado para garantir que houvesse consumo constante, baseada em limitar o tempo de utilidade dos produtos. Essa prática foi denominada “Obsolescência Programada” e se aplica quando os produtos têm sua durabilidade diminuída propositalmente, obrigando os consumidores a substituí-los regularmente. Ou ainda, quando se criam novas versões dos mesmos produtos, como acontece hoje com os computadores e celulares, que são relançados em novas versões “atualizadas” a cada ano. Vivemos em uma sociedade que privilegia as tecnologias descartáveis, que passaram a gerar preocupações ambientais e de segurança.
A partir dessas transformações, criou-se uma cultura consumista, em que os bens de consumo são oferecidos para uso imediato, a satisfação é instantânea e cria-se a ideia de um mundo A era dos sentimentos descartáveis por Cristiane Costa Cruz
perfeito por meio dos anúncios das novidades. É realmente muito difícil resistir à exibição indiscriminada das imagens que nos induzem a consumir. As mídias têm o poder de influenciar nossas mentes e, mais do que novos produtos, atualmente são criadas constantemente novas necessidades, que sequer teríamos imaginado há alguns anos.
Muitas vezes, ao comprar algo, não estamos comprando apenas um objeto, mas acreditamos estar adquirindo um estilo de vida. Ao satisfazer um desejo material, achamos, por alguns segundos, que nossa vida ficará perfeita. Os meios de comunicação de massa vendem a ideia de uma falsa felicidade, efêmera, mas que pode ser adquirida facilmente por meio de um cartão de crédito.
Na era dos sentimentos descartáveis, todos os dias nos deparamos com novas pseudonecessidades e pseudodesejos. Figuras estereotipadas de homens e mulheres são exibidas como corpos sem essência e o afeto é desvalorizado em detrimento do poder financeiro. Por trás dessa aparência, todos os desconfortos ficam anestesiados e o sofrimento é adiado até a próxima compra. As pessoas passam então a consumir as imagens de tudo o que lhes falta em sua existência. Para que enfrentar os medos, as
inseguranças e a solidão se basta sair às compras para sorrir novamente?
A grande dificuldade da atualidade parece ser lidar com frustrações. Muitas pessoas se acostumaram a descontar as frustrações do dia a dia comprando. Sair de uma loja com várias sacolas pode gerar uma enorme sensação de felicidade, ainda que se compre coisas desnecessárias, que talvez nunca sejam usadas. Mulheres geralmente buscam peças de vestuário, cosméticos e tratamentos de beleza, enquanto os homens preferem produtos eletrônicos e carros.
Depois, a culpa pelo consumo excessivo ainda pode ser expiada atirando-se os restos dos produtos mal utilizados na lata dos recicláveis. Para que enfrentar crises em busca de uma solução se é tão mais fácil apenas ir ao shopping center e mudar de assunto? Baseados na crença de que a felicidade é o resultado da satisfação dos desejos materiais, muitos pais dão aos filhos
o máximo que podem, para vê-los felizes, e sentem-se culpados em dizer não. Entretanto, embora a intenção seja boa, incentivar a fantasia de que é possível ter tudo o que se deseja pode ser prejudicial, pois sentir frustração é importante para o desenvolvimento de qualquer pessoa. Quando somos crianças acreditamos que o mundo gira em torno de nós e achamos que os outros existem apenas para atender a nossas expectativas. À medida que essas expectativas vão sendo frustradas, aprendemos que ninguém está no mundo para nos servir e que os outros também têm seus próprios desejos.
Mas as novas gerações parecem encarar as frustrações com mais dificuldade, justamente por conseguirem o que querem de forma fácil e rápida, às vezes sem nenhum esforço. Essa facilidade torna-se uma espécie de analgésico ao qual se pode recorrer depois de adulto e que serve para aliviar os desconfortos da vida real. Quanto maior a dificuldade em lidar com frustrações, menor a possibilidade de avaliar os próprios erros e relacionar-se verdadeiramente com os outros. Aprender a lidar com os fracassos da vida é importante para conhecer e aceitar nossos próprios limites, para então conseguir reconhecer os limites dos outros.
O medo de sofrer parece ter adquirido uma dimensão tão assustadora que criamos estratégias estranhas para nos proteger. Da mesma forma que as coisas chegam prontas, as pessoas também podem ser substituídas facilmente, e os relacionamentos, tanto de amizade como amorosos, passaram a ser encarados como algo a se obter sem nenhum esforço ou dedicação. Pode-se ter inúmeros amigos que estarão sempre disponíveis no Facebook, mesmo que não haja tempo para encontrá-los. Para amenizar a solidão, basta encontrar alguém para passar um tempo, dias ou apenas horas, sem a obrigatoriedade da presença de sentimentos.
O outro ideal é visto como alguém capaz de satisfazer as necessidades e corresponder às expectativas do momento, e o relacionamento dura apenas enquanto for fácil mantê-lo. Quando as exigências não são mais correspondidas, esse outro pode ser descartado e a falta de interação afetiva já garante de antemão que não haverá sofrimento. Assim, a tendência à obsolescência parece estar afetando também os relacionamentos.
Construir uma relação não é algo fácil e exige um grande esforço. Para nossos avós o casamento tinha um sentido de parentesco, os casais enfrentavam altos e baixos, mas lutavam para superar os maus momentos. Na era dos encontros descartáveis, um compromisso parece ter se tornado uma limitação, pois impede a abertura para novas oportunidades, e a cada dificuldade já se pensa na próxima relação. As consequências perderam a importância e não há disposição para se adaptar. A sexualidade transformou-se em mais um produto de consumo, restrito à satisfação física. Em encontros fugazes, ocorre uma troca ilusória em que o outro entra como objeto fornecido pelo acaso. A falta de envolvimento não permite a experiência de percebê-lo como alguém que também tem liberdade para escolher. Da mesma forma que estamos sempre na expectativa de um novo modelo de smartphone, os laços amorosos são constantemente ameaçados pela ideia de que, a qualquer momento, pode aparecer alguém melhor. O amor tornou-se mais um objeto de consumo e as pessoas que cruzam as nossas vidas passaram a ser também descartáveis.
Que tipo de sociedade estamos criando? Consumimos desenfreadamente os recursos do planeta, produzimos diariamente montanhas de lixo, em busca da satisfação de necessidades que não temos de verdade. Alimentamos um vazio interior com imagens estereotipadas e vemos os outros como uma ameaça em vez de tentar compreender as diferenças que nos incomodam. Evitamos a qualquer preço todo tipo de frustração e adotamos um modelo efêmero de felicidade, que prega a facilidade e o imediatismo. Não seria a hora de tirarmos os olhos das vitrines e olharmos um pouco mais para dentro, para tentar identificar nossas verdadeiras necessidades?
Cristiane Costa Cruz é psicóloga e presidente da Associação MENSA Brasil para pessoas com alto QI (superdotados).