Postado em 11/05/2014
Por: LUIS DOLHNIKOFF
A cidade de São Paulo parece ter uma relação ainda mais difícil com a poesia do que com o samba (do qual foi, por muito tempo, considerada o “túmulo”). Sim, São Paulo foi o berço do modernismo e do concretismo, movimentos poéticos urbanos por excelência, e também a origem de poetas como Mário e Oswald de Andrade. Mas apesar de títulos como Pauliceia Desvairada, do primeiro, ou de poemas como “Cidade City Cité”, do concretista Augusto de Campos, São Paulo tem escapado às tentativas mais sistemáticas de poetizá-la. Do mesmo modo como é – ou era – fácil cantar o Rio de Janeiro, parece quase impossível “cantar” São Paulo. O próprio verbo não se aplica. Ninguém ama São Paulo como um carioca ama o Rio: ou seja, sem asperezas, sem atritos, como numa canção bossa-nova. Se os órgãos que comandam a relação do carioca com sua cidade são o coração e os olhos, no caso do paulistano, são o cérebro e as mãos. O Rio se contempla, São Paulo se enfrenta. Parodiando Euclides da Cunha, São Paulo não é para amadores.
O poeta paulistano Régis Bonvicino (1955) iniciou sua carreira literária em 1975, com o livro Bicho Papel, seguido de Régis Hotel (1978) e Sósia da Cópia (1983). Desde então, consolidou-se como um dos mais importantes nomes da poesia brasileira contemporânea. Mas se isso é notório (Bonvicino recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia em 1991 e é um dos poetas brasileiros mais presentes no circuito poético internacional), menos conhecido é o fato de que, ao longo dos anos, tornou-se o poeta por excelência da cidade. Ou melhor, das cidades: os poemas de seu livro mais recente, Estado Crítico (São Paulo, Hedra, 2013), enquanto têm São Paulo como sua principal personagem, também visitam, com olhos críticos, antiturísticos, Santiago, Valparaíso, Nova York, Barcelona, Londres, Paris, Macau e Hong Kong. Ou seja, o mundo urbano contemporâneo.
São Paulo é, todavia, como uma espécie de cidade-síntese das cidades da época – que são, por sua vez, a própria síntese da época –, aquela que serve de ponto de partida e de chegada para os poemas de Estado Crítico.
Em seu texto de contracapa, o consagrado poeta norte-americano Charles Bernstein refere-se a Régis Bonvicino como “flâneur do século 21”, com suas “duras narrativas do dia a dia”. Já o crítico e professor de literatura da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Alcir Pécora, no texto de orelha, acrescenta: “voyeur da atividade caótica das coisas”. Se o flâneur é quem, flanando, atravessa a cidade, o voyeur é aquele que a percorre com seu olhar agudo. Portanto, a soma do flâneur com o voyeur resulta num observador sistemático, como um naturalista no meio ambiente natural. Com a diferença de que, neste caso, em vez do meio natural, o observador sistemático se volta para o meio urbano.
Rede de conexões
As cidades são, hoje, entrepostos de trânsito: trânsito de tudo, vastos nós na vasta rede de conexões que encerra o planeta. O mundo se infiltra e se filtra em seus interstícios, como a água de uma enchente na boca de um bueiro, trazendo, amontoando e deixando para trás todo tipo de resíduos: materiais, simbólicos, industriais, históricos, sociais, biológicos, internacionais, nacionais, locais. Daí a lista realista desse poema poder incluir a impossibilidade factual de haver gaivotas na Avenida Paulista (pois são aves marítimas). As cidades são os desaguadouros de um mundo transbordante: o poeta vê a cidade e nela entrevê o mundo.
A construção e o refinamento do instrumental poético de Régis Bonvicino a fim de abordar seu tema difícil sem qualquer facilitação vêm se incrementando há décadas, de maneira particularmente sistemática a partir de 33 Poemas (1990), passando por Outros Poemas (1993), Céu-eclipse (1999), Remorso do Cosmos (2003) e, notadamente, Página Órfã (2007), para afinal fornecer os meios e os modos acionados neste Estado Crítico a fim de realizar, com crueza e acuidade, a captura poética do mundo urbano contemporâneo.
