Postado em 04/07/2014
Por: JOSÉ PAULO BORGES
São 1.500 metros quadrados de área construída, aproximadamente, onde se destaca um galpão de fachada rústica. Em seu interior, as cadeiras e mesas ao redor de um amplo salão são de madeira. Ao fundo, à direita, sofás com almofadas de couro dão um ar de discreta elegância ao ambiente despojado. Casais voluteiam no salão. A bombacha, a guaiaca (cinto largo de couro), as botas e o lenço no pescoço compõem a indumentária básica dos homens. Saias e vestidos com a barra encostando no dorso do pé e blusas com mangas até o cotovelo ditam o tom entre as mulheres. Nada de decotes, calças jeans, botas country e, muito menos, chapéu texano. Danças do folclore gaúcho como o balaio, a chimarrita, o maçanico e o pezinho, e ritmos como a polca, o vanerão e o xote, reinam absolutos. Funk, duplas sertanejas, “pancadão” e modismos afins não passam pela porta, são heresias. Pode começar assim a descrição do Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Tarumã, no município de São Gabriel, região da campanha do Rio Grande do Sul, próximo à fronteira com o Uruguai, a 320 quilômetros de Porto Alegre.
“Os CTGs foram criados para demonstrar as raízes históricas, os costumes, a maneira de ser e a sociabilidade do povo gaúcho. A finalidade é perpetuar as manifestações da cultura e tradições gaúchas com a maior precisão possível. Onde há um CTG sempre haverá um espaço destinado ao culto das tradições gaúchas”. A definição da cientista social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Caroline Kraus Luvizotto, cai como uma luva quando se trata de definir o CTG Tarumã, entidade tradicionalista fundada no dia 16 de outubro de 1963 e embalada desde o berço por dois ícones da cultura gaúcha: o apego ao cavalo e o amor à dança folclórica.
No início dos anos 1960 havia na cidade de São Gabriel um grupo de jovens apaixonados pelas danças do folclore gaúcho. As moças e os rapazes se apresentavam em diversas localidades, sempre com sucesso, mas sequer tinham um espaço para os treinos. “O pessoal do grupo ensaiava em suas próprias casas, nos clubes da cidade ou em locais emprestados por ‘peões’ e ‘prendas’ de boa vontade”, conta a estudante Laura Jaskulski Capiotti, 22 anos, autora do estudo “Do Sonho à Realidade”, em que resume a história do CTG Tarumã.
Na mesma época, segundo Laura, em meio às escaramuças de dois grupos políticos rivais que se distinguiam pelos lenços brancos e vermelhos usados no pescoço, outros jovens da cidade também buscavam seu espaço. O CTG Caiboaté, existente desde 1953, adotava a cor vermelha, mas isso pouco importava aos participantes, que queriam mesmo era desfrutar do departamento de hipismo da entidade, sem se importar com questões políticas. “Houve uma dissidência, os dois grupos resolveram unir hipismo e tradicionalismo e, juntamente com outros cidadãos, fundaram o CTG Tarumã”, explica Laura. “Tarumã é o nome de uma árvore nativa, de flores amarelas, que nasce e vive na beira de rios e córregos”, prossegue a estudante. Para marcar seu distanciamento das futricas políticas, os fundadores da entidade não tiveram dúvidas: elegeram o amarelo como a cor do lenço e símbolo do novo CTG. “O amarelo também está presente nas bandeiras do Brasil e do Rio Grande do Sul”, enfatiza a escritora.
Prêmio em Portugal
No início, o CTG Tarumã não tinha nada, nem sede própria. Era uma instituição, pode se dizer, fantasma. Isso durou até janeiro de 1968, quando foi inaugurado o galpão de festas, uma construção precária, feita de pau a pique, mas que testemunhou as maiores proezas da associação. “Foi nosso ano de glória. Vencemos a competição artística de danças típicas do 7º Rodeio Crioulo Internacional de Vacaria, evento que acontece de dois em dois anos e é considerado a maior festa tradicionalista da América Latina”, relembra Laura, que em 2008 recebeu o troféu RS Mulher Farroupilha, instituído pelo governo gaúcho com o objetivo de incentivar “mulheres que desenvolvem trabalhos culturais na música, no folclore e nas artes”. “Por causa disso, fomos convidados a representar o Brasil na Feira Internacional de Ribatejo, em Santarém, Portugal. Lá, a delegação do Tarumã foi premiada, ganhou uma medalha e uma viagem à Espanha, país que no mês de maio realiza a Festa de San Isidro, padroeiro da capital Madri”, orgulha-se a estudante. A recepção do grupo em São Gabriel no retorno da Europa foi apoteótica. Era como se os rapazes e moças com o lenço amarelo do CTG Tarumã no pescoço tivessem conquistado a Copa do Mundo.
