Postado em 01/07/2013
Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, fala sobre a produção de remédios e vacinas
Por: CARLOS JULIANO BARROS
Nascido em Fortaleza há 62 anos, Paulo Gadelha não é cearense. Também não é carioca, apesar de ter passado no Rio de Janeiro a maior parte da vida. Gadelha é um autêntico filho da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), braço da entidade responsável pela formação de recursos humanos, concluiu seu doutorado. E, desde 1985, participa da gestão da instituição, vinculada ao Ministério da Saúde.
Em março deste ano, Gadelha tomou posse pela segunda vez consecutiva do cargo de presidente dessa que é uma das mais importantes instituições voltadas à área da saúde no país, eleito por votação direta que mobilizou mais de 12 mil trabalhadores. Apesar de ter iniciado suas atividades em 25 de maio de 1900, a Fiocruz só receberia seu nome de batismo anos mais tarde, em homenagem ao sanitarista Oswaldo Cruz – que, nas primeiras décadas do século passado, erradicou a epidemia de febre amarela e de peste bubônica na capital carioca.
Gadelha recebeu a reportagem de Problemas Brasileiros para esta entrevista exclusiva no imponente castelo de arquitetura mourisca que abriga a sede da fundação, no Rio de Janeiro. Dentre outros assuntos, ele falou sobre os desafios à efetiva universalização do atendimento proposta pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e a importância da Fiocruz na produção de medicamentos e vacinas para consolidar o “complexo econômico-industrial da saúde” no país.
Também presidente da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), Gadelha defende a regulamentação do uso de entorpecentes pelo Estado brasileiro. “Existe uma evidência óbvia de que a estratégia dominante nas últimas décadas, da chamada ‘guerra às drogas’, é um grande fracasso”, afirmou.
Problemas Brasileiros – Recentemente, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, afirmou que a Fiocruz é “referência para o sistema público, universal e gratuito de saúde”. Como o senhor definiria a instituição?
Gadelha – A Fiocruz tem uma enorme vantagem, que é a sinergia de atividades amplas dentro da mesma instituição. Ela tem pesquisa, formação de recursos humanos, área de produção de medicamentos e vacinas. É uma instituição-chave do ponto de vista do projeto de país e de nação. Está colocada na junção do campo das políticas sociais e do campo do processo de desenvolvimento produtivo e de inovação.
PB – A Fiocruz responde por seis das 13 vacinas do Programa Nacional de Imunizações e, no programa de combate à Aids, contribui com sete dos 20 tipos de medicamentos consumidos por mais de 200 mil pessoas. É na área de produção de vacinas e medicamentos que a Fiocruz se destaca?
Gadelha – No campo de medicamentos e vacinas, a Fiocruz atua tanto na inovação vertical – pesquisando um produto que depois pode ser desenvolvido e produzido aqui mesmo na instituição – como na realização de parcerias público-privadas.
Sem dúvida, um dos desafios centrais para dar sustentabilidade a um sistema universal de saúde, como propõe o SUS, é configurar no país uma base produtiva capaz de tornar viáveis os custos dos insumos necessários para segurar esse sistema. E, dentre esses insumos, os mais significativos são as vacinas e os medicamentos.
Nesse sentido, a fabricação desses produtos é uma área de destaque da Fiocruz. É só pensar no Programa Nacional de Imunizações, pelo qual o Brasil é reconhecido mundialmente. Primeiro, porque consegue produzir praticamente todas as vacinas que o país distribui no SUS. Segundo, porque faz isso de forma gratuita, com custos acessíveis, e porque internaliza tecnologia.
PB – Nos últimos quatro anos, as importações de medicamentos subiram 56%. Só em 2012, o Brasil gastou cerca de R$ 9 bilhões. Por que chegamos a essa situação e como é possível reverter esse quadro?
Gadelha – Na verdade, esse déficit seria muito maior se não tivesse havido ao longo dos últimos anos a ação incisiva do Ministério da Saúde. Estamos falando de instrumentos bastante abrangentes, que vão desde capacitação tecnológica para pesquisa e inovação até mudanças no âmbito da legislação e do aparato regulatório para facilitar a internalização da produção de medicamentos no Brasil.
