Postado em 11/05/2014
Por: CARLOS JULIANO BARROS
A capa do smartphone de Roberto Menescal traz a seguinte mensagem: Keep calm and carry on (Mantenha-se calmo e siga em frente). Nada mais apropriado para definir a personalidade desse capixaba de Vitória que, aos 76 anos, é capaz de passar horas a fio contando histórias sobre um dos capítulos mais importantes da música brasileira: a Bossa Nova. Ao lado de Tom Jobim, João Gilberto, Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, Menescal integrou a linha de frente do movimento cultural que, na década de 1960, redefiniu as bases da cena artística brasileira e projetou o Brasil para o mundo.
Nesta entrevista exclusiva a Problemas Brasileiros, concedida às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, Menescal relembra as influências do movimento nascido na zona sul carioca, do jazz norte-americano ao baião de Luiz Gonzaga. “Todos acreditávamos num Brasil Grande, numa nova atitude, em deixar para trás aquela coisa velha de terno e gravata”, diz. Compositor de hinos consagrados da Bossa Nova, como O Barquinho, Menescal também tem importante carreira como produtor musical, assinando discos de Elis Regina, Chico Buarque, Emílio Santiago, dentre outros pesos-pesados da música nacional. “Como produtor, sinto que estou no lugar certo”, define-se.
Problemas Brasileiros – O senhor esteve ao lado de Tom Jobim e João Gilberto no antológico show de 1962, no Carnegie Hall, em Nova York – marco da explosão internacional da Bossa Nova. Que recordações o senhor guarda daquele concerto?
Roberto Menescal – Quando fomos convidados para o show do Carnegie Hall eu era alienado de tudo. Eu costumava dizer: “eu só conheço da Avenida Atlântica para a praia”, que é a via beira-mar, em Copacabana. Minha vida era um deslumbre: além da música, eu era mergulhador e caçador submarino. Quando me chamaram para participar da apresentação, respondi que não iria porque tinha uma pescaria marcada em Cabo Frio. Nem sabia o que era o Carnegie Hall. Aí o Tom Jobim me telefonou – ele é o meu Deus até hoje, a quem peço perdão pelos meus pecados – e disse: “Menescal, você tem que ir, a turma toda vai, nós vamos lá defender o Brasil”. E eu respondi: “Então, eu vou”. Aquilo foi um marco para a música, mas foi um marco para mim. Na época, nós curtíamos tanto jazz que comprávamos os discos e ficávamos seis meses “tirando” tudo para aprender os acordes. Os músicos de jazz eram nossos heróis. Quando chegamos ao aeroporto, nos Estados Unidos, vi os saxofonistas Gerry Mulligan e Cannonball Adderley, e mais uns seis ou sete. E falei: “Olha a nossa sorte, chegamos ao aeroporto e o pessoal do jazz está aqui”. Pena que não tinha celular para tirar foto [risos]. E aí o responsável pela nossa recepção disse: “Não é sorte, eles vieram receber vocês. E, inclusive, estão gravando suas músicas”. O primeiro grande choque foi esse. A gente não sabia que eles conheciam a nova música brasileira. Em Nova York, ficamos hospedados em um hotel a duas quadras do Carnegie Hall. Quando entrei no auditório, foi aquele espanto: “Nós vamos tocar aqui? Eu não sou cantor, acho que não vou fazer nada”. Mas o empresário disse: “Você vai ter que cantar”. Então, estreei como cantor no Carnegie Hall. Ninguém estreia cantando lá. Mas foi uma carreira muito rápida. Acabou ali [risos].
PB – No ano passado, o senhor foi homenageado no Grammy Latino, em Las Vegas. Como foi?
Menescal – É claro que conheço o Grammy, mas não sabia exatamente do que se tratava o prêmio. Lá é que eu soube: era uma homenagem pelo conjunto da obra. Fizeram um vídeo de uns cinco minutos sobre mim. Enquanto assistia, passou outro filme na minha cabeça. Há um momento [antes da entrega do prêmio] em que você fica sozinho. É aquela solidão e você pensa: “Que bacana!” É muito difícil chegar aos 76 anos com a vida pulando – não é aquela coisa murcha. Se você olhar minha agenda é uma loucura, graças a Deus!
PB – O senhor costuma dizer que o tripé que revolucionou a Bossa Nova é formado pela qualidade da harmonia, pela batida característica do violão e pelas letras que falam de amor com mensagens positivas. Poderia desenvolver esse conceito?
