Postado em 30/07/2013
Estudioso alemão radicado no Brasil aborda a importância da literatura produzida no Norte do Brasil para o panorama intelectual e artístico nacional
O professor titular de Literatura da Universidade de São Paulo (USP), Willi Bolle, chegou ao Brasil em 1966. Desde então, o berlinense tomou interesse pelas mais diversas obras literárias brasileiras, com especial apreço pela literatura nortista.
Em sua vasta bagagem de publicações, encontram-se títulos como Fórmula e Fábula: Teste de uma Gramática Narrativa, Aplicada aos Contos de Guimarães Rosa (Perspectiva, 1973), Fisiognomia da Metrópole Moderna: Representação da História em Walter Benjamin (Edusp, 1994), grandesertão.br: o Romance de Formação do Brasil (Editora 34/Duas Cidades 2004), Amazônia – Região Universal e Teatro do Mundo (Globo, 2010), entre outros títulos. Em entrevista à Revista E, Bolle compara o sertão de Guimarães Rosa ao de Euclides da Cunha, analisa a urbanidade de Machado de Assis e Mário de Andrade, revela como se dá o olhar de um flâneur contemporâneo e comenta a riqueza que envolve a literatura paraense, encabeçada por Dalcídio Jurandir.
“Para entendermos a humanidade, precisamos entender seus povos e sua cultura”, diz. “É o que nos ensinam escritores como Guimarães Rosa, que dá voz aos sertanejos, e Dalcídio, que dá voz aos habitantes da Amazônia.” A seguir, trechos.
Quais as identidades e as diferenças entre Euclides da Cunha e Guimarães Rosa?
Euclides foca na revolta de Canudos, nos sertanejos liderados por Antônio Conselheiro, e Guimarães trata de lutas entre latifundiários locais, que usam jagunços. Uma diferença fundamental é que enquanto Euclides geralmente fala sobre os sertanejos, Guimarães Rosa dá voz a eles. Enquanto em Os Sertões há pouco mais de uma dúzia de falas diretas dos jagunços, no Grande Sertão Veredas há em torno de mil, além da fala do narrador Riobaldo, que não é um sertanejo típico, mas um jagunço letrado, altamente estilizado. Com isso, entra mais uma diferença: sem dúvida, Euclides é um mestre da língua, mas Guimarães Rosa vai um passo além e reinventa o português do Brasil, o que interessa também para a literatura universal.
Como é o sertão de cada um?
O sertão de Euclides situa-se no norte do estado da Bahia, entre Monte Santo e Canudos. Desde fins do século 18, Monte Santo foi um lugar de peregrinação, mas com a Guerra de Canudos, em 1897, transformou-se no quartel-general do Exército. O líder religioso Antônio Conselheiro havia criado em Canudos uma comunidade alternativa contra a então recém-constituída República – o governo brasileiro não tolerou esse desafio e resolveu intervir com a força militar. Quando fui a Canudos, em 2002, assisti a um desfile comemorativo do centenário da publicação de Os Sertões, e o que mais me impressionou foi a projeção das palavras de um morador de lá, que rememorou a guerra com este comentário: “Só faltou uma conversa”.
E o que é o romance Grande Sertão: Veredas? É uma longa conversa do início até o fim, entre o sertanejo Riobaldo e um doutor da cidade. Essa construção artístico-literária implica um projeto linguístico, cultural e político: aproximar o Brasil dos iletrados com os representantes do Brasil da norma culta. Se estudarmos detalhadamente o Grande Sertão: Veredas, veremos que aparecem determinadas falas que lembram trechos de grandes estudos sobre o Brasil, como as obras de Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda.
Passando para a esfera cosmopolita, qual seria a diferença entre a urbanidade carioca de Machado de Assis e a paulistana de Mário de Andrade?
Machado de Assis retrata os costumes da sociedade brasileira nos anos finais do Império: sobretudo o desejo de fazer fortuna e de ascensão social, e os meios utilizados para isso: um jogo de máscaras, uma onipresente dissimulação e uma moral do vale-tudo. Enquanto Machado mostra detalhadamente como funciona o tecido social na periferia do capitalismo, na capital de uma ex-colônia que se tornou um país independente, Mário de Andrade, no romance Macunaíma, procura construir um retrato do Brasil a partir da perspectiva de São Paulo, por meio de uma composição topográfica surreal. Ele liga a metrópole ascendente, marcada por uma imigração cosmopolita e uma industrialização em progresso, com a selva amazônica, com as margens do rio Uraricoera, lá em Roraima. O personagem Macunaíma é uma figura mítica dos povos indígenas arecuna e taulipang, cujas lendas foram colhidas entre 1911 e 1913 naquela região pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg. Mário de Andrade inteirou-se desse material e o integrou na composição de Macunaíma.
Quando Mário de Andrade faz Pauliceia Desvairada (1922) procura expor esse traço mais urbano de São Paulo. Por outro lado, em Macunaíma (1928), ele faz um mergulho na coisa mais arcaica, no mítico, buscando por outro lado o caráter do país.
