Postado em 04/07/2014
Por: JOSÉ PAULO BORGES
A Tenda da Linguiça, no centro da cidade de Pomerode, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, a 170 quilômetros de Florianópolis, à primeira vista não tem nada de especial. As geleias de frutas de época, colhidas no pé – jabuticaba, laranja, manga –, que fazem sucesso entre os fregueses, foram preparadas pela dona da barraca, Arnélia, 57 anos. As linguiças, que dão nome ao estabelecimento, os queijos, os salames e a variedade de doces e embutidos foram produzidos por pequenos empreendedores locais reunidos na Associação dos Produtores de Alimentos Artesanais de Pomerode (Aspaap). Nenhuma novidade, em comparação com milhares de pequenas outras tendas de alimentos espalhadas pelo Brasil.
Basta observar, porém, como Arnélia e seu marido, Milton Konell, 64 anos, se comunicam com a clientela para notar uma originalidade. Na Tenda da Linguiça o atendimento é “trilíngue”. Aqui, o português, o alemão e o pomerano (Pommersch Plattdeutsch), dialeto trazido pelos imigrantes alemães originários da Pomerânia (território entre Alemanha e Polônia), que colonizaram a região, também conhecida como Vale Europeu, são utilizados o tempo todo e com a maior naturalidade (os pomeranos que chegaram ao Brasil em meados do século 19 aportaram nos estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul). “Fui criada falando o alemão e o pomerano. Só na escola é que fui aprender o português”, conta Arnélia com acentuado sotaque alemão, uma característica entre os 28 mil habitantes do município (dados IBGE 2010), a grande maioria de ascendência teuto-brasileira.
Na realidade, em Pomerode o que mais se ouve é uma mistura do idioma português com um alemão popular e respingos do pomerano – que resiste bravamente ao tempo graças à tradição oral, mas pode estar a caminho da extinção por carência de uso pelas gerações mais jovens. Surgem então nas conversas do cotidiano palavras como “prefekt”, para designar o cargo de prefeito, quando o termo correspondente no idioma de Johann Wolfgang von Goethe é Bürgermeister; bem como pontos comerciais e empresas anunciadas na fachada como: Restaurante Colonial WunderWald, Padaria Schluter, Hotel Schroeder, Pousada Oma Helga e Velas Artesanais Guenther, entre dezenas de outros, o que dá à cidade ares de uma pequena comunidade do interior da Alemanha adaptada ao clima tropical brasileiro.
Traços da cultura germânica estão espalhados por todos os lados: nos bolos “cuca”, nas cervejas artesanais, nos clubes de caça e tiro, nos cultos luteranos rezados em alemão, nos festejos populares, nos grupos de danças folclóricas, nos chalés construídos segundo os ensinamentos de uma antiga técnica europeia denominada enxaimel e nos marrecos recheados. Porém, é na economia e na educação que se percebe, claramente, o alinhavo germânico na costura do tecido social de Pomerode – município emancipado da vizinha Blumenau, em 1959, e que orgulhosamente se autodenomina “a cidade mais alemã do Brasil”.
O turismo em alta
Em pouco mais de cinco décadas de existência, Pomerode alcançou um nível de desenvolvimento social e econômico surpreendente, o que proporciona à sua população um padrão de qualidade de vida acima da média no país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município desfruta do índice de alfabetização de 98,2% dos habitantes, sendo que 97,4% da população entre 6 e 14 anos está matriculada na escola. Aparece na lista dos 20 melhores municípios em arrecadação de impostos de Santa Catarina e, para isso, conta com um parque industrial onde se destacam empresas de artesanato, metal mecânica, plásticos, porcelana, de produção de cimento, de produtos em madeira e de vestuário, e além de empresas do setor de alimentos (chocolate e queijo fundido) e de transporte.
