Postado em 19/12/2013
Por: CARLOS JULIANO BARROS
Filha de um profissional que sempre trabalhou no ramo editorial, Karine Pansa cresceu rodeada de livros e, já aos 16 anos de idade, começou a trilhar os passos do pai. Quando ainda era adolescente, participou da sua primeira Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, considerada a Meca do mercado editorial mundial. Hoje, aos 36 anos, casada e mãe de dois filhos, a administradora de empresas formada pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) divide seu tempo entre a Girassol Brasil, sua editora própria de livros infantis, e a Câmara Brasileira do Livro (CBL), entidade que preside pela segunda vez consecutiva.
Nesta entrevista concedida a Problemas Brasileiros, Karine Pansa traça um panorama do mercado editorial brasileiro e discorre sobre os desafios de fomentar o hábito da leitura e de ampliar o acesso aos livros no país. “Cerca de 75% da população nunca visitou uma biblioteca. Esse é um número assustador”, reflete. Também garante que as editoras nacionais estão prontas para mudar de patamar, tornando-se cada vez mais vendedoras de direitos autorais, e não apenas compradoras.
Admiradora da música de Roberto Carlos, Karine afirma que o Projeto de Lei que restringe a publicação de biografias não autorizadas, e que levou o mais popular cantor do país para as manchetes dos principais jornais por defender a iniciativa, “acaba sendo, de alguma forma, censura”. Mas ela faz uma ressalva: “De nada adianta agredir o biografado. Escrevam, mas escrevam com responsabilidade”, recomenda.
Problemas Brasileiros – Em outubro de 2013, a senhora esteve presente na Feira do Livro de Frankfurt, a mais importante do mundo para o mercado editorial, evento em que o Brasil foi o grande homenageado. Que balanço a senhora faz do evento?
Karine Pansa – Foi uma grande abertura para o ingresso do livro brasileiro no mercado internacional. Apesar de já termos participado de outras feiras, em que o Brasil também era homenageado – na história recente, a primeira de que participamos foi a Feira do Livro de Bogotá (Colômbia), em 2012 –, a Feira de Frankfurt tem representatividade no mundo editorial muito mais significativa. Por isso foi um pontapé inicial, e, a partir desse momento, as editoras brasileiras certamente começarão a ser vistas como uma possibilidade de compra e venda de direitos autorais. Historicamente, somos um país comprador de direitos autorais. Já sabemos como se negocia, como se participa desses leilões. Agora, queremos mudar essa situação, transformando o Brasil num país vendedor de direitos autorais. Esse é o nosso grande objetivo.
PB – De que maneira a Câmara Brasileira do Livro (CBL), entidade que a senhora preside, pode contribuir para a “internacionalização” das obras nacionais?
Karine – O Brasil é um país que também tem conteúdo. Não é um país que apenas compra conteúdo. Essa foi a principal diferença do nosso posicionamento na Feira de Frankfurt. Ir até lá não só para comprar, mas também para vender. E foi o que tratamos de fazer ao longo do último ano na preparação para essa grande exposição. Fizemos uma grande divulgação aos editores brasileiros de todos os níveis, desde os grandes até os pequenos – isso é o que nós chamamos de bibliodiversidade. Dissemos que “estávamos indo para Frankfurt e gostaríamos de mostrar o nosso conteúdo. Alguém se interessa em ir?”. Então, uma série de editores que nunca tinham participado revelou interesse em vender seu produto. E através do projeto Brazilian Publisher, auxiliamos os editores para que eles fossem preparados para participar dessa feira.
PB – Que tipo de conteúdo produzido no Brasil tem mais apelo internacional? Ciência, literatura, religião?
Karine – Essa é a parte boa do mercado brasileiro. Temos possibilidade de produção em todas as áreas. Tanto na área de literatura, quanto na de conteúdo técnico, científico, profissionalizante e religioso. Aí, você me pergunta: qual o segmento que mais vende conteúdo brasileiro? Atualmente, é o infantojuvenil. É nessa linha que temos uma vazão maior na área de direitos autorais. Mas, no campo de livros universitários, que chamamos de técnicos e científicos, o Brasil também é muito respeitado internacionalmente.
