Postado em 30/07/2013
Sabe-se o quanto a sensibilização para os livros na infância é importante na formação de adultos leitores. Livros ilustrados, ficcionais, não ficcionais... As possibilidades são múltiplas. A dica é explorar títulos diversos e estabelecer quanto antes uma relação afetiva entre a criança e o livro. A coordenadora pedagógica da Comunidade Educativa Cedac e do Laboratório de Educação Sandra M. Murakami Medrano e a formadora de professores na ¿Comunidade Paraisópolis Cristiane Tavares analisam o assunto.
Livro ilustrado não ficcional uma outra experiência leitora
por Sandra M. Murakami Medrano
Ao pensarmos em livros para crianças, normalmente nos vêm à lembrança livros ficcionais, ou os chamados literários. Porém, ao nos determos um pouco mais sobre os livros disponíveis, verificamos que não somente os ficcionais encontram-se no rol de ótimos livros para encantar os pequenos e possibilitar a eles a entrada na leitura. Que outros livros são esses? Por ora os denominaremos não ficcionais, para distingui-los dos primeiros. O que nos interessa, aqui, é propor uma reflexão sobre que livros não ficcionais seriam boas portas de entrada para leitura das crianças e quais contribuições esses livros podem trazer para a formação dos leitores iniciantes.
Apesar dessa distinção entre ficcionais e não ficcionais, é preciso considerar que a fronteira entre esses dois modos de conceber os livros é bastante fluida e movediça. Para saber de que livros estamos falando, vamos nos valer da ideia de continuum para compreender que estes podem se posicionar ao longo de um eixo em que, de um lado identificamos os livros informativos que organizam seu conteúdo como verbetes enciclopédicos, como, por exemplo, o livro Procura-se! Galeria de animais ameaçados de extinção (Vários autores/Mario Bag, Companhia das Letrinhas/Ciência Hoje das Crianças, 2007), em que os dados científicos são apresentados de maneira criteriosa ao longo do texto, acompanhado de imagens que identificam visualmente o animal. Do lado oposto desse eixo contínuo, poderíamos encontrar o livro Princesas esquecidas ou desconhecidas (Salamandra, 2008), de Philippe Lechermeier e Rébecca Dautremer, que parte de um conteúdo ficcional, mas o apresenta utilizando o formato enciclopédico, com definições, exemplos, esquemas, índice temático e alfabético, típico das enciclopédias mais renomadas.
Ao longo desse eixo poderiam estar diferentes livros que, ora mais estritamente informativos, ora misturando aspectos ficcionais, mas se valendo das características desses outros, formam um livro distinto das ficções propriamente ditas, mesclando-se com elas, no entanto, em um dos extremos. Podemos também pensar em outro continuum que parte de um extremo definido pelos livros informativos sem enredo narrativo, como, por exemplo, os livros como A joaninha (Melhoramentos, 1991), da coleção Minhas primeiras descobertas, em que os dados sobre como é o inseto, sua constituição, alimentação etc. são apresentados por meio de imagens que se compõem a partir da sobreposição de páginas (uma opaca e outra transparente) e informações científicas ao longo do livro.
No outro extremo desse contínuo poderíamos encontrar os livros de Babette Cole, como Mamãe nunca me contou (Ática, 2003), livro que – como indica Ana Garralón – “combina ¿um texto mais ou menos ficcional, isto é, pessoal, com uma estrutura interna ordenada e uma informação que, apesar do tom às vezes informal, não abre mão do rigor”. Nesse segundo continuum – que vai do livro informativo sem enredo narrativo ao informativo com enredo narrativo –, poderíamos localizar na sequência vários outros títulos partindo de um ponto a outro, como o livro Adivinhem onde vivem (Brinque Book, 2012), de Liesbet Slegers; Lá em casa somos (Cosac Naify, 2012), de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso; Minha casa azul (SM, 2009), de Alain Serres e Edmeé Cannard; Eu cresci aqui (Pequena Zahar, 2012), de Anne Crausaz; os livros de Peter Sís: O muro (Companhia das Letrinhas, 2012), O mensageiro das estrelas (Ática, 1999), A árvore da vida (Ática, 2004); alguns livros que contam a vida de personagens conhecidos: Frida (Cosac Naify, 2004), de Jonah Winter e Ana Juan; O menino que mordeu Picasso (Cosac Naify, 2011), de Antony Penrose; Jemmy Button (Pequena Zahar, 2012), de Jennifer Uman Valério Vidali e Alix Barzelay; Lineia no Jardim de Monet (Salamandra, 1992), de Christina Bjõrk e Lena Anderson; Diferente como Channel (Cosac Naify, 2009), de Elizabeth Matthews; Um Outro País para Azzi (Pulo do Gato, 2012), de Sarah Garland; É um livro (Companhia das Letrinhas, 2009), de Lane Smith; e Para que Serve um Livro? (Pulo do Gato, 2011), de Chloé Legeay.
