Postado em 01/11/2013
A casa reproduz o núcleo mais íntimo do convívio social: a maneira pela qual uma família se organiza no interior da cidade ou no espaço rural. Toda cultura, ao longo dos séculos, criou formas próprias de construir o abrigo familiar, individual ou coletivo, criando modelos que acabaram assumindo peculiaridades próprias.
Em nosso País, a fórmula de morar conheceu soluções bem determinadas e que traduziram de forma direta a evolução dos modos de vida, das noções e dos valores que ao longo dos tempos, marcaram a sociedade brasileira.
A oca indígena, com seu caráter coletivo, espaço coberto de livre circulação, não podia servir aos portugueses, herdeiros da longa tradição de casas que abrigavam grandes famílias patriarcais, agregados e escravos, onde as mulheres viviam quase em regime de reclusão.
Para abrigar a sociedade colonial, criou-se um modelo que guardava muito dos modos de vida europeus, mas profundamente influenciado pelas tradições dos sete séculos de presença árabe na península ibérica: sobrados onde o térreo era usado para comércio ou depósito e a casa propriamente dita se desenvolvia no pavimento superior, onde havia uma sala frontal, de estar e visitas, e outra nos fundos: o comedouro e o estar íntimo. Entre elas, um longo corredor, ao longo do qual se distribuíam as alcovas, os quartos desprovidos de janelas da época. Esse tipo de casa era despojada, com poucos móveis ou ornamentos, dotada de paredes grossas, caiadas de branco, altos pés-direitos, onde não havia vidraças e os forros, assoalhos, e escuras das portas e janelas eram de madeira. Essa solução de morada, a casa luso-brasileira, difundida por todos os recantos do território continental do Brasil, foi a base doméstica de uma sociedade profundamente ciosa de si e de seus valores, e que se estendeu de meados do século XVI ao XIX.
Depois das enormes transformações que varreram o mundo com a revolução industrial, foi só a partir de meados do século XIX que o ecletismo reuniu forças para impor um novo modelo de habitação no Brasil, País que se mantinha rural e escravocrata. Novas visões de mundo e diferentes opções construtivas disponibilizadas pela Abertura dos Portos, foram a base da arquitetura que rompeu com os padrões coloniais e se estendeu até adiante do Estado Novo, já na metade do século XX. Foi a época da casa térrea a de porão alto, rodeada de jardins, dotada de varandas, com portas e janelas envidraçadas, e onde todos os compartimentos deveriam receber a luz solar. Nesse período, em contraponto à casa burguesa, surgiram inúmeras vilas e bairros operários inteiros, onde casas simples ainda reproduziam as plantas do período colonial, como ainda hoje ocorre em inúmeros lugares do Brasil.
No que se refere às habitações, o racionalismo do século XX passou rapidamente pelo decô e transitou para o modernismo, onde novos valores, inclusive estéticos, e possibilidades tecnológicas antes impensáveis impuseram formas renovadoras, traduzidas principalmente nos edifícios de apartamentos, a verdadeira máquina de morar do século XX.
Nesse mosaico de realizações que já se forma há meio milênio, a casa brasileira, sem modéstia, pode incluir-se entre as grandes realizações da arquitetura residencial do planeta. As extraordinárias casas de pedra e cal do período colônia, das quais as mais conhecidas estão em Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, Maranhão e Rio de Janeiro, podem ser admiradas em todo o território nacional, assim como as residências ecléticas, presentes em todos os estados, e que poderiam ser exemplificadas por suas representantes de São Paulo e Rio de Janeiro. Antes do ciclo modernista, de expressão verdadeiramente universal, vale destacar a arquitetura vernacular, criadora de obras que em nada ficam devendo para suas congêneres eruditas, nem para a riqueza dos conventos e igrejas, que sempre pontificaram no Brasil. É importante destacar também a contribuição dos imigrantes, que principalmente no sul do país, engrandeceram o patamar das casas brasileiras com contribuições plásticas e construtivas vindas da Itália, Alemanha, Polônia, Ucrânia e Japão.
Assim, nesse cenário de realizações, é necessário redefinir a casa brasileira do século XXI. Para manter o patamar de significância que a arquitetura brasileira desfrutou até há pouco, será necessário valer-se de estéticas renovadas, da tecnologia e, principalmente, dos estoques inesgotáveis de criatividade da civilização brasileira. Para tanto, sem dúvida, a prática da arquitetura precisará unir-se aos ideais de justiça e democracia, construindo modelos que contemplem todas as categorias e incluam, com urgência, arquitetura de interesse social e de qualidade universal. Esse será, talvez, o maior desafio dos arquitetos do futuro: ultrapassar o único patamar em que seus precursores não foram mestres em âmbito mundial, a casa digna com um bem disponível, equiparado aos direitos de todos.