Postado em 08/01/2014
Diferentemente do que o pensamento de base dualista faz crer, a cultura popular “tradicional” e a arte contemporânea estão em constante processo de diálogo, mesclando elementos variados. Não havendo, portanto, uma oposição entre elas nem uma superioridade de uma em relação à outra. Esse tema complexo da formação brasileira é analisado pelo professor Amálio Pinheiro e pelo antropólogo e produtor cultural Marcelo Manzatti.
O ANTIGO E O ATUAL:
FALSO PROBLEMA
por Amálio Pinheiro
Há sociedades que, dando pequenos saltos em sequência linear e evolutiva, acreditam crescer para a frente e para cima, conforme se vieram desenvolvendo as técnicas e tecnologias a serviço da antiga e da atual ordem capitalista. Os exemplos maiores estão, resguardadas as diferenças, no hemisfério norte. Nessas sociedades, como é o caso da Europa central e dos Estados Unidos, o que predomina é a ideia da inexorável substituição de algo anterior por alguma coisa seguinte mais “avançada”, “nova”, “moderna” ou “contemporânea”.
Haveria sempre aí uma “tradição” a ser superada por “novos” modos de se mobilizarem os sinais e os dígitos, a partir do pressuposto de um “avanço” baseado na rapidez e na quantidade de informação. Não por acaso vêm daí expressões desgastadas como “agora, em tempos de globalização...” e tantas outras, bastante usadas por profissionais da mídia e da classe média, esta última justamente destinada, já que prisioneira do futuro consumista mais próximo, a caminhar competitivamente para a frente e para o alto. Curioso, e contraditoriamente compreensível, que as nações mais armadas para empurrar, a seu modo, o planeta para a frente (essa ideia de crescimento e progresso contínuo e ufanista) sejam exatamente aquelas cuja vida social é mais rigidamente organizada pela convenção, ou seja, por normas que querem manter as leis do passado imutáveis no presente.
Seria engraçado se não fosse assustador: desde as carteiras escolares na França positivista e republicana até os programas de computação estadunidenses da atualidade, quem mais mexe com palavras/chips é quem melhor protege a ordem convencional, as regras rígidas do que quer se manter no mesmo. Por isso que a figura dominante no desenho dessas civilizações é a linha ou o ângulo retos, que tendem a excluir as variações e a multiplicidade.
Acontece que outras sociedades (América Latina, Caribe, Brasil) se alimentam preferencialmente do que está colocado ao lado. Não há como fazer de outro modo: nunca em tão pouco tempo veio tanta gente de tantos lugares diferentes. Essas sociedades não podem ser analisadas apenas pela linearidade no tempo, mas pelo que se expande espacialmente, aglutinando inúmeras temporalidades. São lugares difíceis de se pensar (que propõem uma outra maneira de pensar), pois isso que está ao lado pode vir de longe, pode ser a princípio estranho, desconhecido, paradoxal. Aí estão os ingredientes para aprendermos a nos pensar: o outro lateral, estranho, variado e múltiplo.
Pensemos na relação entre índios, bandeirantes, africanos, imigrantes. São civilizações de crise e conflito, mas também de tradução. Não são sociedades organizadas a partir de uma unidade do “ser”, aquilo que se chama vulgarmente de “essência” de uma nação. São, isto sim, fundadas pela tradução: esse gesto de traduzir deglutindo, que desfaz as meras oposições e produz relações de mediação entre duas ou mais coisas que ameaçam competir entre si. Essa tradução entre práticas culturais diversas não se dá sem conflito, mas está impregnada na nossa conduta.
Os bandeirantes, conforme mostra muito bem Sérgio ¿Buarque de Holanda no seu último livro, O Extremo Oeste, foram “virando índios”. Mataram muitos índios, mas passaram a ser algo, que todos nós somos: caboclos em devir. Isso quer inevitavelmente dizer que todos nós fomos virando índios, isto é, caboclos, o produto de uma enorme tradução da cultura. Não se pode aqui falar em identidade, mas em incessante, inacabado devir, em vaivém, para a frente e para trás.
O gesto de tradução incorpora (traz para dentro do próprio corpo) o que era uma propriedade do outro. Sejam fachadas das igrejinhas coloniais (portanto, descolonizantes), pratos típicos (portanto, atípicos) ou arte contemporânea (portanto, extemporânea) etc., o que se percebe é a mescla de elementos variadíssimos, que são a contribuição antiga/presente dos povos/objetos/imagens que aqui estavam e dos que para cá vieram, devidamente mastigados, atuante em todos os sentidos e em todos os gestos. Por isso que não se pode, entre nós, pensar (duplo equívoco) na oposição entre uma tradição cultural essencial de raiz popular (a cultura popular, de um lado, e depois uma cultura digital eletrônica que a superaria, de outro). Essa é a velha oposição binária entre sim/não, alto/baixo, que só pode ser resolvida por meio da conjunção alternativa ou. Ou uma coisa ou outra. Mas nós somos uma civilização do também. Uma coisa e outra.