A estrutura e o funcionamento de um CTG são originais. Como se trata de uma entidade que objetiva, basicamente, a preservação da cultura e dos costumes do campo gaúcho, e a transmissão desses valores através das gerações, a nomenclatura utilizada busca reproduzir os nomes usados originalmente nas comunidades rurais. Assim, a diretoria é denominada patronagem; o presidente, o vice-presidente e o secretário são chamados respectivamente de patrão, capataz e sota-capataz. Já o orador é o agregado das falas e o tesoureiro, o agregado das pilchas (palavra que designa a indumentária gaúcha). Para conseguir maior afinidade com a cultura do campo, os conselhos consultivo e deliberativo foram renomeados para conselho de vaqueanos, e os diversos departamentos são chamados de invernadas. Os diretores das invernadas são denominados posteiros, os sócios efetivos do sexo masculino são os peões e do feminino, as prendas.
Tem mais: reunião administrativa, em especial da patronagem, é charla (conversa); reunião de confraternização dos sócios entre si ou com a patronagem para prestação de contas, troca de informações e esclarecimentos é chimarrão; reunião de trabalho é lida; as excursões oficiais dos CTGs são designadas por tropeadas; a pessoa encarregada de zelar pela conservação e manutenção das dependências do centro é o peão caseiro. Essa nomenclatura consta na Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), órgão que disciplina e orienta as atividades de mais de 1.400 CTGs espalhados no estado gaúcho e contam com a participação de mais de um milhão de pessoas.
“Os CTGs são o resultado de uma seleção material e simbólica que não tem o objetivo de resgatar o passado, mas organizar a produção de uma memória sobre os gaúchos”, destaca a cientista social Caroline Kraus, autora de uma tese de doutorado sobre as tradições gaúchas. Tudo isso, ela conta, “a partir de um conjunto de símbolos e mitos que podem servir como referência para o futuro, preservando uma determinada conceituação de cultura gaúcha e a defesa de demais tradições”.
Chimarrão e churrasco
A associação aos CTGs é livre. Não é preciso ter nascido no Rio Grande do Sul para aderir a essas entidades, bastando que haja identificação com a cultura gaúcha. É o caso do desenhista industrial Valmir Gomes. Carioca, filho de nordestinos e sem nenhum parentesco no sul, ele é o criador do site O Cariúcho & o Tradicionalismo, em que noticia atividades dessas associações sediadas tanto no Brasil quanto no exterior e informa sobre a cultura do Rio Grande do Sul. “Nasci no Rio de Janeiro, do qual muito me orgulho, porém Deus me presenteou com alma gaúcha e é o que me basta para ser feliz”, ufana-se Gomes.
A sede do CTG é chamada galpão “crioulo” (nativo). A construção é planejada propositadamente para apresentar uma aparência rústica e, assim, lembrar uma antiga fazenda de criação de gado. Nela são realizadas atividades como bailes e ensaios de grupos de danças, por exemplo. É lá também que os associados se reúnem para contar “causas”, tomar chimarrão e disputar animados torneios de bocha, esporte trazido ao Brasil pelos imigrantes italianos muito popular nessas entidades. Mas as atividades em um CTG são bem mais amplas e diversificadas. Carreteiros do Sul, Rincão da Alegria, Velha Carreta, Heróis Farroupilhas, Adaga Velha, Rancho da Saudade, Sentinela da Querência. No interior de CTGs, como estes, agita-se um mundo onde a cultura e a tradição gaúchas se reproduzem sem cessar. “Pode-se dizer que a transmissão das tradições entre os gaúchos está determinada a partir da constituição social do grupo como um todo, e pode acontecer pelo mecanismo da vida coletiva e pela herança cultural passada de geração em geração”, destaca Caroline em sua tese de doutorado.