Recentemente, assinamos um termo de cooperação com o Ministério da Saúde para desenvolver na Fiocruz a área de farmoquímica, que foi destruída no período [do ex-presidente da República Fernando] Collor. Toda a base industrial que existia até então foi corroída, com redução de alíquotas para importação, dentre outras medidas. E, apesar de a farmoquímica estar numa geração anterior do ponto de vista da tecnologia (hoje, o grande desafio está na área de biofármacos), grande parte do déficit da balança de pagamentos brasileira vem dos insumos farmacêuticos ativos – os IFAs –, que estão na área da farmoquímica. Hoje, mais de 80% da produção de medicamentos no Brasil é dependente da importação de IFAs.
PB – O senhor já afirmou que é preciso consolidar um “complexo econômico-industrial da saúde” para dar respostas às “demandas sociais e de sustentabilidade do SUS”. O que o senhor quer dizer com isso?
Gadelha – Há uma evidência mundial de que o setor da saúde é responsável por uma grande parte dos PIBs nacionais. Se contabilizarmos o volume de recursos para produção de medicamentos, equipamentos, serviços, mão de obra, o setor da saúde é responsável por 9% do PIB brasileiro. Quando falamos de “complexo econômico-industrial da saúde”, estamos nos referindo não só à saúde como grande área de investimento, mas primordialmente a uma questão de direito. Esse complexo só fará sentido se cumprir o papel de suporte de um projeto social, da universalização proposta pelo Sistema Único de Saúde.
PB – O “complexo econômico-industrial da saúde” pressupõe que o país organize a produção industrial de medicamentos, e que isso seja feito de forma autossuficiente para atender nossa população?
Gadelha – Exatamente. Na verdade, estamos falando de uma concepção de Estado. Qual é o papel do Estado? E qual é o das parcerias que o setor público estatal gera com o setor privado? É fundamental que se tenha um mercado forte constituído, com uma base produtiva assentada nas indústrias nacionais. E quem tem uma posição importante para orientar esse processo? O Estado, pelas prioridades que pode elencar, reconhecendo as demandas centrais no campo da saúde.
Por exemplo: precisamos começar a nos preparar já para ter maior autonomia [na oferta de medicamentos e atendimentos] na área de câncer. Por quê? Porque o câncer e as doenças crônicas não infecciosas já desempenham hoje um papel central na carga de doenças e na qualidade de vida da população.
PB – Até 2016, o governo federal pretende investir R$ 35 bilhões para incentivar laboratórios públicos e privados. Como o senhor enxerga essa política?
Gadelha – Esse aporte de recursos envolve uma série de agências. O BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] tem hoje um papel central no suporte à criação de duas empresas ligadas à área de biotecnologia voltadas para a produção de biofármacos, que são a BioNovis e a Orygem. Essa política tem justamente o sentido de dar ao Brasil a capacidade de se estruturar com competitividade numa área que hoje é chave.
Mas é preciso que o próprio setor privado invista mais. Tanto as indústrias de capital brasileiro como as multinacionais instaladas aqui aplicam muito pouco em pesquisa. No exterior, o investimento de indústrias farmacêuticas e biotecnológicas é extremamente significativo. No Brasil, ele está melhorando, mas ainda é pequeno. Também precisamos de maior rapidez em mecanismos regulatórios. O Estado brasileiro tem de passar por uma profunda reforma administrativa, especialmente no que respeita às relações público-privadas e às questões que implicam capacidade de inovação.
PB – O Ministério da Saúde tem firmadas mais de 50 parcerias para o desenvolvimento produtivo (PDPs) – que consistem na compra exclusiva de medicamentos de um laboratório privado em troca da transferência de tecnologia a um laboratório público para a produção de fármacos. Como o senhor avalia essa política?
Gadelha – Esse é um dos caminhos centrais que tem dado mostras de muito sucesso. Com as PDPs, você define não só o que é necessário para a população, mas o que tem valor estratégico importante na relação dos custos do SUS. E também determina o que é necessário para o avanço do conhecimento e da capacitação tecnológica do país. O Brasil precisa produzir fármacos a custos mais acessíveis. Verificado isso, procurava-se o parceiro que teria melhores condições para uma associação. Com o passar do tempo, foi-se evoluindo cada vez mais para que essas parcerias não fossem apenas para importação de produtos já maduros. Elas envolviam não só a capacidade de produção, mas o domínio tecnológico.
