Postado em 06/05/2014
Com o intuito de democratizar a cultura, manifestações de diversas linguagens ocupam espaços urbanos e rediscutem modelos impostos pela tradição
Em 2013, durante dois meses, quem passava pelo coração da Cracolândia, local conhecido por abrigar uma das paisagens mais apocalípticas do Centro de São Paulo, deparava-se com oito grandes esculturas com formato de cataventos. No ano anterior, na mesma região, no bairro do Bom Retiro, ruas serviram de palco para uma peça teatral. Esses dois exemplos retratam um fenômeno que aflorou no século 21: as intervenções artísticas em espaços alternativos dos grandes centros urbanos.
Esses trabalhos trouxeram novas possibilidades para ambientes inusitados, deslocando o olhar e conferindo novos sentidos aos locais. O primeiro exemplo faz referência à obra Cataventos, de Eduardo Srur, um artista plástico paulistano que se destacou com interferências urbanas que suscitam reflexões sobre o meio ambiente e o cotidiano nas metrópoles. Na exposição a céu aberto, as peças se movimentavam com a ação do vento e produziam energia eólica para alimentar lâmpadas que iluminavam a própria obra.
Já o segundo faz menção ao espetáculo Bom Retiro 958 Metros, do Teatro da Vertigem, grupo conhecido por se valer de espaços não convencionais para as encenações. Durante a apresentação, o público se deslocava pelas vias inóspitas de uma área que se singulariza pela tensão entre as diferentes etnias que ali vivem. “Aquelas ruas desertas à noite mostravam um outro Bom Retiro. Um Bom Retiro em que, quando você presta bem atenção, escuta o som das máquinas dos bolivianos. O que estava escondido durante o dia se revelava”, conta Eliana Monteiro, uma das diretoras da companhia.
“O museu é a rua”
Na tentativa de interagir e de despertar reações diretas ou indiretas no meio e nos atores sociais que ali vivem e transitam, diversos artistas e coletivos romperam as fronteiras de museus, galerias e palcos, projetando suas obras na vida cotidiana. Com isso, tornaram a arte mais acessível, imbricada nas diversas questões da cidadania e em consonância com o ambiente. “Todo tipo de intervenção tem um efeito sobre os habitantes da cidade. Sugere formas de ver o espaço de um ponto de vista diferente. É preciso, principalmente em grandes cidades como São Paulo, cuja desumanização é muito grande, haver iniciativas que façam com que o sujeito estabeleça uma nova ligação com o meio”, afirma o professor de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Laymert Garcia dos Santos.
E é pensando em fazer uma crítica conceitual e despertar o olhar do público para um novo entendimento das artes visuais que Srur realiza intervenções em grandes conglomerados urbanos mundo afora. Para ele, a cidade é o laboratório de pesquisas utilizado para ampliar a presença da arte na sociedade e aproximá-la da vida das pessoas. “O artista instaura uma mudança no espaço social e faz com que as pessoas saiam da anestesia. A gente está o tempo inteiro sendo anestesiado pelo sistema, e as obras criam um curto-circuito”, explica Srur.
Em uma produção recente, o artista ocupou o vale do Anhangabaú, no centro histórico da cidade de São Paulo. Na intervenção Farol, uma construção vertical de nove metros de altura, composta de 20 mil ratos de borracha e graxa, chamou atenção de quem se deslocava por lá. A ideia nasceu quando ele descobriu que a capital paulista conta com uma das maiores populações de ratos do planeta: 170 milhões de roedores, ou seja, 15 por habitante. A obra é um farol negro e sem luz que emerge do piso de pedra e expõe o submundo.
Para Srur, a partir do momento em que o artista recria um local público com seus trabalhos, ele gera reflexão, mesmo que esse impacto dure somente o tempo do deslocamento de quem se depara com a obra. “A efemeridade faz parte da natureza da intervenção urbana, assim como a dinâmica da cidade. O meu papel é fazer a aproximação entre arte e vida”, diz.
Sutilezas efêmeras
Foi com o propósito de criar ações passageiras e de ocupar o espaço público de maneira crítica e poética que uma dupla de artistas passou a desenvolver uma série de intervenções em várias capitais. Em 2002, os mineiros Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada ainda eram estudantes de arte quando criaram o Poro. A partir de então buscam apontar sutilezas e reivindicar a cidade como espaço para a cultura. “Cada vez mais temos a certeza de que a arte deve disputar o imaginário urbano com o discurso hegemônico da publicidade e sua cultura vazia do consumo, marcando presença no espaço público e recriando as maneiras de experienciá-lo”, defende Terça-Nada.
Entre 2002 e 2004, no início dos trabalhos, a dupla ocupou canteiros abandonados em Belo Horizonte e no bairro de Santo Amaro, zona sul de São Paulo, com flores de papel celofane. “Pretendemos, mesmo que numa escala mínima, causar pequenos desvios no cotidiano das pessoas, gerar suspensões poéticas e abrir espaços de respiro e encantamento no tecido urbano”, explica o artista.
