Postado em 13/01/2014
UMA ESCUNA
– encalhada na praia atrás de palmeiras verdes úmidas e iluminadas por um sol impensado a velha escuna negra se deixa rodear por duas outras iguais a ela que eriçadas de mastros se movem sem resgatá-la entre gargalhadas e gritos agudos
– uma das bandeiras pretas da escuna encalhada diante do muro de pedra se desfia a sua única bandeira vermelha chacoalha como nova
– um vasto urubu passa entre o verde do jardim circulando o seu poleiro habitual que é um poste de luz na praia dá com a enorme escuna encalhada ali com bandeiras pretas trêmulas e desbotadas como as suas penas opacas
– entre a escuna encalhada e outra parecida com ela mais um pouco afastada uma canoa agitada vai e volta aos saltos levando homens tontos
– no meio-dia chuvoso uma escuna clara faz companhia à escuna negra que encalhou em frente da casa onde um homem de macacão coloca infinitamente serpentinas de aço no muro de pedra
– atrás do muro de pedra como se fosse uma alta e leve gaiola cheia de asas moles uma escuna gira mostrando apenas as bandeiras e os mastros
– escunas fantasiadas de navio pirata se aproximam devagar do muro de pedra e mostram cada uma o seu único dedo fino em riste para a casa que encara desde cedo uma escuna negra que amanheceu defronte
– desencalhada e roncando a escuna velha faz uma curva indo para trás sob assobios e sem parar mais se afasta vagarosa
– depois que a escuna negra desencalhou e sumiu as palmeiras verdes parecem mais altas e bastas movendo-se levemente sob o céu cinzento
– com homenzinhos correndo ágeis de cá para lá dentro dela a escuna negra com três bandeiras escuras passa sob o sol minguado da tarde bem menos imponente do que quando esteve encalhada diante do muro de pedra na manhã cinzenta
VINTE URUBUS SOBREVOAM UMA ESCUNA (fragmento)
– doze dias sem ouvir a escuna estridente que por ali
sempre passava lenta no verão
e
que agora cruza a baía inesperadamente veloz e
carregada de turistas sob o céu fechado
– sem o sol pode-se ver claramente os urubus
girando no alto
enquanto as nuvens crescem
:
então eles descem
em círculo um pouco
mais um pouco mais um
pouco mais sempre girando
e
trazem a brisa
– uma canoa que parece um galho traz para a praia um monte de gente
e
na árvore quase inteiramente desfolhada
apenas um pássaro inquieto (sem a pachorra do urubu)
ora de costas para o mar
ora de frente para ele
CENTENAS DE INSETOS COMEM UMA ESCUNA (fragmento)
– as lufadas estão quase sozinhas na tarde
há um vazio de pássaros e insetos no jardim diante
do mar embora se ouçam cantos e ruídos vindos de
galhos espessos e escuros
– entre centenas de formigas espalhadas mortas com
as suas asas transparentes na escuna que pela manhã
atracou ao cais
formiguinhas negras e calmas
vão e vêm sem aparentemente
ter o que fazer ali
(Estes três poemas integram o livro inédito Viagens e Passeios Fantasmagóricos)
Sérgio Medeiros é poeta, contista e tradutor. Suas obras mais recentes são Totens (Iluminuras, 2012), O Choro da Aranha etc. (7Letras, 2013) e O Desencontro dos Canibais (Iluminuras, 2013).