De acordo com pesquisa elaborada a partir do “Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2013” – divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) –, entre os mais de 5 mil municípios brasileiros, Pomerode situa-se na 128ª colocação em termos de desenvolvimento humano municipal (IDHM). Com um índice tão elevado, da ordem de 0,780, o município está bem próximo de atingir um nível de desenvolvimento “muito alto”: acima de 0,800, numa escala que vai de 0 a 1 (“0” significa nenhum desenvolvimento humano. “1” representa desenvolvimento humano total). O IDHM é composto por três indicadores: acesso ao conhecimento (educação), padrão de vida (renda) e vida longa e saudável (longevidade).
Outro dado social importante no qual Pomerode se destaca diz respeito ao Bolsa Família. Entre as 30 cidades brasileiras que menos dependem do benefício, Pomerode posiciona-se na 12ª colocação. Segundo dados de 2013, publicados pela revista “Exame”, em Pomerode um chefe de família para cada 231 habitantes recebe o Bolsa Família. A média do Brasil é de um benefício desses para cada 14 habitantes.
De uns anos para cá, uma atividade econômica vem se revelando no município, o turismo. No início dos anos 1980 havia na cidade alguma movimentação nessa área, mas incipiente e em pequena escala. Então, nos primeiros anos daquela década, a administração local criou o Serviço Municipal de Cultura e Turismo, e uma das primeiras tarefas do órgão foi a realização de uma pesquisa para detectar os principais traços de identidade do município. Esse estudo descobriu que, em comparação com os demais municípios de origem alemã do Vale do Itajaí, Pomerode concentra a maior quantidade de características germânicas em seu cotidiano, como o uso do idioma alemão, a conservação do dialeto pomerano e a preservação de muitos costumes trazidos pelos imigrantes. O passo seguinte foi a elaboração de um calendário turístico baseado na “germanidade” de Pomerode. Nascia então a Festa Pomerana.
A primeira festa aconteceu em 1984 e superou todas as expectativas. Evento oficial do município, que proporciona uma viagem ao passado colonial da cidade, tendo como bússola um minucioso trabalho de pesquisa histórica e consulta à memória das pessoas, “possibilitando o retorno às origens, às tradições e aos costumes alemães até então esquecidos ou abandonados pela população”, aponta a historiadora Roseli Zimmer, administradora do Museu Casa do Imigrante.
Fridas e Fritzes
A Festa Pomerana é realizada todos os anos, desde 1984, sempre em janeiro, mês em que é comemorado o aniversário de emancipação do município (dia 21), um evento animado e barulhento, na realidade, um tributo à cultura e aos costumes herdados dos imigrantes. São 11 dias de muita dança, música, chope e comidas típicas, com o traje tradicional alemão como indumentária principal entre as Fridas (mulheres) e os Fritzes (homens). Diariamente, são realizados desfiles nas ruas da cidade com alegorias e representações visuais que buscam retratar o cotidiano dos tempos de colônia. No Parque Municipal de Eventos, palco principal da festa, as cores azul e branco e o dragão vermelho, símbolos da Pomerânia, de onde veio a maior parte dos imigrantes que deram origem à cidade, se destacam.
A todo momento grupos folclóricos fazem apresentações de danças típicas daquela região germânica, da Baviera e do Tirol. Já os Clubes de Caça e Tiro são uma presença à parte. Trata-se de instituições tradicionais, enraizadas na história da cidade, que se apresentam com cores, brasão, bandeira e uniformes próprios. As rainhas e princesas da Festa Pomerana, eleitas no segundo domingo de comemorações, são escolhidas entre as representantes dessas entidades.