De fato, Mário de Andrade procurou redefinir a identidade brasileira, de acordo com as mudanças históricas ocorridas. Ele era habitante de uma cidade cuja população aumentou vertiginosamente: de 22.000 em 1822 para mais de um milhão de habitantes em 1922. A partir dos anos 1920, a Pauliceia tornou-se uma vibrante metrópole cosmopolita. Eu cheguei em 1966, e nunca me senti aqui [em São Paulo] como um estrangeiro, de tão abertos que são os habitantes da nossa cidade. Sou grato por isso e acho que há muitas cidades no mundo que têm tudo a aprender com São Paulo nesse sentido. Além do mergulho no cosmopolitismo e da abertura para todos os povos e todas as línguas – o que ele tem em comum com Guimarães Rosa –, Mário se interessa pelos habitantes primeiros deste país. Aqui acabou ficando apenas o rastro deles, em nomes como Anhangabaú, que é “o rio do malefício, do feitiço, do diabo”. Mário de Andrade, então, vai ao encontro dos indígenas na Amazônia, como fizeram os etnólogos, entre eles Karl von den Steinen, Koch-Grünberg e Curt Nimuendajú, que foram se livrar da visão eurocêntrica. Para entendermos a humanidade, precisamos entender seus povos e sua cultura, e podemos aprender isso com os índios, escutando os seus narradores, estudando os seus artefatos e a sua cultura cotidiana. Nesse sentido, Mário de Andrade foi um intelectual e artista brasileiro exemplar, pois não se contentou em ficar aqui em São Paulo ou no Sudeste, mas pesquisou a cultura deste país como um todo, incluindo o Nordeste e a Amazônia, como se vê no seu relato O Turista Aprendiz (Itatiaia Editora, 1976, editado por Telê Ancona Lopez).
Você faz uma aproximação curiosa de Berlim – sua cidade – com Belém do Pará. Como se dá essa relação?
Faço essa aproximação Berlim-Belém no artigo “Os tios do tio Iauaretê”, num livro de homenagem a Benedito Nunes (O Amigo Bené, Fazedor de Rumos, 2011). É um texto jocoso, no qual relembro a minha visita a esse famoso estudioso de Guimarães Rosa, em Belém, em julho de 1967. Inesperadamente, ouvimos naquela noite, perto da casa do autor de O Dorso do Tigre (Editora 34, 1976), os urros de um leão. Como em Berlim, em julho de 1984, quando fui visitar os meus pais e se ouviram, num parque da cidade, os urros de um leão que tinha escapado de um circo. Escrevi esse texto, para contestar ludicamente a tese de Hegel de que na América do Sul existem apenas felinos menores...
Foi um conceito utilizado por Benedito Nunes, o de “ícone urbano”, que me ajudou a compreender melhor a cidade de Belém, que se tornou tema das minhas pesquisas nestes últimos anos. Para isso, usei simultaneamente os métodos de um fisiognomonista universal das metrópoles, que é Walter Benjamin, e os romances de um escritor da Amazônia: Dalcídio Jurandir (1909-1979). Seguindo o método de observação que Benjamin usou para Paris, me coloquei em Belém no papel de um flâneur para conhecer a cidade. Fui visitar os ícones urbanos, fotografar, ler e anotar os romances e conviver com as pessoas de lá.
O que seria o flâneur hoje?
O flâneur é uma figura típica que surgiu na metrópole Paris do século 19, mas ele pode se desenvolver em outras grandes cidades e ressurgir também nos dias atuais. Naquele tempo, era um burguês que tinha recursos suficientes para viver uma vida de ócio, o que era um privilégio dos nobres. Com isso, o flâneur acabou se contrapondo ao burguês típico, que vive em função dos negócios, ou seja, da negação do ócio. O flanêur, ao contrário, cultiva o ócio: ele senta num café e observa as pessoas em sua volta; ele pode até transformar isso numa profissão e escrever artigos, crônicas, romances. Ora, com a passagem do tempo, o dinheiro aplicado pelo flâneur – que não é um investidor profissional – foi diminuindo e foi isso que levou historicamente ao seu desaparecimento. Apesar disso, a figura do flâneur, que representa os nossos desejos de ócio e de liberdade, pode ressurgir nas nossas férias ou também nas nossas pesquisas. Quando a infraestrutura material está garantida, ainda que por tempo limitado, podemos brincar de flâneurs.
Você tem bastante conhecimento sobre a literatura do Norte. O que caracteriza essa produção? Tem algum ponto que une principalmente essa geração do Bernardino Ribeiro e do Dalcídio Jurandir?
O meu projeto geral é escrever uma topografia cultural do Brasil: da metrópole/megacidade através do sertão até a Amazônia. Conheci a obra de Dalcídio Jurandir em 1998, através da dissertação de mestrado “Aquonarrativa”, de Paulo Nunes [hoje professor do Centro de Ciências Humanas e Educação da Universidade da Amazônia (Unama), Belém, PA]. Após eu ter publicado, em 1994, o meu livro Fisiognomia da Metrópole e, em 2004, o grandesertão.br – além de ter editado em 2006 as Passagens de Benjamin – eu podia começar a trabalhar na terceira parte do meu projeto: a Amazônia. Optei então por estudar a obra de um autor que mergulha no cotidiano da população amazônica: de Belém, do Arquipélago do Marajó e do Baixo Amazonas. Dalcídio Jurandir, que escreveu um ciclo romanesco em dez volumes, um roman-fleuve, me interessa porque observa e registra como as pessoas falam.
