Postado em 08/05/2014
por Nelson Baskerville
Identidade em CENA
Nelson Baskerville é ator, diretor e autor de teatro. Nascido em Santos, formou-se na Escola de Arte Dramática da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) em 1983. Ganhou o Prêmio Shell 2010 de melhor direção por Luis Antonio-Gabriela, peça que trata da transexualidade, expondo uma experiência pessoal de Nelson. “Como eu tive essa história, decidi que estava na hora de contá-la, de me expor e expor a minha família, com o apoio de todos.” A peça também foi vencedora do Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e transformada em livro, em 2012. É desse espetáculo e da sua trajetória profissional que Nelson, convidado na reunião do Conselho Editorial da Revista E, fala neste Encontros.
História pessoal
O Luis Antonio-Gabriela foi escrito com base em minha história pessoal. Tive uma irmã travesti (hoje em dia, falo no feminino, irmã). O nome masculino dela era Luis Antonio e o nome feminino, Gabriela. Nos anos de 1960, em Santos, comecei a ouvir muita besteira sobre transexualidade e homossexualismo, bobagens que se ouvem até hoje. As pessoas cometem um erro ao reconhecer somente dois gêneros humanos, mas nós somos muito mais que isso. Como tive essa experiência dentro da minha casa, pensei: se não for alguém de dentro para escrever, nunca ninguém vai saber exatamente o que é. Eu tinha esse irmão, em uma família desestruturada com a morte da minha mãe, um segundo casamento do meu pai e um menino que não se comportava como menino desde que nasceu.
Cura gay
Acho que esse é o aspecto mais marcante do espetáculo, pois traz a questão da cura gay. Eu tinha um irmão que não tinha cura. Ele não era doente. Ele pensava diferente, ele veio diferente. Como sempre quero que a plateia não dilua o meu espetáculo em dez minutos após sair da sala, eu me aprofundo em linguagens e temas que provoquem reflexão. Acho que o espetáculo foi um sucesso, porque quem assistiu entrou com uma visão e saiu com outra, pois ali se vê alguém que não teve escolha. Como eu tive essa história, decidi que estava na hora de contá-la, de me expor e expor a minha família, com o apoio de todos.
Estética do espetáculo
O espetáculo chegou a um momento de amadurecimento pessoal e estético. Ele não é contado de forma cronológica e não tem uma sequência lógica. Sua estrutura é quase a de um teatro expressionista ou do teatro épico do Brecht, no qual não se respeita quase nenhuma linearidade de um gênero, como o drama ou a comédia. Se eu escrevesse a história de uma irmã travesti que apanhou a vida inteira, que abusou sexualmente do irmão mais novo, ficaria um dramalhão mexicano. Brecht, quando lança esse teatro épico, diz que “o teatro não é para emocionar, ele é para causar a reflexão na plateia”.
Função do teatro
Roland Barthes escreve, em um livro chamado Escritos sobre o Teatro, que Brecht nada mais fez do que retomar a função que o teatro tinha para os gregos, os inventores do teatro. Segundo ele, o teatro grego é um teatro popular que se baseia em quatro conceitos: festa, conhecimento, desenlace solene do tempo laborioso, e incêndio das consciências. Em festa, a peça precisa divertir; conhecimento, ela precisa dar alguma coisa ou trocar uma experiência com a plateia; desenlace solene do tempo laborioso, ela dá alento ao homem que saiu do seu trabalho; e incêndio das consciências, ela precisa provocar. Ninguém verá uma peça minha que não tenha isso. Antes de qualquer escolha de qualquer espetáculo que eu vá fazer, eu me pergunto: é festa, conhecimento, desenlace solene do tempo laborioso e incêndio das consciências? E, se não tiver um desses elementos, eu coloco, porque acho que é importante e é a função do teatro.
Fora do eixo
Quando vim para São Paulo com 18 anos fazer a Escola de Arte Dramática da USP, eu não tinha na cabeça um plano B. Eu não tinha a menor ideia do que faria se não fosse teatro. Formei-me, fui trabalhar como ator e fiz tudo o que se possa imaginar: telegrama animado, gravações, dublagens e espetáculo em escola – aqueles em que você sai em uma Kombi e faz sete espetáculos por dia. Na minha escolha estava implícito que eu faria algo que me fizesse acordar com prazer.
Não me considero muito inteligente. Sou extremamente intuitivo, e da mesma forma que na adolescência eu não me adaptava ao mundo que me cercava, meus primeiros trabalhos como ator também não me satisfaziam. Perguntava-me por que havia me esforçado tanto se era para veicular ideias às vezes equivocadas para mim. Já fiz peça espírita e sou ateu, por exemplo. Até a televisão, que é uma das poucas chances que o ator tem de ganhar dinheiro, não me satisfazia.
Vocação criativa
A grande experiência que eu tive, que poucas pessoas sabem e quase nenhum diretor tem, é ter dado aula no Teatro-Escola Célia Helena por 20 anos, em uma época em que estava mal de dinheiro. Nesse tempo, eu dirigi entre 60 e 80 espetáculos. A Escola, para mim, foi o grande laboratório pelo qual eu pude exercer meu ofício, o tipo de linguagem em que eu acredito, o que eu gosto de ver e fazer em teatro. Descobri ali que eu era diretor. Para mim, eu era um ator médio. Quando comecei a dirigir, passaram a ver em mim uma originalidade e um trabalho com identidade.
Demorei algum tempo para descobrir onde estava minha plenitude, e hoje sei que está na criação. Eu sou criador. Minha vocação é criar. Vocação é saber que se está no lugar certo, que não poderia estar em outro lugar. Se você não está, tem alguma coisa errada.
“Como sempre quero que a plateia não dilua o meu ¿espetáculo em dez minutos após sair da sala, eu me aprofundo em linguagens e temas que provoquem reflexão”