Postado em 19/12/2013
Por: PAULO HEBMÜLLER
De repente, o zunzunzum típico da idade prenuncia a chegada de uma grande turma de adolescentes com chamativas camisetas amarelas, acompanhados de professores também devidamente identificados com camisas polo brancas. Em todas elas se lê o nome do lugar de onde vem o grupo: Nova Ponte, município de 12 mil habitantes no Triângulo Mineiro, a 473 quilômetros de Belo Horizonte. Desde 2009 a prefeitura custeia a viagem a São Paulo das turmas do nono ano do ensino fundamental, onde os alunos conhecem ao vivo lugares dos quais já têm referências. “Muitas histórias da literatura brasileira que eles leem têm como cenário lugares da grande metrópole, e nós os trazemos para que eles os conheçam”, explica a professora Maria Regina Pereira Inácio Silva, secretária de Educação do município. “A experiência tem sido muito positiva”.
Naquele final de tarde de um domingo, os 50 estudantes e 17 professores chegavam animados – apesar do calor e do cansaço de uma noite inteira de viagem de ônibus – ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), último ponto de sua peregrinação cultural pela capital paulista. Eles já haviam percorrido a Praça da Sé e o Páteo do Colégio, no centro, além de outras instituições, aproveitando também para se deslocar de metrô. Não daria tempo de ir ao Museu do Futebol, lamentava a secretária. Vai ficar para outra vez – porém, “o Masp não poderia jamais ficar de fora”, disse.
A turma que ajudava a colorir os corredores do museu com suas camisetas amarelas não precisou pagar ingresso, mas basta permanecer por pouco tempo nos arredores da bilheteria do museu, especialmente num belo domingo de sol, como era o caso, para perceber que o movimento de compra de entradas é incessante. A variedade de sotaques das diferentes regiões brasileiras e de línguas estrangeiras ouvidas por ali impressiona. Em 2012, o número de visitantes do museu chegou a 850 mil pessoas. “O Masp, como apontam recentes pesquisas feitas pelas secretaria de Turismo e imprensa, é o primeiro motivo para a vinda de turistas à cidade, acima da Fórmula 1, da Fashion Week, da Bienal e de qualquer outro grande evento costumeiramente realizado na cidade”, diz José Teixeira Coelho Netto, professor titular aposentado da Universidade de São Paulo (USP), e curador-coordenador do Masp desde 2006. “É o museu com maior afluência de público não apenas do país, mas de toda a América Latina. É o único estabelecimento do gênero brasileiro realmente internacional”, completa.
Um outro grupo, menor e mais discreto do que o dos alunos mineiros, também fez questão de incluir uma visita à instituição. Entre os estudantes de Arquitetura de Zurique, na Suíça, estava a jovem Clara Hofmann, que diz ter ficado bastante impressionada com a construção, o clima da Feira de Antiguidades – realizada todos os domingos, no vão livre do museu, há cerca de 30 anos – e com boa parte das obras que viu nas exposições. O grupo completara 15 dias em atividades de estudo em Belo Horizonte, e antes da viagem de volta passou o final de semana na capital paulista. O Masp, claro, estava na lista de visitas obrigatórias. “Já tínhamos referências sobre o museu, e era um lugar que precisávamos conhecer”, conta a estudante suíça.
É de alguns dos muitos turistas estrangeiros com quem conversa que a jovem Ana Otília, vendedora da revista “Ocas” – projeto da ONG Organização Civil de Ação Social para Geração de Renda a Pessoas sem Trabalho –, “descola até um extra” falando seu “espanhol meio enrolado”. O Masp é seu ponto de venda de terça a domingo (às segundas o museu não abre). “Além da parte social, a revista apresenta reportagens sobre cultura, e por isso é muito bem aceita pelo pessoal que vem aqui, principalmente os jovens”, diz. No final da entrevista, Ana pergunta se o repórter poderia confirmar a cotação do euro que ouviu de expositores da Feira de Antiguidades. Ela não esconde o sorriso fácil ao saber quantos reais vai receber por uma nota de € 20 dada por um turista espanhol.