Pomerode também se destaca como badalado polo gastronômico. Por isso, é grande o número de visitantes que vêm à festa com a ideia fixa de comer, comer e comer. Para esses, o concurso de Delícias Caseiras é literalmente um prato cheio, acontecimento feito em homenagem às tradições culinárias dos imigrantes e repassadas de geração em geração. Mas não é só o concurso que enche de água a boca dos turistas. Nos diversos pontos de alimentação da festa, haja apetite para tanto Eisbein (joelho de porco), Apfelstrudel (folhado de maçã), mit Rotkohl (marreco recheado) e outras delícias da cozinha alemã. A Festa Pomerana evoluiu ao longo dos anos e, atualmente, assumiu a dimensão de um espetáculo a céu aberto em que o turista é induzido a se sentir-se não apenas como espectador, mas como personagem dos hábitos, costumes e tradições de uma pequena comunidade de colonização germânica encravada no Vale Europeu.
Uma outra festividade que vem ganhando relevo no calendário de eventos do município é a Osterfest, a festa da Páscoa alemã, que acontece nos finais de semana dos meses de março e abril. Uma das principais atrações é a Osterbaum (árvore de Páscoa), tradição originária da Alemanha e que é mantida pelos descendentes até hoje. Os galhos secos da Osterbaum representam a morte de Cristo, e as cascas de ovos coloridas penduradas nos galhos simbolizam a alegria da vida na ressurreição. O destaque da festa é uma Osterbaum gigante, erguida no centro da cidade, com mais de dez metros de altura e milhares de ovos coloridos pendurados em seus galhos.
A tradição de pintar casquinhas de ovos faz a alegria principalmente das crianças. A pintura é feita com guache e tintas não tóxicas, mas há famílias que usam produtos naturais, como o capim Eierkraut – de bulbo vermelho –, cascas de cebola roxa e espinafre. E na madrugada do sábado de Aleluia para o domingo de Páscoa acontece o Stüpen (serenata da Páscoa). É quando animados grupos musicais vão de casa em casa acordar os moradores para anunciar a ressurreição de Cristo, e são recebidos com muita comida e bebida.
Estado Novo
As festas que acontecem na cidade, notadamente a Festa Pomerana, além de preservar as tradições e os costumes alemães, têm o dom de resgatar o sentimento de germanidade que durante muito tempo permaneceu, conforme indica a historiadora Roseli Zimmer, “reprimidos em algum lugar da memória da população, devido à onda de xenofobia desencadeada pela Campanha de Nacionalização patrocinada pelo governo Getúlio Vargas, nas décadas de 1930 e 1940”.
Para entender essa relação entre festa e germanidade é preciso recuar no tempo, retomar os primórdios da colonização na passagem da primeira para a segunda metade do século 19. Quando os imigrantes pomeranos chegaram à região onde um dia o município ganharia vida, viram-se isolados em áreas remotas sem estrutura no sul do país. Então, a primeira coisa que fizeram foi adaptar os costumes, hábitos e tradições trazidos da Europa àquela realidade hostil. Assim, emergiu entre eles uma identidade cultural própria: o Deutschtum – o sentimento de germanidade que tinha como referência a origem comum, a ancestralidade e a herança cultural alemãs. “Os imigrantes e seus descendentes mantiveram-se unidos em uma comunidade étnica cujos valores, atitudes e comportamentos conferiram ao grupo a identidade alemã”, explica a historiadora.
Com a Campanha de Nacionalização em plena ditadura do Estado Novo, e, mais tarde, na Segunda Guerra Mundial, com o perfilhamento do Brasil juntos às nações aliadas que guerrearam contra as Potências do Eixo e da qual a Alemanha fazia parte, o Deutschtum virou uma espécie de maldição. A campanha desfraldada por Vargas via os colonizadores estrangeiros e seus descendentes como indivíduos estranhos à comunidade brasileira e impunha-se a necessidade de integração.
Aqueles anos de opressão e repressão afetaram dramaticamente os descendentes de imigrantes nascidos no Brasil. As gerações mais antigas tiveram de apreender, a toque de caixa, o português – transformado em língua obrigatória mesmo para conversas familiares mais triviais. Cumprimentar alguém na rua com um simples Guten Morgen (bom-dia) podia virar caso de polícia. Mas isso não impediu que uma memória subterrânea, cultivada na clandestinidade das famílias de ascendência germânica, fosse preservada e passada adiante, quase como um código oral.