Na intervenção Propaganda Política dá Lucro, a dupla distribuiu panfletos tipográficos impressos em algumas cidades durante os períodos de propaganda eleitoral, entre 2002 e 2008. O santinho ironizava as promessas de cursos rápidos de formação e as estratégias usadas pelo marketing político para falsear a idoneidade dos candidatos. Já na intervenção Faixas de Anti-Sinalização, de 2009, várias placas com mensagens poéticas e provocativas foram instaladas em postes ou mostradas nas avenidas de Belo Horizonte. Nas obras, o público lia frases como “enterre sua TV”, “atravesse as aparências”, “veja através” e “fique atento à cidade”.
Para Terça-Nada, quando a arte deixa a atmosfera tradicional e vai para as ruas, ela perde a legitimação automática. “Enquanto no ambiente convencional se pretende uma dita neutralidade do local expositivo, no espaço urbano a relação com o contexto do lugar é muito forte e isso gera apropriações que são riquíssimas para os trabalhos”, esclarece. “No espaço urbano, a princípio, não há nada que demarque uma ação, imagem, objeto ou instalação como sendo ‘arte’. Isso faz com que a relação com as produções seja mais próxima e direta. O trabalho está inserido no cotidiano das pessoas, muitas das quais não se sentem com permissão para entrar em um museu ou em uma galeria”, completa.
Além disso, segundo o artista, as intervenções aparecem como uma alternativa aos circuitos oficiais, independente de mercados consumidores ou de complexas e burocratizantes instituições culturais. “O espaço público é muito fértil e aberto para experimentações. A intervenção urbana é um campo que permite maneiras expandidas e engajadas de atuação”, diz. “Mas é importante ressaltar que não são todas as poéticas que têm a ver com o espaço coletivo. Algumas linguagens artísticas precisam de ambientes mais neutros para ter força”, complementa.
Teatro ao redor
O Teatro da Vertigem, fundado em 1991, também nasceu com a proposta de se relacionar com a cidade de maneira diferente. O Paraíso Perdido, primeiro espetáculo do grupo, estreou na Igreja Santa Ifigênia, em São Paulo. A montagem abordava questões metafísicas recorrentes, como a perda do paraíso, a nostalgia e a consequente busca de um religamento original. Depois disso, ao longo da trajetória da companhia, palcos convencionais foram substituídos por um hospital, por um presídio e até pelo rio Tietê.
Segundo Eliana Monteiro, o espaço ajuda a construir o sentido da peça. “O grupo se apropria da memória que o lugar traz para despertar sensações e reflexões no público”, diz. Em O Livro de Jó, por exemplo, que foi a segunda montagem do Vertigem, os espectadores percorriam uma jornada semelhante à do protagonista, caminhando pelos corredores do Hospital Humberto Primo, em São Paulo. A dramaturgia mostrava o abalo da forte convicção religiosa de Jó em relação ao poder divino ao ser contaminado por uma enfermidade fatal, simbolizada pela Aids.
De acordo com Eliana, quando essa história é inserida em uma atmosfera hospitalar real, a carga despertada no espectador é muito grande. “A maioria das pessoas só vai ao hospital quando está com algum problema. Houve uma vez, por exemplo, que um rapaz desmaiou ¿durante o espetáculo. Quando recuperou a consciência, ele estava muito nervoso e começou a reclamar de um cheiro insuportável de éter. Mas o hospital já estava desativado há muito tempo e a gente não usava éter em nada. Ele sentia um cheiro que não existia”, contou.
Em 1995, quando O Livro de Jó estreou, Eliana ainda não fazia parte do Vertigem, mas foi por causa da experiência como espectadora que decidiu abandonar a carreira de funcionária pública e começar a fazer artes cênicas. “Eu assisti à peça dez vezes. Em todas fui tocada. O espaço, os músicos, a construção do todo fizeram com que eu deixasse a área pública e fosse fazer teatro”, relata.
Segundo a diretora, a escolha do local está sempre ligada ao conceito do trabalho. “O espaço sempre surge a partir do que queremos falar. Ele nunca vem gratuito”, afirma. No entanto, como os lugares escolhidos para as apresentações são públicos, o grupo tem de enfrentar muitas dificuldades para cumprir a proposta de fazer teatro em ambientes inusitados. “Há uma burocracia gigantesca. Sempre são exigidas muitas condições. Às vezes, chega um momento que parece que não vamos conseguir o espaço, inclusive. Em alguns casos, a negociação demora um ano”, diz Eliana.