Clube dos 19
O prédio do número 1.578 da Avenida Paulista, onde fica o Masp, é um dos símbolos mais conhecidos da cidade, e se transformou em ponto de partida ou concentração de eventos que vão de corridas de rua a shows, manifestações e protestos. Seus 11 mil metros quadrados, divididos em cinco pavimentos, abrigam um acervo de cerca de 8 mil peças, boa parte de arte ocidental, do século 4 a.C. até a atualidade. Alguns integrantes dessa verdadeira seleção do mundo da arte universal: Rafael, Botticelli, Delacroix, Renoir, Monet, Cézanne, Picasso, Modigliani, Toulouse-Lautrec, Van Gogh, Matisse, Chagall, Manet, Gauguin, El Greco, Goya, Velázquez, Rembrandt, Cranach, Rivera, Ticiano. Entre os brasileiros, o museu reúne importantes trabalhos, também para citar apenas alguns nomes, Portinari, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Almeida Júnior, Brecheret e Flávio de Carvalho. Há, é claro, lacunas: são poucos os exemplares da grande arte alemã e inglesa, ou da russa e americana, pouco estimadas à época da criação do museu, mas já então significativas, aponta Teixeira Coelho Netto.
Além das telas, o acervo tem núcleos de arqueologia, desenhos, gravuras, fotografia, tapeçaria, vestuário, design, maiólicas (cerâmicas italianas dos séculos 14 ao 17) e esculturas (o Masp possui a coleção completa de 73 esculturas do francês Edgar Degas, além de três pinturas do artista). O museu integra o Clube dos 19, do qual participam apenas os guardiões dos acervos mais representativos da arte europeia do século 19 – fazendo companhia a instituições como o Museu d’Orsay de Paris, o Metropolitan Museum de Nova York e a Tate Gallery de Londres. Mais de 60 mil livros, catálogos, revistas e boletins especializados compõem sua biblioteca. Cursos, palestras, debates e espetáculos de música, teatro e dança ocupam o calendário de dois auditórios. Do seu Departamento de Cinema nasceu, em 1977, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, hoje espalhada por vários endereços e também responsável por atrair turistas que vêm à cidade especialmente para o festival. O Masp é ainda a origem da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e do curso de Artes Visuais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap).
Se os números são superlativos, os desafios e problemas também não são pequenos. “O Masp atual foi projetado e construído para um outro tempo, uma outra cidade, menor e com muito menos problemas sociais – uma cidade mais ‘amigável’”, destaca Coelho Netto. Para o curador-coordenador, o prédio é pequeno para o século 21, mas o tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) impede que a construção seja ampliada, para cima ou para baixo. Uma das alternativas para abrigar o acervo e muitas outras atividades seria a construção de um prédio anexo, ao lado do museu, onde hoje está o edifício Dumont-Adams, abandonado há mais de duas décadas. Até o fechamento desta edição, o chamado projeto Masp Vivo – que de acordo com o contrato inicial deveria ter sido concluído em 2007 – seguia emperrado por desavenças, incluindo demandas judiciais, entre a instituição e a patrocinadora e doadora do prédio, a Telefônica Vivo. “As obras atrasaram devido a questões técnicas diversas. O Masp é o maior interessado em dar continuidade a elas”, diz a diretora-presidente do museu, Beatriz Mendes Gonçalves Pimenta Camargo.
O sonho de Chatô
A conclusão do anexo poderá ser “uma alavanca relevante para o museu, que como todo organismo vivo precisa renovar-se”, considera Coelho Netto. Enquanto a nova obra não vem, o curador lança uma pergunta: “A arquitetura de um museu deve valer mais do que o seu conteúdo?” Recentemente, relata, o Museum of Modern Art (MoMA), de Nova York, “se refez por inteiro e ficou muito maior”. Ele diz que não é permitido que o Masp faça o mesmo e não se apresentam alternativas. “Em certos dias, chegamos perto da capacidade máxima de atendimento. E visitar um museu não deve ser uma tortura, mas um prazer”.