Uma coisa com a outra. Podemos digerir o que vem de qualquer parte do mundo. Todas as nossas práticas criativas, desde a cozinha até as catedrais, são feitas dessa mistura entre antigo e atual. Não serve para nós a ideia da história da cultura como uma sequência de tradições e novidades, que separaria os mais “modernos” dos mais “antigos”. Quando comemos um caruru ou uma feijoada, temos o sabor de muitas civilizações no paladar. Podemos combinar alimentos e artes, venham de onde vierem, porque fomos treinados desde o começo, pela relação entre índios, negros e imigrantes, na experiência cotidiana da troca.
Sempre colocamos lado a lado o passado e o presente. A grande música de Villa-Lobos juntava o clássico, o ameríndio, o matuto etc. Daí que temos de aprender a pensar as coisas em conjunto, agindo umas sobre as outras. Quando se trata de culturas como a nossa, as coisas estão umas dentro das outras. Não há como dizer que algo é superior ou inferior, popular ou erudito, mais ou menos “moderno”. Temos de reaprender a dar nome aos acontecimentos e situações abandonados ou não previstos. Começamos a perceber que temos de dar outros nomes às coisas (esse universo de objetos, bichos, mitos e imagens que existem, e já existiam muito antes de as formas do capitalismo tornarem-se dominantes e aceitas por essa parte esquisita e problemática da população chamada classe média).
Este é o terreno da complexidade: não separar, não isolar. Isolar só favorece a quem quer dominar e àqueles que apenas querem obedecer. Pensar o complexo é difícil, por isso que muitos preferem dizer que uma canção, por exemplo, é melhor porque é “tradicional” ou, de outro lado, “moderna” ou “contemporânea”. Precisamos desenvolver o gesto humilde de analisar as coisas pelo que elas têm, sem impor a elas nossas ideologias. As coisas da cultura “sabem” muito mais que nós.
Assim, podemos facilmente deitar numa rede ou tomar um chimarrão (heranças indígenas) e ao mesmo tempo utilizar aparelhos eletrônicos sofisticados. Cresce o número de celulares, porém também cresce a quantidade de blocos de carnaval. Mesmo em cidades grandes como São Paulo, as pessoas manuseiam computadores e entram em terreiros de escola de samba, da umbanda e do candomblé. A própria língua que falamos é povoada de palavras caboclas, pois misturamos aqui os modos de dizer provenientes dos índios, da África negro-árabe e de todos os sucessivos imigrantes. Séries de TV como Tapas & Beijos são interessantes porque são híbridas: melodrama, humor, erotismo, técnicas audiovisuais a serviço de personagens e vidas comuns de bairro e periferia. Por isso adquirimos essa capacidade de devorar o que vem de fora e torná-lo nosso. É claro, isto é um outro assunto, que tem coisa para ser devorada e coisa para ser cuspida; devemos cuspir o que não quer se misturar.
A figura dominante na nossa cultura é a curva, de preferência a mais sinuosa, com sua capacidade de movimento e acolhimento. A curva não faz caso da linha evolutiva do tempo: ela invade o antigo e o atualiza no presente. As curvas vão sempre, requebrantes, em zigue-zague, para a frente e para trás, rindo-se dessas duas posições na verdade muito parecidas: os modismos que se internacionalizam e os retornos à tradição. Na verdade, as duas são muito parecidas e têm como argumento a linha reta.
“Precisamos desenvolver o gesto humilde de analisar as coisas pelo que elas têm, sem impor a elas nossas ideologias. As coisas da cultura ‘sabem’ muito mais que nós”
Amálio Pinheiro é poeta, tradutor e professor de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Publicou, entre outros, César Vallejo: O Abalo Corpográfico (Arte Pau-Brasil, 1986) e Aquém da Identidade e da Oposição. Formas na Cultura Mestiça (Unimep, 1995)
As culturas populares e tradicionais no Brasil contemporâneo
por Marcelo Manzatti
Denominadas ainda, por muita gente, como folclore, as expressões culturais populares e tradicionais atravessam as gerações, as escolas acadêmicas que se debruçam sobre a análise de seus modos próprios de produção e reprodução, as políticas públicas de cultura, sempre se transformando, sempre muito incompreendidas pela intelectualidade e, sempre, desassistidas pelo Estado. Matriz importante de nossa mega diversidade cultural, berço de saberes ancestrais de centenas de etnias formadoras de nossa nacionalidade, de técnicas e ofícios utilizados cotidianamente por milhões de pessoas, de celebrações que amalgamam o sentido da vida na cidade e no campo, de línguas faladas pela boca, pelo corpo e pelo espírito, encontram-se vivíssimas e atuantes no nosso imaginário e na nossa realidade.