Essa pequena seleção não esgota os títulos que poderiam compor esse contínuo, mas tem a intenção de colaborar na compreensão da ideia de um universo de livros que são concebidos com uma diversidade de aspectos que se movem de uma ponta a outra dependendo das características aqui destacadas. Isso nos mostra que, tanto no que se refere ao extremo de um livro com texto ficcional e formato enciclopédico como a um livro que parte de uma narrativa com toque ficcional, mas com conteúdo científico ou histórico, essa divisão entre ficção e não ficção é bastante tênue. A análise dos continuuns permite, ainda, visualizar um conjunto de livros com algumas qualidades distintivas ao longo de sua distribuição. Mas qual a contribuição desses livros não ficcionais para a formação de leitores e que experiência de leitura possibilitam?
Louise M. Rosenblatt, em La Literatura como Exploración (Fondo de Cultura Económica, 2002), traz o conceito transacional da leitura, em que propõe a superação da visão dualista de pensar o texto e o leitor na qual ou o leitor atua sobre o texto (leitor interpreta o texto) ou o texto atua sobre o leitor (leitor responde ao texto), para uma leitura transacional, em que “o leitor infunde significados intelectuais e emocionais à configuração de símbolos verbais e esses símbolos canalizam pensamentos e sentimentos”.
Com essa forma de compreender a leitura, podemos considerar que o sentido não está só no texto ou só no leitor, mas na relação entre ambos, numa contribuição contínua para a construção de significados. Assim, não é o texto em si que define como pode ser lido, mas é na relação entre as intenções e conhecimentos do leitor e o conteúdo do texto que se dá a leitura, a transação.
Essa leitura pode, segundo Rosenblatt, ser mais estética ou mais eferente. Abordando sinteticamente aqui, a postura estética na leitura estaria mais relacionada aos aspectos afetivos e a postura eferente, centrada principalmente em selecionar e abstrair analiticamente as informações. Pensando na formação de leitores, essas colocações nos remetem à necessidade de proporcionar às crianças, desde muito cedo, condições para que possam desenvolver a capacidade de adotar ambas as posturas para serem leitores autônomos e críticos ao lidarem com a diversidade de leituras que enfrentarão vida afora.
Uma das maneiras de possibilitar às crianças espaço para essa experiência leitora é oferecendo livros que, segundo Ana Garralón, “são excelentes para criar pontes entre essas duas formas de ler, estética e eferente, auxiliando os leitores a indagar o que significa uma leitura prática enquanto lhes oferecemos textos que lhes brindam leituras estéticas sugestivas”. Exemplos desse tipo de livro são alguns dentre os chamados livros álbum (livro ilustrado/álbum ilustrado/picturebook – denominação em construção no Brasil), como os já citados livros de Peter Sís ou o também citado Minha Casa Azul. Esses livros trazem informações históricas ou científicas, por meio da amálgama texto-imagem-suporte, típico do livro álbum, que possibilita ao leitor ora assumir uma postura mais eferente ao analisar as informações, ora mais estética ao se envolver com as imagens, as ideias e os sentimentos proporcionados pelo livro.