A “maior e mais polêmica aventura das artes brasileiras: a criação do Museu de Arte de São Paulo”, como define o jornalista Fernando Morais no livro Chatô, o Rei do Brasil, começou em meados da década de 1940. Na época, o meio de comunicação no país era dominado pelos Diários Associados, montado por Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, o Chatô, um império que chegou a reunir 34 jornais, editora de livros, revistas (como a semanal “O Cruzeiro” – estrondoso sucesso nas bancas), agência de notícias, 36 estações de rádio e a primeira cadeia nacional de televisão, a Rede TV Tupi de São Paulo, criada em 1950.
Em 1946, envolvido com a expansão de sua rede e com campanhas em diversas frentes, o empresário “já estava perseguindo outra obsessão: obter doadores para construir e montar no Brasil ‘uma das maiores galerias de arte do mundo’”, conta Morais. O projeto estava pronto e acabado em sua cabeça: “o prédio novo dos Diários Associados de São Paulo, quase terminado, tinha um andar inteiro destinado à instalação da galeria e algumas obras de arte haviam sido adquiridas”. Para liderar o ambicioso projeto, com dedicação em tempo integral, Chateaubriand convidou o marchand e jornalista italiano Pietro Maria Bardi, então com 46 anos, a quem conhecera numa exposição no Rio de Janeiro. Chatô convenceu Bardi – que morava em Roma – a se mudar para São Paulo com a esposa, a arquiteta Lina Bo, para consumar a “aventura” no outro lado do Atlântico.
Com Bardi a tiracolo, Chateaubriand viajaria pela Europa para adquirir “a preço de banana” obras “da nobreza e da burguesia quebradas” pela Segunda Guerra Mundial. Bem ao seu estilo, que incluía obter “doações” de industriais e de fazendeiros de café utilizando, se necessário, a pressão que seus veículos podiam fazer, o jornalista começou a montar um acervo que, define Coelho Netto, “é uma coleção única no hemisfério sul e que nunca mais poderá ser reproduzida”.
A abertura do museu, na sede dos Associados – na Rua 7 de Abril, no centro de São Paulo –, se deu, improvisada, em outubro de 1947. Em julho de 1950 houve a inauguração solene. A mudança para o novo prédio da Avenida Paulista aconteceu em novembro de 1968, depois de 12 anos consumidos entre seu planejamento e execução. O doador do terreno exigiu que fosse preservada a vista para o centro da cidade e a Serra da Cantareira, através do vale da Avenida 9 de Julho. Lina, autora do projeto, concebeu então os quatro pilares e o vão livre de 74 metros – que já abrigou uma praça com brinquedos para as crianças e muitas plantas. Bardi permaneceria ligado ao Masp até 1996, quando se afastou por motivos de saúde e abalado pela perda da esposa, que falecera quatro anos antes. O homem que Chatô escolheu para conduzir a criação do museu morreu em 1999, poucos meses antes de completar um século de vida.
Momento sui generis
O próprio Assis Chateaubriand – que hoje dá nome à instituição – não chegou a ver o novo prédio inaugurado: ele morreu em abril de 1968. Para Coelho Netto, o fato de o empresário não ter criado uma fundação ou outro instrumento para a manutenção do Masp é um problema adicional. O museu é uma instituição particular sem fins lucrativos, cujo orçamento é de cerca de R$ 12 milhões anuais. De acordo com a sua assessoria de comunicação, os recursos de bilheteria e o apoio de R$ 1,2 milhão da prefeitura de São Paulo garantem apenas quatro meses de funcionamento. A busca por doações e patrocínios é indispensável para dar conta dos oito meses restantes. Empresas, organizações e pessoas físicas podem procurar informações sobre como se tornar parceiros do museu no site do Masp na internet: www.masp.art.br.