Vou citar o caso de uma parceria que a Fiocruz tem com a empresa GSK, de capital inglês. Fizemos vários produtos com ela. Agora, estamos desenvolvendo em conjunto uma vacina contra a dengue. Esse estágio de termos componentes de conhecimento da Fiocruz e da GSK para conjuntamente desenvolver uma vacina contra a dengue é extremamente inovador. Tempos atrás, a empresa só atuaria com o fim de transferir seus produtos acabados e negociar preço.
PB – A vacina contra a dengue é um exemplo de PDP?
Gadelha – Isso não é ainda uma PDP stricto sensu, porque a PDP está voltada para a produção industrial de medicamentos. Mas a PDP hoje, além do resultado direto que implica (que é produzir um fármaco, internalizar uma tecnologia e garantir acesso a preços compatíveis), é âncora para criar uma ambiência de negociação de parcerias muito mais amplas que envolvem pesquisa, desenvolvimento e inovação.
No caso da dengue, o acordo que estabelecemos na associação com a GSK reza que o Brasil, na eventualidade de a vacina ser bem-sucedida (ela ainda está em processo de pesquisa clínica), se transformará no locus de sua produção mundial. Tanto que a GSK está investindo em instalações para a fabricação local da vacina.
PB – A Fiocruz instalou uma unidade em Moçambique. Qual é o objetivo da “internacionalização” da instituição?
Gadelha – A Fiocruz é uma instituição estratégica do Estado brasileiro. Ela não é voltada à obtenção de lucro e à competição no mercado privado. Podemos pensar no alargamento do mercado mundial, mas isso não é configurado sob a óptica do lucro. É algo mais direcionado para as políticas de relação externa do Brasil, para as áreas de solidariedade, para os sistemas da Organização Mundial da Saúde [OMS], enfim, para transformar o Brasil em um ator importante no âmbito da saúde em nível global.
PB – Mas, para a Fiocruz se transformar no centro mundial de produção da vacina contra a dengue, como o senhor disse, é necessário ter um custo competitivo menor ou pelo menos igual ao dos laboratórios privados...
Gadelha – Sem dúvida, vamos estar sujeitos ao mesmo crivo. O que estou colocando é o seguinte: poderíamos ter muito lucro produzindo cosméticos, mas a definição de nossa missão não se dá por critérios de mercado. Por outro lado, uma vez que estamos no setor produtivo, temos plena clareza de que precisamos demonstrar competência em produtividade, em negociação, em tecnologia, como qualquer outra empresa. Só que nossa missão é fortalecer aquilo que o Estado brasileiro considera central. Nós não vamos produzir aspirina.
O foco é onde a ação do Estado é necessária, onde existe uma lacuna do mercado privado. Como citei, no campo da farmoquímica, a ideia é adquirir competência na área de produção de insumos farmacêuticos ativos. Isso não significa que vamos fabricar todos eles. Vamos construir uma reserva estratégica para o momento em que houver desabastecimento ou falta de interesse do mercado internacional em produzir determinados IFAs. Se um laboratório estrangeiro disser: “Não quero mais fornecer um IFA para um produto”, o SUS entra em crise porque hoje ele depende da importação de mais de 80% dos insumos.
PB – O senhor poderia dar um exemplo?
Gadelha – Foi o que ocorreu com a doença de Chagas. Em certo momento, um laboratório resolveu que não interessava mais a ele produzir o medicamento. E, de uma hora para a outra, não só no Brasil mas em toda a América do Sul, houve um risco de desabastecimento que só foi contornado quando o Estado entrou e a empresa repassou a tecnologia para que fosse produzido localmente. Isso aconteceu em outras situações. É o jogo do mercado.
PB – Recentemente, o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, cogitou a ideia de “importar” 6 mil médicos cubanos para atender as regiões mais carentes, principalmente o norte e o nordeste. O que o senhor achou?
Gadelha – Há de fato um déficit no número de médicos e na distribuição desses profissionais no território nacional.
PB – O déficit no Brasil é de 146 mil médicos, segundo os critérios da OMS.
Gadelha – O déficit absoluto já é real. Porém, o mais gritante é o déficit na capacidade de alocar profissionais da saúde, em especial os médicos, em áreas onde há carência e às quais, muitas vezes, por uma série de fatores, não se consegue, mesmo com remuneração atraente, levar os profissionais de que a população necessita.
