Postado em 04/07/2014
Por: HERBERT CARVALHO
O reconhecimento da existência da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (ou, simplesmente, aids, como ficou conhecida) aconteceu em 1981, e foi comunicado ao mundo pelo Centro de Controle e Prevenção dos Estados Unidos. Em 1983, o francês Luc Montaigner (prêmio Nobel de Medicina em 2008) isolou o vírus HIV (human immunodeficiency virus), o causador da moléstia, e, no Brasil, o fundador da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), José Reis, advertiu: “Por enquanto, a aids está afetando um número relativamente pequeno de pessoas, mas com alta mortalidade. E tende a alastrar-se, seguindo, para alguns, o modelo de transmissão da hepatite B. Teme-se, por isso, que represente ameaça aos bancos de sangue”.
Palavras premonitórias naquele momento em que, no Brasil, registrava-se o primeiro caso conhecido de morte pelo HIV, do estilista Marcus Vinícius Resende Gonçalves, o Markito. Em breve, seriam contaminados em transfusões de sangue e morreriam em consequência da aids três irmãos hemofílicos: Henrique de Souza Filho, nome completo do cartunista Henfil; o sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho, e o compositor de música erudita Francisco Mário Figueiredo de Souza, conhecido por Chico Mário. E na vertente da transmissão da doença por meio de relações sexuais a primeira vítima célebre seria o ator estadunidense Roy Harold Scherer Jr., artisticamente conhecido por Rock Hudson.
As informações divulgadas pelas autoridades sanitárias dos Estados Unidos à época – de que a doença atacaria principalmente homossexuais, hemofílicos, haitianos e usuários de drogas – deram margem a um show de horrores nos meios de comunicação, que tratavam a síndrome, inicialmente, de “peste gay” ou “câncer gay”, como se ela atingisse apenas este grupo. Quando se verificaram os primeiros casos entre mulheres e usuários de drogas injetáveis, veio a reviravolta, e prostitutas e viciados passaram a ser discriminados como já ocorria com hemofílicos e homossexuais, evidenciando que dali por diante tão importante quanto o combate à doença e às suas causas seria o enfrentamento do preconceito e da ignorância que a cercaram desde seus primórdios.
Foi também na década de 1980 que Roseli Tardelli deu os primeiros passos no mundo jornalístico como repórter na Rádio Eldorado, na capital paulista, onde se especializou em entrevistas como a que fez à bordo de um helicóptero sobrevoando São Paulo com a recém-empossada prefeita Luiza Erundina, em 1989. Apresentadora dos programas Opinião Nacional e Roda Viva, da TV Cultura, ela interrompeu a carreira ascendente, em 1993, para enfrentar uma questão familiar, que logo se tornaria política: contaminado pelo HIV, o irmão Sérgio Tardelli teve o tratamento negado pela empresa administradora do seu plano de saúde, que anunciara friamente à família, em um quarto de hospital, por meio de um representante: “Nós não atendemos esse tipo de doença”.
Não atendiam, mas passaram a atender e até hoje atendem por força da decisão judicial obtida pela família Tardelli, que criou jurisprudência assegurando o direito dos portadores do HIV a terem suas despesas médicas custeadas pelos planos de saúde. A luta, porém, não foi travada apenas nos tribunais: no Viaduto do Chá e nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo sucederam-se as manifestações públicas comandadas por Roseli, que após a morte do irmão, em 1994, tornar-se-ia ativista da luta contra a aids, participando da criação da ONG Parceiros de Vida e de eventos como o I Encontro sobre Aids e Comunicação, realizado em 1998 pela revista “Imprensa”, do qual foi curadora.
“Sangrava e doía”
Considerando que a imprensa brasileira, embora tivesse superado a fase terrorista e sensacionalista, ainda tratava superficial e parcialmente o que acontecia com a epidemia, ela fundou, em 9 de maio de 2003, a Agência de Notícias da Aids com o propósito de suprir uma lacuna: “Poucos são os jornalistas especializados na área de saúde e, menos ainda, em aids”, ela diz, destacando que o tema é amplo, complexo e cotidiano. “Não pode ficar de fora do dia a dia da mídia. As pessoas têm que ser seguidamente informadas sobre os avanços do tratamento, mas, principalmente, dos riscos que continuamos a correr no sexo sem preservativo. Para mim, ficou claro que a solução passava por uma agência de notícias exclusiva para os temas relacionados à aids”, completa.