“Chateaubriand já fez muito organizando essa coleção e destinando-a a um museu que deveria abrir-se para o público”, diz o curador-coordenador. E continua: “O museu precisa agora encontrar novos modos econômicos que lhe permitam continuar cumprindo sua função. Não poderá fazê-lo se não contar com a participação ativa do poder público, da iniciativa privada e da sociedade civil”, ressalta. Para Coelho Netto, o Masp foi fundado num momento sui generis na história do país, numa conjuntura que depois não mais se repetiu e que parece encontrar muitas dificuldades para se repetir. “Não foi só Chateaubriand: Ciccillo Matarazzo criou outros dois museus (o Museu de Arte Moderna – MAM e o Museu de Arte Contemporânea da USP – MAC-USP) e a Bienal. A ideia de mecenas então era outra, e essa figura, em vez de se multiplicar, esmaeceu”, afirma. No mundo inteiro, continua, o poder público sabe que visitantes à procura de atrações como o Masp geram recursos econômicos importantes para a cidade: passagens, estadias em hotéis, gastos em restaurantes, compras etc. “Aqui, fazem de conta que não sabem”.
Na saída de sua visita, a estudante Thaís Suzuki, de 16 anos, fala que deposita esperança de que a renovação do interesse dos paulistanos – e brasileiros – pelo maior museu de São Paulo garantirá a continuidade das filas em suas bilheterias. Falando com brilho nos olhos das exposições que havia visto (entre elas, Deuses e Madonas, que descreve com entusiasmo), Thaís ressalta que não é novata no Masp: sua primeira visita fora motivada por uma aula de história da arte em sua escola sobre o quadro Retirantes, de Portinari. “É apaixonante”, define ela sobre o universo das obras ali expostas.
“São Paulo oferece tanta coisa para se ver que a gente, inexplicavelmente, acaba deixando de lado”, comenta a também estudante Érika Lethícia Severino, 20 anos. “Não valorizamos muito a nossa cultura”, completa. Pelo menos no caso dela e da amiga Júlia Cardoso Rocha, 17 anos, a agenda cultural estava cheia: o Masp era mais um ponto de um roteiro que, naquele domingo, já incluíra o Theatro Municipal e a Feira da Praça da República. Se é verdade, como diz Coelho Netto, que “o Brasil costuma ver mais sempre o lado negativo das coisas que o positivo”, também é preciso concordar com sua conclusão: “Que o Masp ainda exista, que continue existindo, é, em si, um fato largamente positivo”.
“Acervo artístico inestimável”
A empresária e colecionadora de arte Beatriz Mendes Gonçalves Pimenta Camargo, 82 anos, é a primeira mulher a ocupar a presidência da Diretoria do Masp. O museu tem também um Conselho Deliberativo, composto por representantes de vários setores da sociedade, atualmente presidido pelo médico e ex-ministro da Saúde Adib Jatene. Leia a seguir a entrevista que a diretora-presidente concedeu a Problemas Brasileiros:
Problemas Brasileiros – A senhora tem uma ligação histórica com o Masp. Pode falar um pouco dela?
Beatriz – Minha ligação com o mundo das artes é antiga. Minha história com o Masp vem desde a juventude, quando a sede do museu ainda era na Rua 7 de Abril. Frequentei os cursos de arte e, naquela época, tive o prazer de conhecer Pietro e Lina Bo Bardi, e vi meu marido [o advogado Mário Pimenta Camargo, falecido em 1996] ser diretor do Masp por várias gestões. Faço parte da diretoria do museu desde o final dos anos 1990 e foi com muito orgulho que aceitei o desafio de ser presidente, no início de 2013. O Masp tem o mais rico e importante acervo artístico do hemisfério sul. Sua coleção é inestimável e é um patrimônio de todos.
PB – A senhora disse, ao assumir a presidência do Masp, que tinha entre seus objetivos adquirir novas obras para o acervo do museu, com foco nos artistas brasileiros contemporâneos, e trabalhar na conclusão do prédio anexo. Como avalia o andamento dessas metas até aqui?
Beatriz – As obras [do anexo] atrasaram devido a questões técnicas diversas. O Masp é o maior interessado em dar continuidade a elas e em promover a inauguração do edifício para disponibilizar as atividades previstas à população de São Paulo e, por extensão, ao país. E o fará assim que as questões com o patrocinador estiverem afinadas. A aquisição de obras sempre foi e continua a ser uma das prioridades do museu. O Masp conta com a parceria de empresas e pessoas físicas, pois precisamos desse apoio às artes para viabilizar os recursos necessários à aquisição de novas obras e também à conservação e eventual restauração daquelas que já fazem parte do nosso acervo.