Quando a intervenção não é autorizada, Eduardo Srur opta por obras subversivas. Em Touro Bandido, por exemplo, esculturas de touros se apropriaram das vacas do evento Cow Parade, nas avenidas Paulista e Faria Lima, em São Paulo, para questionar o conceito da exposição que é considerada o maior evento de arte pública do mundo. Por se tratar de uma ação não autorizada, Srur teve que responder a um inquérito policial por ato obsceno, difamação e danos materiais instaurado pelos organizadores do evento. Em sua defesa, ele alegou que a arte não pode ser domesticável.
Para Srur, quando a arte ocupa locais públicos e abertos, além de transgredir e de criar um diálogo com a metrópole, ela reconecta as pessoas com o espaço pertencente a elas. “A cidade de São Paulo não está preocupada com o espaço comum. Tudo está encaixotado. Há shoppings, condomínios, mas não há quase calçadas e nem parques. A sociedade precisa exigir isso e construir um espaço mais humanizado”, defende. Eliana também tem a mesma inquietação em relação ao ambiente urbano. “O que me incomoda é a privatização do espaço público, mesmo que seja pela Prefeitura. Acho que a arte tem que ocupar esses locais e devolvê-los para o público”, conclui.
BOXE 01 - Reinvenção do espaço
Conheça iniciativas que se apropriaram ¿de locais não convencionais para transformar a paisagem urbana
Babel e Mundão – Com o intuito de reunir expressões artísticas que provocam reflexões sobre o ritmo e os anseios da sociedade, há mais de 15 anos, o Sesc tem desenvolvido grandes mostras em locais não convencionais. Uma delas foi no Projeto Babel (foto), que reuniu obras de 100 artistas num antigo posto de gasolina localizado onde hoje é o Sesc Pinheiros. A segunda foi a Mundão, realizada no terreno que hoje abriga a unidade do Sesc Santo Amaro e que congregou representantes da diversidade cultural paulistana, como a banda Karnak, de André Abujamra, o músico Tom Zé e os shows de Cauby Peixoto e Jerry Adriani. Tudo isso para celebrar e discutir as diversas manifestações de cultura no mundo e em São Paulo, além de permitir que artistas e transeuntes se apropriassem de maneira criativa de espaços inusitados.
Cinemateca Brasileira – Construída em um dos galpões do antigo Matadouro Municipal de São Paulo, a Cinemateca é a instituição responsável por preservar a produção audiovisual brasileira. Cedido pela prefeitura, o local possui duas salas de cinema inauguradas em 1997 e 2007, além de espaços onde ocorrem atividades para a difusão e restauração do acervo.
Cadeia Velha – A Casa da Câmara e Cadeia de Santos, conhecida como “Cadeia Velha”, foi uma prisão por mais de 80 anos. Atualmente em processo de restauração, ela abrigou desde 1994 a Oficina Cultural Pagu, com cursos de teatro, cinema, artes plásticas, dança e circo. Além disso, foi palco de espetáculos da Bienal Sesc de Dança e do Festival Mirada.
Sesc Pompeia – Outro exemplo marcante de ocupação é o Sesc Pompeia. Projetado pela arquiteta italiana Lina Bo Bardi, o prédio foi inaugurado em 1982 e mantém a estrutura original de uma antiga fábrica de tambores da década de 1930. Hoje, o centro de cultura e lazer tem quadras esportivas, piscina, espaço de exposições, comedoria, choperia, sala de teatro e recebe mais de 1 milhão de pessoas por ano.
BOXE 02 - Implantação Campo Limpo
Nova unidade do Sesc vai abrigar um conjunto de atividades culturais e de lazer
A implantação da unidade do Sesc em Campo Limpo se alinha à proposta da entidade desenvolvida em experiências recentes,
como das unidades provisórias Avenida Paulista, Belenzinho, Sorocaba e Osasco. Partindo de espaços e equipamentos de caráter transitório, a implementação destes centros culturais e desportivos se dá em contato com os usos e expectativas da comunidade.
Ocupando uma área de cerca de 20 mil m², a partir do dia 31 de maio o número 120 da Rua Nossa Senhora do Bom Conselho vai abrigar shows, intervenções, apresentações circenses, cursos e encontros, trazendo para o espaço a programação que acontece nas diferentes unidades do Sesc na cidade. “O Sesc sempre chega trazendo um diálogo com o espaço e com a comunidade. Da mesma forma que todas as unidades oferecem oportunidades de contato com as mais diversas expressões, quem mora no Campo Limpo também vai poder desfrutar destes programas e atividades, embora ainda não exista uma estrutura definitiva construída no local”, diz a coordenadora de programação do Sesc Campo Limpo, Shirlei Torres.
“Qualquer ação no espaço urbano implica uma rede de reverberações. Estar presente neste espaço gera encontros e diálogos, e sempre modifica as relações cotidianas em seu entorno”, complementa Shirlei Torres. Saiba mais sobre a chegada do Sesc Campo Limpo no Em Cartaz, na pág. 60.