Isso diz respeito a diversos fatores. As faculdades formam médicos voltados para um certo tipo de concepção, de mercado, de superespecialização. A formação de médicos no Brasil continua dissociada do aparato de prestação de serviços, de atenção. Também é preciso garantir que o médico que vá a lugares mais carentes, seja perto de centros urbanos ou em áreas remotas, tenha um sistema de acompanhamento e de capacitação que faça com que ele não se sinta isolado, como se não tivesse a oportunidade de crescimento profissional na carreira.
Esse processo poderia ser resolvido a médio e longo prazo com mudanças de natureza estrutural do país. Mas o gestor, que tem de dar as respostas que a população precisa, fica num dilema: vou esperar até quando? Se é necessário dar respostas urgentes e existe a possibilidade de atrair médicos, com competência, com critério, sejam eles cubanos ou de outros países, acho totalmente legítima essa iniciativa. Assim como é legítimo importar cérebros para a área de pesquisa. Por que todo mundo concorda em atrair profissionais do campo da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico, mas se cria uma barreira para os que atuam na saúde?
PB – O senhor também é presidente da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), que, entre outras medidas, propõe a descriminalização e a regulamentação do uso de drogas no país. É preciso acabar com o tratamento que se dá às drogas como caso de polícia e passar a entendê-las definitivamente como matéria de saúde pública?
Gadelha – Sem dúvida. A nossa tese é de que o cuidado com as drogas é uma questão centralmente de saúde – seja para um usuário recreativo, seja para um usuário dependente que gera danos a si e à própria sociedade. Estou falando de saúde no sentido pleno, envolvendo os campos da educação e do atendimento. Existe uma evidência óbvia de que a estratégia dominante nas últimas décadas, da chamada “guerra às drogas”, é um grande fracasso, inclusive nos países que foram seus propositores centrais.
A lei brasileira já separa o usuário do traficante. Ela diz que não se pode prender o usuário, mas se pode prender o traficante. O grande problema é que na lei não existe algo objetivo e regulamentado para caracterizar a posse de uma droga de modo a enquadrar alguém como usuário ou como traficante.
PB – É preciso dar mais clareza ao marco legal?
Gadelha – Sim. Não havendo isso, ficamos no campo da arbitrariedade judicial e policial. Com isso, acaba se expressando toda a vertente de preconceito contra as pessoas e comunidades mais vulneráveis, e vêm as implicações que conhecemos: explodiu a população carcerária, mas não houve redução da violência. E não existe nenhum critério científico que justifique a consideração do que é uma droga lícita e do que é uma droga ilícita.
PB – No final do ano passado, a internação compulsória dos dependentes de crack na capital paulista dividiu opiniões. Como o senhor avalia esse tipo de medida?
Gadelha – O grande problema é que estão colocando no centro da política a ideia de que a internação compulsória é a primeira linha de ação. Eu venho do campo da psiquiatria. É evidente que, se uma pessoa está em surto, com riscos para sua vida ou para a de outros, é necessário fazer uma internação compulsória, mas com avaliação médica e critérios bem constituídos.
O problema é: qual é o critério? A internação compulsória tem de ser a grande exceção. Essa ação, colocada em larga escala, é muito pouco efetiva para a recuperação das pessoas. As ações no campo da educação, do acolhimento, do fortalecimento dos laços sociais, são muito mais eficientes do ponto de vista da capacidade de recuperação do que essa ideia de “limpeza”. Isso é como fazer uma “higiene”. A cracolândia é um drama e as pessoas acham que vão resolvê-lo passando um rodo.
PB – E não se discutem medidas semelhantes para outras drogas lícitas, como o álcool...
Gadelha – Por que a gente trata o alcoólatra de maneira diferente do dependente de outra droga? Por que não defender a internação compulsória como meta primeira para todos os alcoólatras? Eles também têm um grau de sofrimento imenso, a saúde deles é atingida de forma intensa, a violência doméstica e no trânsito se dá por conta do alcoolismo, e por que o álcool é aceito?
Ninguém está defendendo a lei seca. A opção de beber é das pessoas. Por outro lado, cada indivíduo tem de ter a capacidade de saber se pode beber ou não, porque há gente com tendência ao alcoolismo e é preciso identificar. E, se passar do limite da autonomia, tem de ter atendimento.
O problema é: como se criam condições de consciência, como se desenvolvem crianças, jovens, adultos, com maior grau de autonomia e a capacidade de lidar com o risco de maneira saudável? Tem gente que consegue lidar com o risco do álcool de maneira saudável. Outros não. Essa é a diferenciação.