Menescal – Nós gostávamos muito de jazz porque ele tinha uma atitude moderna. Aquilo era vendido nos filmes. Sempre havia alguém com o jeito do Frank Sinatra: um copo de uísque numa mão, um cigarro na outra, a gravata meio caída. A gente imitava muito isso. E eu também gostava da melodia do jazz, um negócio harmonicamente moderno. Mas eu não queria tocar jazz porque achava – e acho até hoje – a batida chata. A Bossa Nova tinha uma coisa mais swingada. Então, eu procurava isso de uma maneira, o Carlos Lyra de outra, o Baden Powell de outra. Foi então que surgiu o João Gilberto com a batida que envolvia todas as nossas. Tem gente que não concorda, mas acho que ele definiu as coisas que nós queríamos. Então, ganhamos harmonias e melodias do jazz, mas no ritmo fizemos um swing diferente. Já na poesia, queríamos uma coisa mais para cima e não “garçom, apaga essa luz que eu quero ficar sozinho”. Éramos muito jovens para cantar as misérias da vida e do amor. Nós fomos a primeira turma a usar bermuda no Brasil. Tiramos a gravata da música brasileira. Então, fomos em busca dos letristas: o Ronaldo Bôscoli – que era um jornalista e escrevia muito bem – e, claro, o Vinicius de Moraes. Esse foi o tripé.
PB – A Bossa Nova tem influências do jazz, mas se mantém fiel sobretudo ao ritmo do samba. Até que ponto ela é de fato revolucionária na esfera musical?
Menescal – É como o João Gilberto fala. A Bossa Nova é samba, é um tipo de samba. A bossa é resultante do samba-canção, que tocava muito na rádio. Nós não gostávamos do caminho das letras, mas as melodias eram incríveis. Se você escuta uma música antiga, como Ninguém me Ama, e uma do Tom Jobim, Eu Sei que Vou te Amar, e pergunta: “Qual é a diferença?” A diferença é de atitude. Muda a letra, mas também a melodia. A Bossa Nova é mais para cima. A gente também gostava muito de bolero. Tanto que o Dois pra Lá, Dois pra Cá que a Elis Regina cantou era uma brincadeira sobre isso. Tocava bolero e todo mundo saía dançando. Além do jazz, havia os musicais norte-americanos, com aquelas orquestras grandes, quase uma música erudita. O Frank Sinatra estava no meio disso e tudo o que ele cantava nos filmes virava sucesso. E tinha ainda a turma do piano do Nat King Cole. Só que queríamos fazer tudo isso no Brasil. Ou seja, não queríamos tocar apenas jazz. E é preciso lembrar ainda dos clássicos porque toda menina na época estudava piano. A música Insensatez do Tom Jobim, por exemplo, é [Frédéric] Chopin. E ainda tinha a influência do baião do Luiz Gonzaga. Mas acabou virando uma coisa própria. Tanto que acabamos influenciando, e muito, o jazz americano.
PB – O surgimento da Bossa Nova se dá num contexto de “modernização” da cultura brasileira. Isso se reflete nas artes com o Cinema Novo e com a Poesia Concreta, na política com Juscelino Kubitschek e até no futebol, com o bicampeonato mundial. A Bossa Nova é parte de um projeto de exportação da brasilidade?
Menescal – Não tínhamos conhecimento, mas havia um plano do governo para isso: a ideia do Brasil Grande. E começamos a acreditar nisso: Juscelino vai fazer Brasília, no peito e na raça. Nossa música veio com esse discurso ufanista. Todos acreditávamos num Brasil Grande, numa nova atitude, em mudar aquela coisa velha de terno e gravata.
PB – Alguns críticos torcem o nariz para a Bossa Nova e condenam esse discurso “yuppie” e ufanista, além da mistificação do Rio de Janeiro, em especial da zona sul da cidade. Como o senhor encara essas críticas?
Menescal – Encaro de forma muito natural. Eu não conhecia Bangu nem a Tijuca. Hoje, sem trânsito, você chega à Tijuca em 15 minutos. Naquela época, demorava horas. Eu me lembro de ver na praia as “tijucanas”, você reconhecia pelo andar. Hoje, o “tijucano” é igual ao habitante da zona sul em bossa, em balanço. Mas não era assim.
PB – E o culto ao Rio de Janeiro?
Menescal – Nós adorávamos o Rio de Janeiro mesmo. Eu morava em Copacabana, assim como toda a minha turma. Saíamos do colégio de manhã, trocávamos de roupa e íamos para a praia, antes do almoço. Depois retornávamos para casa, comíamos alguma coisa e voltávamos para o futebol da tarde. Íamos embora, mas voltávamos à noite para tocar violão. Tinha também o surfe. O nosso clube era a praia. Não tinha violência. Eu era caçador submarino. Ia para o Arpoador, pescava um peixe e fazia na lata mesmo. O Rio proporcionava esse monte de coisa bonita. Claro que a Bahia poderia ter feito, ou a minha terra – o Espírito Santo. Mas não fez [risos].