A distância existente entre o discurso com que são festejadas e laureadas pelos poderosos e, contraditoriamente, a forma como são violentadas, questionadas, perseguidas e discriminadas nos espaços hegemônicos da cultura, como as universidades, os meios de comunicação, museus, dentre outros, não arrefece nem diminui os ânimos de seus praticantes. Nessa dialética perpétua, característica de nossa sociedade, reside o fascínio e, ao mesmo tempo, o desprezo pelas formas de existência das culturas populares e tradicionais. Adoramos as raízes africanas que nos formaram, mas não conseguimos superar o racismo que serviu de ideologia para escravizar milhões de pessoas. Amamos os índios, protetores da nossa natureza desde os tempos imemoriais, mas os assassinamos e expropriamos suas terras. Comemos bacalhau, louvamos o Divino Espírito Santo e damos um jeitinho pra tudo, mas gostaríamos, mesmo, de ser anglo-saxões.
Ou seja, as culturas populares e tradicionais, como prefiro chamar, são produtos dessas relações entre os diferentes estratos de nossa sociedade desigual. Esta, a despeito da ideologia festiva com que o brasileiro é visto pelos outros e por ele mesmo, é uma sociedade extremamente violenta. E essa violência, apesar de esmagadora contra as classes menos favorecidas, é vista como sendo originada e produzida por elas. Quando conseguimos despir ou esconder a expressão cultural debaixo dessa violência, temos o Carnaval, o futebol arte, as festas juninas e muitas outras expressões culturais com as quais nos identificamos e das quais nos orgulhamos.
Quando fica evidente que a beleza que produz os desfiles das escolas de samba, as cavalhadas, os rituais para Iemanjá nas festas de final de ano, os sons doces das violas sertanejas, dentre outras tradições, vem do mesmo lugar onde vivem as pessoas que engraxam os sapatos dos engravatados, que limpam o chão da classe média, que carimbam os documentos nas repartições, o reconhecimento dessas expressões como cultura passa a ser interditado.
Para ter apenas um exemplo da força que opera contra as culturas populares e tradicionais, na matriz conceitual que Mário de Andrade desenvolveu para a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em meados dos anos 1930 e 1940 – hoje, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) –, estavam presentes no conceito de patrimônio tanto as igrejas coloniais quanto o requebrado da passista, tanto a Carta de Pero Vaz de Caminha quanto as regras da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, tanto os casarões dos barões do café quanto as ocas indígenas do Xingu.
O patrimônio material, que preservou as obras das camadas dominantes da sociedade brasileira, estaria, desde a origem, ao lado do patrimônio imaterial, que tenta, agora, proteger e promover as referências dos saberes populares e tradicionais. No entanto, a força da política excludente do Estado, mecanismo de poder hegemônico, apagou, em grande medida, essa concepção por quase 60 anos, só ressurgindo muito recentemente. E, mesmo assim, com grandes dificuldades institucionais de consolidação.
Guardadas as devidas proporções, repetem-se os argumentos discriminatórios contra o funk, do mesmo modo que se atacavam os sambas dos morros cariocas na virada do século 19 para o 20. Perseguidos por vadiagem no começo da história do gênero, os sambistas foram se impondo, construindo parcerias com setores do comércio e dos meios de comunicação, com a indústria cultural – rádios e televisão – e, hoje, o samba é considerado patrimônio cultural brasileiro e mundial. Durante muito tempo, inclusive, foi parte estratégica da política estatal de difusão do turismo, constituindo-se numa marca do Brasil no exterior. Derivou-se em muitos outros gêneros, misturou-se com o rock, com o sertanejo, com o jazz e seguiu em frente, diverso, mas profundamente sintonizado com o modo de ser do brasileiro de determinadas regiões do país. Assim ocorre com outras formas de expressão nascidas e mantidas pelo povo, nas periferias das grandes cidades, nos rincões da Amazônia, nas pequenas cidades do interior.
Em outubro, o Sesc Itaquera realizou um grande encontro nacional de agentes culturais envolvidos com as culturas populares e tradicionais de todo o país. De 1º a 6 daquele mês, rodas de conversa, exposições, performances e mostra gastronômica proporcionaram ao público uma vivência profunda de todo esse universo fantástico e desafiador. Foram reunidos quilombolas, jongueiros, fandangueiros, artesãos, indígenas, ciganos e outros grupos formadores da nossa nação, que buscaram fomentar ações em rede para fortalecer as comunidades e povos tradicionais na luta por melhores condições de manifestação de suas criações artísticas e culturais.
“O patrimônio material, que preservou as obras das camadas dominantes da sociedade brasileira, estaria, desde a origem, ao lado do patrimônio imaterial, que tenta, agora, proteger e promover as referências dos saberes populares e tradicionais”
Marcelo Manzatti é antropólogo e produtor cultural