Assim como Guimarães Rosa dá voz aos sertanejos, Dalcídio Jurandir dá voz aos habitantes da Amazônia. De 2009 para cá, estou fazendo adaptações teatrais dos cinco romances de Dalcídio que se passam na periferia de Belém, com um grupo de professores e alunos de uma escola na periferia. Como iniciação à periferia montamos o romance Passagem dos Inocentes (Martins, 1963), em seguida a dupla de romances Primeira Manhã (Martins, 1968) e Ponte do Galo (Martins/MEC, 1971), no ano passado, Os Habitantes (Artenova, 1976), e agora começamos com Chão dos Lobos (Record, 1976). Durante esse trabalho verifiquei que, para esses habitantes da periferia de Belém, os romances que Dalcídio publicou (de 1941 até 1978) continuam atuais. Eles veem retratadas ali as suas condições de vida.
Qual é a característica dessa topografia da literatura do Norte brasileiro?
Nos relatos dos viajantes há um interesse predominante pela paisagem da Amazônia. Com Inglês de Souza (1853-¿-1918) e José Veríssimo (1857-1916), o foco da atenção se concentra nos habitantes da região. É dentro dessa tradição que se situa também a obra de Dalcídio Jurandir. Paralelamente houve uma grande mudança demográfica. Durante o século 19 e parte do século 20, a Amazônia era um vazio demográfico. Isso mudou. Hoje, a Amazônia brasileira tem 25 milhões de habitantes, e não são mais aqueles “seres exóticos” que os viajantes europeus enxergavam nos índios. Quando refiz em 2007 o trajeto da primeira travessia feita pelos europeus na Amazônia, li o relato de Gaspar de Carvajal, o cronista da expedição de Francisco de Orellana (entre 1541 e 1542). Ele fala de cidades às margens do Amazonas com até 12 quilômetros de extensão. Isso nos leva a concluir que o vazio demográfico do período colonial foi uma consequência das guerras de extermínio contra a população indígena. Apenas nos dias atuais começa a surgir uma literatura escrita por eles, ao lado dos textos tradicionais escritos sobre eles.
O Benedito Nunes pode ser classificado como um intelectual do Norte brasileiro? Ele preferiu não sair de lá: viveu, estudou e se tornou célebre em Belém do Pará. O que o diferencia de um intelectual do Sul?
Permita-me formular de uma forma um pouco diferente: em que medida Benedito Nunes representa um exemplo para os intelectuais do Sul? Sobretudo pelo grau da abrangência e da qualidade do seu saber. Benedito Nunes era e continua sendo por meio de seus escritos um intelectual que conhece tão bem o mundo da literatura quanto o da filosofia e o das ciências humanas em geral. Em nossa época de especialização e estreitamento de horizontes, isso é algo muito desejável, e uma porção de intelectuais do Sul não tem essa visão. Além disso, Benedito ficou fiel a sua região, escreveu sobre ela: ensaios sobre Belém, sobre a Amazônia e sobre Dalcídio Jurandir. Os seus escritos sobre Dalcídio representam uma contribuição muito significativa.
É possível detectar uma particularidade do seu pensamento por morar fora do eixo Rio-São Paulo?
Além da atenção que ele dá à região amazônica, ele tem um traço de caráter muito desejável, mas bastante raro no meio acadêmico: a modéstia. Há também um distanciamento crítico e uma abertura deveras internacional. Benedito Nunes conseguiu realizar uma reflexão que está perfeitamente à altura do que se produz nos grandes centros do Brasil. Por tudo isso, ele continua sendo um crítico exemplar.
A literatura contemporânea está cada vez mais abrangente, sendo produzida em um ritmo bastante acelerado. Há algo que tenha lhe chamado a atenção nessa nova “safra”?
Com relação à literatura brasileira atual, não tenho a visão abrangente que eu gostaria de ter, mas pelo menos conheço alguns autores da Amazônia, como Márcio Souza, Milton Hatoum e Vicente Cecim, e autores que escreveram sobre a Alemanha, como Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro e Zé do Rock. Eles são comentados num livro que estou organizando, juntamente com Eckhard Kupfer, diretor do Instituto Martius-Staden: Cinco séculos de relações brasileiras e alemãs. Convidamos também alguns ensaístas, como Alberto Dines, José Miguel Wisnik e Jorge de Almeida, que escrevem, respectivamente, sobre Stefan Zweig (autor de Brasil, um País do Futuro, Editora Guanabara, 1941), sobre futebol e sobre o pensamento alemão no Brasil. O livro será lançado em agosto deste ano, pela Editora Brasileira.