Um mundo “pós-utópico” e “pós-teórico”, que não pode mais ser apreendido, no sentido de ser descrito, nem pelos velhos modelos ideológicos, nem pelas velhas molduras teóricas. Pois ao contrário do “fim da história” anunciado prematuramente no início do século 21, em consequência do fim da Guerra Fria, trata-se, agora, de um mundo de pura história, ou de “história sem pele”, pois esfolada dos aparatos explicativos da antiga tradição racionalista. E, também, de uma história “estagnada”, imersa em um eterno presente, depois de perdido o motor futurista das velhas utopias. É, enfim, essa história do presente, esfolada e “estagnada”, que se oferece ao olhar indecoroso – porque não indiferente – do “naturalista” poético do caos contemporâneo em seu “laboratório”, a cidade.
A cena é uma estrada perto de um aterro: “urubus sobrevoam o aterro”. O “pintor-verdadeiro” é um pássaro, o “músico-da-mata”, outro, a vítima “bombeada” pelas moscas no final é o cachorro atropelado no início, e o “Jaguar” que fecha o poema é o carro. Portanto, em um nível de construção – e de leitura –, o poema é minuciosamente realista, como, aliás, o restante do livro. Por outro lado, tudo soa nebuloso ou “fabuloso”, nada parece fazer um sentido exato, enquanto vários termos criam uma rede de relações semânticas que só existem no poema, não na realidade exterior a que ele se refere. Daí a afirmação inicial de que “essas palavras são fictícias”, apesar de realistas. Pois são, ao mesmo tempo, realistas e fictícias, no sentido de criarem sentidos fictícios, ou, mais precisamente, não-realistas. “O pintor-verdadeiro não existe”, não porque não exista um pássaro com esse nome, mas porque inexiste o artista “verdadeiro”, capaz de pintar objetivamente a realidade – e também de manter a sua aura artística, como sugerido pelo fato de o nome de um dos maiores pintores modernos, Matisse, aqui virar uma marca de carro. Tudo se mistura, tudo se impregna: nada mantém seu sentido original, ou “real”. “A cegonha preta é uma lenda”, mas existe, e remete a uma cor; a onça é “pintada”; o pássaro seguinte é o pintassilgo, que pousa num “ipê-amarelo” para se aquecer, assim como um outro pintor moderno, o expressionista alemão Otto Dix (1891-1969), ao destruir seus próprios quadros (“Dix queimava seus quadros/ no inverno”). O poema, em suma, ao mesmo tempo em que “pinta” minuciosamente uma cena, afirma a impossibilidade da pintura “verdadeira”, ou realista, enquanto se enche de “pistas” que remetem à pintura. Seu título, “Pistas (1)”, refere-se, assim, tanto às pistas perto de um aterro cercado de árvores e pássaros em que um Citroën atropela um vira-lata, quanto às pistas, às indicações que o próprio poema dá de se tratar de outra coisa: o fim da arte no mundo pós-industrial.
A recolha de imagens do caos contemporâneo é impregnada por metáforas radicalmente inusitadas, que, por sua vez, dialogam com a estranha sonoridade de rimas mais do que raras. Exemplos: “a nuvem se arma”, “o guard-rail enferruja a chuva”, “uivam lobos de pelúcia”.
Apesar de tudo, ou seja, de todo o esforço de uma lucidez aguda e de todo o moderno instrumental poético mobilizado, o caos não é organizável, nem pode ser eficientemente descrito. Tudo que cabe, ou que resta, é a recolha de seus cacos, ou seja, uma arqueologia poética do presente. Por exemplo, da cidade de Hong Kong: “É a eternidade e a sinceridade/ na traseira de um ônibus/ É o terraço do antigo edifício do Bank of China/ à noite”.
Nas palavras de Pécora, os poemas de Estado Crítico “ocupam as vias mais hostis da metrópole”. E ao ocuparem suas vias mais hostis (recusando, portanto, o grande parque temático do turismo internacional), não se ocupam somente delas, mas do próprio mundo contemporâneo.