Uma década depois, a iniciativa não só está plenamente consolidada no Brasil, como deu frutos na África, o continente mais assolado pela doença: desde 2009, opera em Moçambique, criada e coordenada por Roseli, a Agência de Notícias de Resposta ao Sida (sigla adotada no francês, espanhol e português correspondente a aids, termo derivado do inglês, e utilizado no Brasil, o que não aconteceu nos demais países de língua portuguesa). A história de luta está agora disponível no livro O Valor da Vida – 10 Anos da Agência Aids, publicação da Editora Senac São Paulo com o apoio da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, que inclui um glossário de termos relativos à doenças sexualmente transmissíveis, aids e afins e uma linha do tempo, que esclarece o leitor sobre a trajetória da doença no Brasil e no mundo.
Apesar de boa contadora de histórias por força do ofício, Roseli Tardelli preferiu delegar à também jornalista Cristina Sant’Anna a tarefa de redigir o texto final, fruto de diálogos entre ambas. “Sempre que eu mergulhava para concretizar o livro, sangrava e doía, muito, de novo. Sozinha eu não teria feito”, diz Roseli na apresentação da obra, um relato que percorre desde as reminiscências familiares e o folclore da família Tardelli até os bastidores da sessão solene da Câmara Municipal de São Paulo, realizada em 2013, em homenagem à pioneira agência de notícias dedicada à aids, lançada dez anos antes no Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
Do mesmo círculo corporativo são os responsáveis pela orelha e pelo prefácio do livro, respectivamente os jornalistas José Nêumanne Pinto e Dora Kramer. “Tira leite de pedra como ninguém essa moça que da prostração diante da morte do irmão, escora-se na sacudidela que recebe da mãe, Idalina, e do nada faz uma agência de notícias para informar o que há, o que deve e o que pode haver sobre aids no mundo, ajudando a combater a raiz de graves problemas: a ignorância”, sentencia Dora, colunista de política do jornal o “Estado de S. Paulo”. “A Agência Aids é fruto dessa tenacidade desprendida, bonita e coerente. Não é um escritório comum de notícias, não é uma instituição de caridade, não é apenas mais uma manifestação do terceiro setor. É, sim, um tentáculo dessa novidade que é o jornalismo sem papel nem tinta, sem câmara nem microfone, sem estúdio nem distribuição em bancas”, completa Nêumanne, editorialista do mesmo jornal.
O caminho percorrido até a conquista da credibilidade, da independência e da autonomia, entretanto, não foi livre de obstáculos. O primeiro apoio financeiro que a Agência Aids recebeu veio da United States Agency for International Development (Usaid), órgão do governo americano encarregado de distribuir a maior parte da ajuda externa de caráter civil prestada por esse país. Mas em 2004, Roseli foi chamada à embaixada dos Estados Unidos em Brasília para ouvir uma reclamação por ter a Agência Aids repercutido entre médicos, ativistas e autoridades da saúde o protecionismo do governo daquele país na questão das patentes de alguns medicamentos contra a doença. “Agradeço o apoio inicial, foi realmente muito valioso e viabilizador do nosso trabalho, mas vamos seguir com a Agência e com nossa autonomia editorial”, ela respondeu ao atônito interlocutor, abdicando do patrocínio para preservar os interesses dos portadores do HIV e a imparcialidade da comunicação.
Outro momento crítico aconteceu em 2005, quando o médico norte-americano Robert Gallo, considerado codescobridor do vírus HIV, criticou em visita ao Brasil a gratuidade do Programa Brasileiro de Assistência aos Portadores do HIV. Quando Roseli lhe perguntou que alternativa ele teria para que as pessoas pobres tivessem acesso ao tratamento, ouviu: “Poor people? Poor people, my ass!” (“Pessoas pobres, meu rabo!”). Divulgada sem eufemismos pela Agência Aids, a expressão chula percorreu o mundo. Quando seu autor tentou negá-la, foi confrontado pela disponibilização do link com o áudio da entrevista no site da agência na internet.
Responsável por múltiplas coberturas de eventos internacionais em diversos países e citada como fonte por Nicholas Kristof, colunista do “New York Times”, a criação de Roseli Tardelli ganhou o reconhecimento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que premiou a Agência Aids na categoria Melhores Práticas da Comunicação.