PB – Curiosamente, o Japão é o país em que o senhor mais se apresentou. O que explica essa admiração dos japoneses pela Bossa Nova?
Menescal – Essa é a pergunta que ouço há 30 anos, desde que comecei a viajar para lá, e os motivos são vários. Os portugueses andaram por lá e muitas palavras vêm do português. Claro que o japonês pega a palavra e fala de outro jeito: eles me chamam de “Menescaro”. É a coisa do “L” que vira “R”. “Peixe”, por exemplo, é “sakana”. Tem a coisa do “né”. Enfim, o nosso som é possível para eles. E eles são muito sensíveis. Talvez eles também tenham gostado do swing da Bossa Nova porque a música deles é muito matemática. Mas não há uma razão muito clara.
PB – Quantas vezes o senhor já esteve no Japão?
Menescal – Mais de 30. Vou todo ano. Neste ano, irei duas vezes. Adoro a comida japonesa, as pessoas, a educação.
PB – Hoje, o senhor vê algum movimento novo na música brasileira?
Menescal – Não vejo. E quero ser muito sincero: não vejo nem em nós, da Bossa Nova. Estive com o compositor e instrumentista Marcos Valle recentemente. Ele me mostrou uma música nova linda e a minha reação foi: “que música boa, Marcos, depois me ensina”. Mas aí eu perguntei a ele: “você se lembra de quando me apresentou Preciso Aprender a Ser Só? Eu gostei tanto que me atirei ao chão, como aconteceu com várias músicas do Tom Jobim”. Por que isso não acontece mais? Porque o novo já foi. Roberto Carlos foi novo. A Tropicália não foi um novo, foram vários novos. O novo também foi o povo da periferia que descobriu o hip-hop. Mas cada novo tem a sua duração. O tempo é que diz. Mas hoje em dia não vejo nada desse tipo.
PB – O que o senhor ouve atualmente?
Menescal – Estou ouvindo cada vez mais jazz. Mas tenho pouco tempo para ouvir música nova porque trabalho muito. Uma vez, falei para o Tom: “não sei como você pode ir todo dia para o bar à tarde”. E ele respondeu: “você trabalha demais mesmo” [risos]. Fico muito nas minhas tarefas. Vou fazer um show sobre o Lupicínio Rodrigues e preciso preparar o concerto. Então, estou ouvindo Lupicínio há um mês. Acho que não ouço rádio há 30 anos. De televisão não gosto muito, mas de vez em quando assisto. Esse pessoal do sertanejo universitário está fazendo algo bem produzido, como nós nunca fizemos. Hoje, precisa ser assim para aparecer. Não pode só pegar dois violões e pronto. Mas isso me deixa meio agoniado, tudo vai ter que ser assim agora.
PB – Vivemos um período de massificação da cultura sem precedentes. Qual é a sua opinião sobre isso?
Menescal – Estou sofrendo. Mas é o fim de um ciclo. O que eu vejo, pela minha experiência no Grammy, é que a música é cada vez mais uma trilha para o visual. O Ricky Martin, que canta bem e é preparado, fez um número com 30 pessoas do Cirque du Soleil no palco. Enquanto ele cantava, eu me esqueci dele. Talvez este novo século vá se definir como um tempo da estética, do cenário. Acho que a música sozinha vai ser difícil. O Youtube tem um pouco disso.
PB – O senhor fez uma parceria com Andy Summers, guitarrista do [grupo inglês de rock] The Police, que resultou no DVD United Kingdom of Ipanema. Como isso aconteceu?
Menescal – Um dia, a minha amiga e cantora Cris Delanno me mostrou a música Roxanne, com o Sting, mas não achei legal. Depois, ela me enrolou e me mostrou uma gravação do George Michael e eu disse: “Essa é boa”. Então, resolvemos gravar e eu fiz uma terceira versão. O Andy Summers ouviu e, quando veio ao Rio de Janeiro, disse que queria conhecer a pessoa que tinha feito o arranjo. Fomos almoçar, mas o Andy é muito sério e o papo não fluiu muito. Depois, seguimos para o meu estúdio e ele me perguntou se eu não queria fazer um projeto do The Police em Bossa Nova.
PB – O som do The Police o agrada?