A formação do leitor pode, dessa forma, se dar também por meio de um livro não ficcional, a partir de uma experiência leitora distinta, uma leitura que abre para novas questões, instiga novos conhecimentos, desafia intelectualmente o leitor, de forma a colocá-lo numa posição ativa de construção de conhecimentos. Garralón, Ana. “Ficção e informação: tendências nos livros informativos”. Revista Emília: revistaemilia.com.br/mostra.php?id=126
“o amálgama texto-imagem-suporte, típico do livro álbum, (...) possibilita ao leitor ora assumir uma postura mais eferente ao analisar as informações, ora mais estética”
Sandra M. Murakami Medrano é pedagoga e mestre em didática pela Universidade de São Paulo (USP), coordenadora pedagógica da Comunidade Educativa Cedac e do Laboratório de Educação e colaboradora da revista Emília
Livro ilustrado: um “concerto polifônico” para o deleite do leitor
por Cristiane Tavares
A expressão “concerto polifônico” foi usada pelo autor e ilustrador Renato Moriconi para definir o livro ilustrado. Moriconi, em parceria com o escritor Ilan Brenman, recebeu os prêmios “melhor livro-imagem” em 2011, com Telefone sem Fio, Companhia das Letrinhas, e “melhor livro para a criança” em 2012, com O Alvo, Editora Ática, pela FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil). Segundo ele, “há no livro ilustrado três línguas diferentes – a palavra, a imagem e o projeto gráfico ou arquitetura do livro – que, se bem usados, fazem dele um belo concerto polifônico, com sons e silêncios próprios”. Exemplo disso pode ser observado no próprio livro O Alvo, selecionado para integrar o Catálogo White Reavens 2012 de uma das mais importantes bibliotecas especializadas em literatura infantil e juvenil do mundo, a Jugendbibliothek de Munique, na Alemanha.
Em O Alvo, de imediato o leitor se depara com uma flecha que atravessa a capa vazada e o convida a seguir o tracejado livro adentro. O suporte é criativamente atingido como alvo que se expande também nas guardas, ao abrirmos o livro. Enquanto o texto verbal apresenta uma narrativa de origem judaica recontada sem grandes alterações, com a linearidade clássica do enredo comum às narrativas de tradição oral, a ilustração brinca com a busca certeira por um alvo, apresentando-o a cada página em um lugar diferente e abrindo para a plurissignificação: variedade de pontos de vista, importância da perspectiva, flexibilidade necessária para encontrar respostas a perguntas essenciais, dentre outras.
Partindo da metáfora do concerto proposta por Moriconi, podemos entender como atributo principal do livro ilustrado a integração de diferentes vozes que compõem um todo indissociável, produtor de sentido. Diferente do que ocorre nos chamados livros com ilustração, nos livros ilustrados (picturebook) também conhecidos como livros-álbum, a imagem não é mero complemento do texto, o suporte não é simples receptáculo e o projeto gráfico tem forma e conteúdo. Todos esses aspectos conversam simultaneamente com o leitor, convocando para uma “desautomatização do olhar” (Chklovski, 1976). Ler, reler, ver e voltar a ver são movimentos comuns diante de um livro ilustrado: “O livro álbum possibilita uma atenção ao objeto livro em sua plenitude – os formatos, as cores, as informações omitidas e complementares no texto e na ilustração. Ao ler Quero meu chapéu de volta, de Jon Klassen, WMF Martins Fontes, para crianças pequenas, por exemplo, já é rotineiro o voltar das páginas para o início para melhor compreender a trama”, relata Magno Rodrigues Faria, pedagogo, educador de biblioteca e contador de histórias no Instituto Acaia, em São Paulo.
Tanto o estranhamento provocado pelo desafio de deslocar o olhar linear rotineiro diante do objeto livro como as constantes releituras que muitas vezes esse tipo de livro requer acionam uma atividade leitora pautada na interação não apenas entre o leitor e as diferentes linguagens, mas também entre os leitores. Depois de ler um bom livro ilustrado, é preciso falar sobre o que foi lido, visto, percebido, provocado. Comentar a leitura para melhor se apropriar dela. A polifonia, portanto, caracteriza tanto a composição do livro ilustrado como as experiências leitoras que proporciona: o sentido se constrói, interna e externamente ao objeto, mediante essa multiplicidade de vozes que o circundam.