PB – E no mercado brasileiro? Quais são os tipos de livros mais produzidos e vendidos?
Karine – Nós tivemos uma produção importante de novos livros em 2012. O crescimento foi de 1,9% em relação ao ano anterior. Produzimos quase 21 mil novos títulos. O setor de livros científicos, técnicos e profissionais foi o que teve o maior número de exemplares vendidos: o crescimento foi da ordem de 1,2% no mercado global. São os livros mais de nicho, vendidos em instituições de ensino. Agora, em termos de canais de comercialização, as livrarias entraram como o maior canal de vendas em 2012. A participação foi de quase 48%. Sempre lembrando que esses números excluem as vendas para o governo – esse é o mercado em que mais se vendem livros no Brasil. Vale dizer que o Programa Nacional do Livro Didático [PNLD] e o Programa Nacional Biblioteca da Escola [PNBE] estão entre os maiores do mundo em distribuição de livros para a rede pública de ensino básico. Em 2013, cerca de 140 milhões de obras chegaram às mãos de 42 milhões de estudantes. Somados, os dois programas custaram ao governo federal aproximadamente R$ 1,1 bilhão.
PB – O que não é vendido nas livrarias é comercializado em quais outros lugares?
Karine – Em supermercados, em lojas não especializadas e em vendas por catálogo. Também temos distribuidores que fazem vendas em lojas de estrada. Isso acaba pulverizando o mercado, que não fica apenas nas livrarias. Por exemplo, a comercialização pelo sistema porta a porta, em que entram os catálogos, ocupam a terceira posição entre os canais de venda. Hoje, 8% das nossas vendas são feitas por catálogo.
PB – Isso lembra o antigo mercado de enciclopédias, vendidas de porta em porta.
Karine – Não é tão volumoso como era o mercado de enciclopédias, que eram compras financiadas, de muitos volumes.
PB – Como funcionam os negócios entre editoras e livrarias?
Karine – Em boa parte das livrarias, os negócios são feitos através de um modelo chamado de consignação. A livraria tem o produto dentro da loja, vende e informa para o editor ou para o distribuidor, e só depois faz o pagamento. Então, o pagamento é concomitante ao recebimento do consumidor. Não existe um risco gigantesco nessa história. Claro que existem livrarias que compram o livro para vender depois. Mas a grande maioria é consignado. Foi um modelo de negócios estabelecido pelos editores.
PB – Existem alguns mitos sobre o mercado brasileiro de livros. Um deles é de que só em Buenos Aires, capital da Argentina, haveria mais livrarias do que em todo o Brasil. Isso é verdade?
Karine – Eu não sei dizer se existem mais livrarias em Buenos Aires do que em todo o Brasil [risos], mas aqui existem cerca de 3.500 livrarias e a maioria, cerca de 60%, está concentrada no sudeste. Então, posso afirmar, há um problema de distribuição geográfica das livrarias no Brasil, com certeza. Outra grande concentração fica no nordeste, com 15% das livrarias, e na região sul, com 16%. No norte e no centro-oeste, esses números caem para 2% e 4%, respectivamente.
PB – Neste ano, comemoramos o aniversário de dez anos da Lei 10.753, de 30 de outubro de 2003, que instituiu a Política Nacional do Livro (PNL), um conjunto de diretrizes para incentivar o hábito da leitura e ampliar o acesso aos livros. Conseguimos criar um marco legal que melhore de fato esse acesso?
Karine – Vou ser bem sincera: a Política Nacional do Livro acaba se perdendo no meio de outras políticas e outros interesses. Eu acho que existe um caminho muito grande a ser percorrido até que ela venha a obter resultados palpáveis. Infelizmente, essa é uma crítica dura à nossa realidade. Quando observamos, por exemplo, a última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2011), feita para mostrar os resultados da Política Nacional do Livro, é possível perceber que ela talvez não esteja sendo utilizada da melhor maneira possível e precisa de alguns ajustes. Lançada pela Câmara Brasileira do Livro no ano 2000 em parceria com outras três entidades [Instituto Pró-Livro, Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares – Abrelivros – e Sindicato Nacional dos Editores de Livros – SNEL], Retratos da Leitura no Brasil tem por objetivo avaliar o comportamento dos leitores brasileiros.