A propagação dessa herança cultural às gerações que se sucedem é coisa séria nos CTGs e produz resultados que ultrapassam o espaço ocupado pela associação. Em 1996, Liliane Pappen, prenda adulta de um CTG da cidade de Venâncio Aires, a 130 quilômetros de Porto Alegre, desenvolveu um projeto para incentivar o consumo de chimarrão entre os alunos das escolas do município. Dois anos mais tarde o projeto foi encampado por uma indústria de erva-mate local e, em 2004, com base na ideia, foi criado o Instituto Escola do Chimarrão, uma organização não governamental que desenvolve atividades de culto às tradições rio-grandenses e, em especial, de difusão de um dos principais símbolos gaúchos. Eventos denominados “seminários campeiros” também são usuais em centros tradicionalistas. Nessas ocasiões, adultos e até mesmo crianças recebem orientações sobre cuidados com o cavalo, por exemplo, e sobre o modo correto de preparar o chimarrão e assar um autêntico churrasco gaúcho.
Todavia, é no evento gauchesco denominado Encontro de Artes e Tradição (Enart), realizado anualmente no período de agosto a novembro, em Santa Cruz do Sul, a 150 quilômetros de Porto Alegre, que o movimento tradicionalista gaúcho mostra toda a sua força. Considerado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como “o maior festival de arte amadora da América Latina”, o objetivo do evento, organizado pelo MTG, é promover a valorização e divulgação dos usos e costumes rio-grandenses por meio de competições artísticas entre os CTGs de todo o estado. Fazem parte do torneio mais de vinte modalidades, despontando entre elas declamação masculina e feminina, conjuntos instrumental e vocal, canto masculino e feminino e danças.
Rotas e esfarrapadas
A competição é dividida em três etapas: regional, inter-regional e final, esta é disputada em Santa Cruz do Sul, por cerca de 2 mil competidores. Durante a festa, a cidade de 124 mil habitantes recebe uma população flutuante de mais de 60 mil pessoas. Elas ficam acampadas no Parque da Oktoberfest, onde se realiza, todos os anos, a segunda maior festa alemã do país, depois da Oktoberfest de Blumenau, em Santa Catarina.
Durante o Enart, o parque de eventos se transforma numa cidade de lona e plástico só de CTGs, habitada por famílias inteiras que se deslocam em caravanas de todas as partes do estado, munidas apenas com a garra para torcer pelos representantes de suas entidades e o necessário para se manter durante os três dias do evento. Para muitos, é a volta às origens do campo, à vida simples, mas nem por isso são dispensados os símbolos da modernidade: carregam consigo televisores, aparelhos de micro-ondas, celulares e notebooks. A maioria absoluta das pessoas veste roupas típicas gaúchas e o cheiro de churrasco espalha-se no ar.
Os participantes das competições são na maioria jovens entre 14 e 25 anos que se prepararam o ano inteiro no CTG de sua cidade. As provas mais aguardadas são as de danças tradicionais. No ano passado, o grande vencedor nesta modalidade foi o CTG Ronda Charrua, da cidade de Farroupilha. Com uma coreografia ousada, o Ronda Charrua levou dois navios de madeira ao palco do Enart para contar a história de amor entre a brasileira Anita e o guerrilheiro italiano Giuseppe Garibaldi, durante a Revolução Farroupilha. A plateia foi ao delírio.
As primeiras iniciativas de exaltar a cultura e a tradição gaúchas aconteceram na Sociedade Partenon Literário, instituição criada em 1868, em Porto Alegre, considerada a principal agremiação cultural do Rio Grande do Sul no século 19. A associação participava de campanhas abolicionistas, propagava os ideais republicanos e realizava debates com temas como pena de morte e feminismo. Os intelectuais do Partenon Literário também discutiam em suas reuniões a Revolução Farroupilha, movimento de caráter republicano, conhecido como Guerra dos Farrapos, que durante quase dez anos – de 20 de setembro de 1835 a 1º de março de 1845 – manchou de sangue a então província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Apesar do nome, os “farrapos” não eram bandos de maltrapilhos. A denominação, segundo alguns estudiosos, teve origem nas roupas que os rebeldes vestiam – muito rústicas e que foram ficando rotas e esfarrapadas, após anos de conflito. A expressão farroupilha também foi utilizada no Rio de Janeiro, antes mesmo da eclosão do confronto no sul do país, para designar grupos de liberais radicais que pretendiam o fim do regime monárquico.