Como leitora, apreciadora e “colecionadora” de livros infantis, é assim que Ana Claudia Rocha, diretora do Centro de Estudos e Projetos em Educação Movimenta, define sua relação com o livro ilustrado: “É muito comum encontrar-me com o encantamento das pessoas diante desses livros múltiplos, observando como o jogo entre palavra e imagem ganha a cena da comunicação mais fluida e ágil, compartilhada em outro canal, que não o da densidade singular da leitura solitária. O contato com esses livros quando estamos em situação coletiva provoca um verdadeiro “frisson”, tamanha a reverberação!”.
Se falar sobre o livro ilustrado após sua leitura é quase uma condição para a construção do sentido, outra característica emerge do contato do leitor com o objeto: sua natureza dialógica. Como já vimos, as linguagens verbal e visual estão em necessário diálogo com o suporte. Do mesmo modo, as relações que o leitor estabelece durante a leitura se amplificam e ressignificam à medida que uma conversa sobre o livro acontece. O aspecto dialógico se estabelece, sobretudo, no espaço entre o dito e o não dito, de onde brota a arte: “Vejo o livro-álbum como um objeto artístico a partir do qual se constroem vários significados, se realizam conexões, relações intertextuais e se estabelecem certas rupturas com as técnicas narrativas habituais. Nesse tipo de livro as ilustrações sugerem mais do que dizem, insinuam mais do que revelam e reinam a sutileza, a ironia...”. É assim que Fernanda Glaessel Ramalho, pedagoga que trabalha com formação de professores, define o livro ilustrado.
Na escola, à leitura compartilhada de um livro ilustrado, mediada pelo professor, quase sempre se segue uma conversa apreciativa durante a qual a escuta da percepção do outro repercute na experiência leitora de cada um. Até mesmo a leitura de uma nova versão para um dos mais conhecidos contos de fadas pode suscitar leituras surpreendentes, quando apresentada sob a forma de livro ilustrado. É o caso de Uma Chapeuzinho Vermelho, de Marjolaine Leray, publicado em 2012 pela Companhia das Letrinhas. No livro, os papéis do lobo mau e da Chapeuzinho subvertem-se. A ilustração funciona como contraponto irônico ao apresentar, em traços simples, a lápis, nas cores preto e vermelho, uma Chapeuzinho frágil e ainda menor que o diminutivo que já a acompanha, contracenando com um lobo faminto e viril. Fragilidade por trás da qual se esconde a astúcia feminina responsável pela surpresa revelada ao leitor apenas nas últimas páginas.
Como objetos artísticos, os livros ilustrados podem converter-se, ainda, em “campo de experimentação para autores e leitores”. É o que pensa a premiada autora e ilustradora mineira Angela Lago: “... somamos o texto e a imagem ao próprio suporte que é o livro. Podemos usar o ângulo da página na construção dos desenhos, ou a passagem das folhas como um corte em que se impõe a narrativa. De alguma maneira, autores e leitores do livro-álbum nos qualificamos para ler também os suportes com as suas particularidades. Entender o livro como mídia nos faz aprofundar a compreensão dos diferentes diálogos possíveis entre as várias linguagens”.
Exemplos como os citados por Angela Lago estão na própria origem do livro ilustrado contemporâneo. Autores, ilustradores e editores audaciosos romperam com estereótipos predominantes sobretudo nos livros destinados ao público infantil e apostaram no deleite estético de um leitor sem idades. Caso do clássico Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak, publicado originalmente em 1963 e editado no Brasil em 2009, pela CosacNaify, mesmo ano em que foi adaptado para o cinema por Spike Jonze. Ao trazer para as páginas de um livro o universo do inconsciente infantil em toda a sua complexidade, condensando-o em uma breve e intensa aventura narrada verbal e visualmente, Sendak mostrou que é vasto e ilimitado o campo da experimentação artística.
“As relações que o leitor estabelece durante a leitura se amplificam e ressignificam à medida que uma conversa sobre o livro acontece”
Cristiane Tavares é mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), trabalha com formação de professores na Comunidade Paraisópolis e colabora para a revista Emília