PB – Poderia explicar melhor?
Karine – Segundo a pesquisa, 75% da população brasileira nunca visitou uma biblioteca. Esse é um número assustador e que diz alguma coisa em relação à Política Nacional do Livro. Tem alguma coisa errada no meio do caminho para a população não colocar os pés nas bibliotecas.
PB – Então, a ideia de que o brasileiro lê pouco é, de fato, realidade?
Karine – Em números, o brasileiro lê quatro livros por ano. Em linhas gerais, o leitor tem a percepção de que o livro é importante para o seu crescimento intelectual. Isso é um aspecto que pode definir mudanças para o futuro da leitura no Brasil. Vejo isso como um aspecto muito positivo. Um pai pode falar “não” para o filho que deseja um brinquedo. Mas ele não vai falar “não” se a criança pedir um livro.
PB – Ou seja, os brasileiros podem até não ler tanto, mas valorizam a leitura?
Karine – Exatamente.
PB – As editoras nacionais contam com a isenção de diversos tributos. Desde 2004, por exemplo, não precisam pagar PIS/Cofins. Mesmo assim, o senso comum é de que os livros no Brasil ainda são caros. Essa avaliação procede?
Karine – Não. Eu diria que isso virou uma “lenda urbana”. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, o preço do livro entra em oitavo lugar como fator que inibe a leitura. Então, nós perguntamos para a população: por que você não lê? As pessoas respondem: “porque não tenho tempo”, “porque não tenho vontade”. E “porque o livro é caro” é a resposta que aparece em oitavo lugar. É importante ponderar isso: a população não tem a percepção de que o livro é caro. Ela não compra porque não tem interesse pela leitura. E, desde 2004, quando houve a desoneração de PIS/Cofins (para as editoras), nós registramos uma queda significativa dos preços vendidos para as livrarias. Só recentemente começamos a notar uma recuperação das margens. Nós acumulamos uma queda de 43% no preço, mas isso não representa necessariamente que tenha ocorrido uma redução no preço do livro. Significa que os editores começaram a encontrar no mercado possibilidades de edições mais baratas, livros com papel e encadernação mais acessíveis. Os pocket books (edições de bolso) começaram a ganhar espaços.
PB – Mas como os livros poderiam ser ainda mais baratos? Através de mais incentivos e desoneração de tributos?
Karine – Não por desoneração. Nós temos vontade de que isso (a queda dos preços) aconteça, mas pelo aumento da produção e de leitores.
PB – Então, é uma questão de mercado, de oferta e demanda?
Karine – É isso mesmo.
PB – Nos últimos anos, tem aumentado a venda de tablets e livros digitais. Esse segmento já é uma realidade no mercado editorial brasileiro?
Karine – A venda de livros digitais representa 0,01% do mercado total. Então, se nós vendemos quase R$ 5 bilhões, a venda de livros digitais representa R$ 500 mil. Realmente, é um valor mínimo perto do que pode significar no futuro.
PB – Isso é curioso porque o brasileiro é tido como um povo muito ligado a tecnologias digitais.
Karine – Esse é um mercado que tem muito para crescer, sem dúvida. Mas, primeiro, é preciso despertar o interesse da população. Os editores já se mostram preparados para oferecer essa nova opção, mas a demanda ainda não está aquecida.
PB – Já há propostas em tramitação no Congresso Nacional para estender aos livros digitais os mesmos incentivos tributários que beneficiam os livros convencionais. Como a senhora entende essa discussão?
Karine – Esse é um trabalho que temos feito. As produções digitais precisam ser vistas como livro. Não interessa o meio em que ele está sendo usado. Se é digital, se é papel, se é apenas áudio, se está em braile. Tudo isso é livro porque existem informações organizadas para um determinado usuário.
PB – No mercado editorial internacional, séries de livros – como a infantojuvenil Harry Potter ou a adulta Cinquenta Tons de Cinza – fazem sucesso há muito tempo. Porém, no Brasil, não parece haver autores e editoras investindo nesse nicho. Por quê?