Menescal – Não muito. Mas eu reconheço a eficiência deles, como eles ensaiaram. Mas é como ir ao circo: você vê aqueles malabarismos todos, mas, depois que sai, esquece. Então, pensei: pego umas quatro músicas do The Police e preparo. O Andy também quer muito tocar coisas nossas, daí ele faz uma parte e eu faço a outra do show. Estreamos em São Paulo e o público gostou muito. Ele adorou também. Então, o Andy me perguntou: “por que a gente não faz um DVD? Mas só daqui a um ano”. Na época era segredo, mas eu entendi depois: ele se reuniu com o The Police e foi para uma última excursão. Cada um ganhou milhões de dólares. Depois de um ano, ele voltou para fazermos o DVD. Mas eu brinquei com ele na gravação e disse: “o Andy ficou um ano em turnê com o The Police e agora veio ganhar um dinheirinho aqui com a gente” [risos]. É um universo diferente. Ele ficava de mau humor por causa do trânsito de São Paulo, porque o motorista não falava inglês. Fizemos o show, foi muito bom, mas não temos uma parceria.
PB – O senhor também tem uma carreira sólida como produtor musical. Inclusive, foi diretor artístico da gravadora PolyGram por quinze anos. Qual é a peculiaridade desse tipo de trabalho?
Menescal – Há vários tipos de produtor musical. Tem aquele que comanda, meio ditatorial. Eu penso que só tenho que dar condição para que o artista faça direito sua arte. Por exemplo: logo de início fiz um disco do Chico Buarque – que é um sujeito difícil, muito reservado. Ele passou de 30 mil discos vendidos para 300 mil com o álbum Construção [1971]. Perguntei o que ele tinha de material e ele respondeu: “Tem música que não pode [ser gravada] porque tem sete minutos, e com mais de três minutos não toca na rádio”. E eu respondi: “É verdade, mas pode ser que de hoje em diante dê certo”. O Chico queria uma orquestração porque ele dizia que Construção, música que dá título ao disco, parecia um cinema. Então, chamei o maestro Rogério Duprat. A própria gravadora disse que eu estava maluco, mas era minha batalha e eu tinha firmado um compromisso com o Chico. E Construção estourou no rádio com seis minutos e meio.
PB – O senhor já trabalhou com praticamente todos os nomes consagrados da música brasileira. Falta alguém?
Menescal – Boa pergunta. Essa ninguém fez. Não consegui fazer um disco com a Marisa Monte. Com ela, faria um disco bacana, tenho certeza. Uma vez, comentei com a Marisa: “no dia em que você quiser fazer um disco de 2 milhões [de cópias vendidas], você faz. Tenho um disco seu que é o melhor. Selecionei faixas de diversos de seus álbuns e o pessoal que vai lá em casa adora”. Para mim, o disco tem que ter uma identidade: “cheguei do trabalho, vou ouvir e tomar um uísque”. O outro é para festa? Então, é outra coisa. É como eu penso. Tem gente que raciocina diferente: o disco tem que ter mil novidades. Já eu detesto. Também tenho um feeling com a Maria Gadú – ela é preparada, canta e compõe bem.
PB – De todos que o senhor produziu, sua relação com Emílio Santiago foi especial. Ele foi um dos maiores cantores brasileiros?
Menescal – Para mim foi o maior. Uma vez, eu estava produzindo a Joyce e chamei o Emílio para fazer uma participação. Quando ele soltou a primeira nota, caiu todo mundo para trás. Ele soltou um grave que fez tremer as caixas de som. Impressionante. Ele trabalhou comigo dez anos e nunca vendeu disco. Eu o chamava de “Doctor No”. Quando eu perguntava “Emílio, que tal gravar essa música?”, ele sempre respondia: “não”. Era difícil. Quando saí da PolyGram, saíram com ele. Aí, tive a ideia da Aquarela Brasileira, em 1987. Chamamos o Emílio e, a princípio, ele não quis. “Pode me dar uma semana?”, ele perguntou. “Dou um dia”. Ele topou e gravamos o disco, exatamente como eu pensava. Trabalhei muito em cima dele. Emílio tinha uma voz maravilhosa, mas era muito cru. Consegui abrir a cabeça dele. O primeiro da série vendeu 850 mil cópias. No total, fizemos sete.
PB – O que lhe dá mais prazer: compor e tocar ou produzir?
Menescal – Eu me sinto melhor como produtor. Adoro guitarra, mas nunca vou ser um grande guitarrista. Sou canhoto, mas toco do lado convencional. Então, tenho dificuldades que nunca serão vencidas. Há um mês, estou estudando com um professor, e hoje só toco em shows. Como compositor, tenho facilidade. Se eu te falar “vou fazer uma música agora”, eu pego e faço. Mas, francamente falando, como produtor, sinto que estou no lugar certo.
PB – Quais são seus planos?
Menescal – Eu não faço planos. Nunca fiz. No Grammy, minha mulher perguntou: “você não vai preparar um discurso?” Eu respondi: “que discurso? Eu nem sei como é o prêmio”. Eu planejei estar com Andy Summers? Nunca. As coisas se abrem muito para mim. Acho até que estou abusando. Preciso tomar um certo cuidado [risos].