Motivo de chacota
Em 1898, nos primórdios da República, foi criada a primeira agremiação tradicionalista do Rio Grande do Sul, o Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, entidade que promovia atividades bastante parecidas com as realizadas atualmente pelos CTGs, como festas, desfiles de peões e eventos musicais típicos. O objetivo era resgatar as tradições esquecidas ou deixadas de lado. A iniciativa impulsionou a criação de muitas entidades tradicionalistas por todo o estado.
A partir da década de 1940, contudo, houve uma mudança de cenário. A presença maciça da cultura norte-americana, veiculada principalmente nas telas do cinema, influenciou profundamente o comportamento e os hábitos dos brasileiros. Em Porto Alegre, e mesmo em cidades do interior, sair à rua vestido com a indumentária campeira virou motivo de chacota. Não era de bom-tom ser tradicionalista. O amordaçamento de tudo quanto cheirasse regionalismo imposto pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas – ironicamente, um rio-grandense – e a proibição de símbolos locais, como brasões e hinos, também contribuíram para jogar na vala comum do ostracismo quaisquer manifestações de orgulho gaúcho.
“Pura pêta!”, reagiu um punhado de jovens estudantes com idade de 16 a 20 anos, capitaneados, entre outros, por Paixão Côrtes, Barbosa Lessa e Glaucus Saraiva (também conhecido como Glauco Saraiva), respectivamente o idealizador, o intelectual e o organizador de um movimento que identificava na herança farroupilha e no regionalismo as formas de expressão cultural e literária autênticas do Rio Grande do Sul. Essa manifestação de pura rebeldia culminou na criação do primeiro Centro de Tradições Gaúchas: o 35 CTG.
O movimento eclodiu no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, o “Julinho”. Os jovens organizaram a primeira “Ronda Gaúcha” – embrião da atual Semana Farroupilha – que aconteceu entre 7 e 20 de setembro de 1947, unindo festivamente a data da Independência do Brasil ao dia do início das comemorações da Revolução Farroupilha. Houve muita música, poesia, fandango (o arrasta-pé gaúcho), concursos e discursos. A investida teve enorme êxito e, em 24 de abril de 1948, um grupo de jovens estudantes fundou o 35 CTG, nome dado em homenagem ao ano de início da Revolução Farroupilha, 1835. A iniciativa detonou um forte sentimento tradicionalista e logo dezenas de entidades semelhantes surgiram por todo o estado.
A expansão dos CTGs para fora do Rio Grande do Sul foi sendo construída com a emigração de levas de gaúchos em direção a novas fronteiras agrícolas. Segundo dados da Confederação Brasileira de Tradição Gaúcha (CBTG), existem hoje em torno de 3 mil CTGs espalhados pela maioria dos estados brasileiros. Há também entidades gauchescas no Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, Israel e Portugal.
Com apenas cinco anos de vida, Bernardo Motta de Freitas ainda não conhece essas histórias. Mas o pequeno já decidiu. No desfile de 20 de setembro deste ano do Centro de Tradições Gaúchas Tarumã, em comemoração ao aniversário da Revolução Farroupilha, Bernardo vai tomar conta, sozinho, das rédeas de Manchinha, seu cavalo. “Não vou mais de cabresto”, comunicou o menino ao seu avô, Fernandes Motta, que, no ano passado, conduziu, com cuidado, o pequeno cavaleiro e sua montaria pelas principais ruas da cidade de São Gabriel. Este ano, lá estará o neto de Fernandes, com as rédeas nas mãos. Nada de “cabresto”. Em volta do pescoço, com muito orgulho, Bernardo vai usar o lenço amarelo. Símbolo do CTG Tarumã.