Karine – Não é que não temos autores compatíveis com grandes best-sellers. Muito pelo contrário. Acho que temos, sim. Porém, o trabalho comercial, de marketing, feito em cima dessas obras, não chega perto do que acontece em nível mundial. Temos muito a aprender para divulgar nossos autores e para valorizá-los.
PB – Como é ser um autor num mercado editorial forte e como é ser um autor no mercado editorial brasileiro?
Karine – Na prática, a diferença reside nos investimentos em pontos de venda. No exterior, você vê livros anunciados em qualquer lugar: ônibus, metrô, rádio, televisão. Aqui, são poucos os editores que investem nesses meios de comunicação porque isso tem um custo alto e o mercado brasileiro entende que esse não é o melhor retorno na aplicação do seu dinheiro.
PB – Muitos livros que se tornam best-sellers mundiais são desenvolvidos por equipes que fazem diversas pesquisas com o público-alvo. Isso está longe de acontecer por aqui?
Karine – Eu diria que a pesquisa de um modo geral no Brasil ainda é um recurso pouco utilizado na concepção de um produto. Aqui, esse hábito não está consolidado. São as grandes empresas que investem nisso. As pequenas, nem tanto.
PB – Nos últimos anos, vem ocorrendo uma série de discussões para reformular as leis de direitos autorais no Brasil. O que pode ser dito sobre isso, considerando que, de um lado, estão os que advogam o livre acesso ao conhecimento e, de outro, os que defendem com unhas e dentes os direitos autorais?
Karine – No meio dessa salada toda, a nossa posição é a seguinte: nós acreditamos que o acesso deve acontecer, porém, com responsabilidade. No nosso ponto de vista, o autor deve ser remunerado por sua produção. Porque, afinal, ele também é um profissional e deve ganhar pelo trabalho que realiza. O autor trabalha todos os dias na produção de conhecimento e, se não for remunerado, não vai se sentir estimulado para melhorar sua produção. A história da flexibilização dos direitos (autorais) é um ponto crítico que deve ser muito bem pensado antes de ser decidido. Ao mesmo tempo, as possibilidades das pessoas que querem ter acesso ao conhecimento também devem ser consideradas. Então, nós temos que olhar para exemplos bem-sucedidos no mundo e tentar adaptá-los à nossa realidade. É possível levar acesso ao conhecimento, mas de maneira que o autor seja remunerado. Uma possibilidade é a gestão coletiva de direitos. As pessoas têm acesso a tudo, mas existe alguém que está controlando isso, assim como há o autor que está recebendo no final da cadeia.
PB – Nos últimos meses, tem havido uma discussão intensa no país sobre um Projeto de Lei que visa a regulamentar a publicação de biografias não autorizadas. Muitos consideram essa proposta como censura. Qual é a posição da Câmara Brasileira do Livro sobre esse assunto?
Karine – Nós somos a favor do conhecimento e somos contra a censura de qualquer tipo de publicação. E, da maneira como a discussão sobre as biografias não autorizadas está sendo conduzida, isso acaba sendo, de alguma forma, censura. Muito me estranha que grandes compositores e cantores, que eu admiro, que participaram de momentos revolucionários do país e que foram contra a censura em outros tempos, estejam agora apoiando a proibição de determinadas publicações. Sou a favor do conhecimento como um todo, desde que os limites sejam respeitados. A minha independência vai até onde começa a sua. Eu não posso ultrapassar esses limites. E acho que os autores devem ter isso como premissa: não adianta nada agredir o biografado, dizendo coisas que não gostariam que falassem deles próprios. Escrevam, mas escrevam com responsabilidade.
PB – Os que defendem restrições às biografias dizem que não são a favor da censura, mas que a justiça no Brasil é muito lenta e falha para reparar danos de uma biografia não condizente com a verdade. Como a senhora avalia esse argumento?
Karine – Da maneira como o assunto está sendo conduzido, é simplesmente proibição. E, para mim, esse não é o caminho a ser seguido.