Com o término do conflito que colocou fogo no mundo e o restabelecimento dos princípios democráticos, a vida nas comunidades de colonização alemã aos poucos foi retomando a normalidade. E a memória, silenciada por mais de 40 anos pela repressão nacionalista, finalmente voltou à tona. “Livre da mordaça, depois de um longo período de repressão o povo voltou a falar publicamente o alemão e o dialeto pomerano, e os cultos luteranos puderam ser novamente realizados na língua trazida pelos imigrantes”, resume a historiadora Roseli.
Espírito alemão
Talvez, o afloramento deste “espírito de germanidade” – agora adaptado à realidade, aos costumes e aos hábitos brasileiros – tenha como marco simbólico em Pomerode a noite de 13 de agosto de 2009. Foi quando, com muita gala, solenidade e aplausos, inauguraram o Teatro Municipal de Pomerode. Num mesmo ambiente se aglutinam e misturam múltiplas citações e referências à memória da cidade e à cultura alemã. O auditório traz o nome de Rodolfo Siewert, cidadão pomerodense com forte influência na cultura em sua época; o Espaço Cultural homenageia Hermann Gehrmann, um empreendedor, proprietário do Hotel Oásis, sinônimo de requinte na Pomerode dos anos 1950, e a praça defronte ao prédio foi batizada Marlene Dietrich, em reverência a uma das maiores artistas alemã e mundial.
O próprio nome da cidade reflete a herança germânica. É uma homenagem aos fundadores oriundos da antiga Pomerânia, várias vezes devastada por guerras e submetida à exploração estrangeira, habitada historicamente por um povo perseverante e trabalhador, com raízes no século 12. Até 1945, a Pomerânia pertencia à Alemanha, hoje ela não existe mais: com a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial parte do território foi incorporado à Polônia e o restante passou a integrar o atual Estado alemão.
Um legado importante da cultura alemã que se destaca na paisagem de Pomerode são as casas em enxaimel, um antigo método de construção em madeira, caracterizado por vigas encaixadas e os espaços vazios entre elas preenchidos com tijolos, que não utiliza pregos ou parafusos, apenas pinos de madeira. Em 1984 foi desencadeado um movimento de valorização do patrimônio enxaimel da cidade, por meio de assessoria técnica aos moradores e isenção de impostos para a preservação de moradias erguidas segundo essa técnica.
O maior núcleo de construções em enxaimel existente fora da Alemanha encontra-se em Pomerode: são mais de 240 edificações espalhadas pelo município. A maior concentração de edificações do gênero está agrupada na Rota do Enxaimel, localizada no bairro do Testo Alto. São cerca de 50 casas, algumas bem antigas, preservadas externa e internamente. O acervo está tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com a valorização do estilo, novas construções foram projetadas para apresentar uma aparência enxaimel, criando um simulacro de cidade alemã e colaborando, assim, para a consolidação da imagem de cidade turística tipicamente germânica encravada no Vale Europeu.
Para os visitantes sedentos de chope, entretanto, é na Praça Jorge Lacerda, no centro da cidade, que o verdadeiro “espírito alemão” se materializa em Pomerode. É lá que grupos de amigos se reúnem periodicamente para, conforme os cânones de antiga liturgia etílica alemã, celebrar o Stammtisch – termo que numa tradução fiel significa “mesa de tronco”. Reza a lenda que na Idade Média lenhadores bávaros cortavam a primeira árvore de uma nova área de extração de madeiras bem na altura de uma mesa, sendo que os galhos mais grossos eram transformados em bancos. Ao redor dessa mesa de tronco eles faziam suas refeições, uma comilança que se estendia até o final do dia. Com o tempo, Stammtisch passou a designar encontros de amigos em torno de uma mesa para comer e beber à farta, entre exclamações de ein prosit! (“vamos brindar!”) com as canecas erguidas.