Postado em 29/07/2014
Ao longo do tempo, o papel do curador de arte se modificou: ele passou a ser não apenas responsável por conservar um acervo artístico, mas também dar sentido à organização das obras em exposições, muitas vezes assumindo um papel muito próximo ao do crítico de arte. O professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) Francisco Alambert e o historiador, crítico de arte e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP João Spinelli analisam o assunto.
Redefinição de papéis
por Francisco Alambert
A crítica de arte floresceu no século 19 no momento em que o capitalismo, em uma fase aguda de transformações do mundo (europeu sobretudo), “desmanchava” no ar tudo que outrora havia sido “sólido” e estável (como disse Karl Marx, em 1848). E nessa remodelação da vida a arte não podia estar alheia. Naquele momento, ela mudava o seu caráter de objeto de culto e passava a ser uma mercadoria em um mundo de mercadorias e de valores mutantes. Por isso, o crítico de arte era um orientador do gosto burguês e do novo mercado.
Mas o século 19 trouxe também o “fantasma” da revolução, da mudança radical de tudo que antes fora estabelecido como verdade. “Moderno” significava a instauração do novo, o desrespeito às regras e à tradição, o desejo de uma revolução em todos os setores da vida. O artista voltado para o passado e para a manutenção dos preceitos era um reacionário em um mundo que pedia ação e transformação contra o culto ao passado e ao estabelecido.
Foi sob esses princípios que o crítico moderno nasceu, a partir das ideias de Charles Baudelaire (que, não por coincidência, era também um dos grandes poetas modernos). Para ele, a arte, e o pensamento sobre ela, tinha que ser “parcial, apaixonado e político”, voltado a abrir “novos horizontes”. O artista e o crítico tinham que evitar o “ecletismo” como uma praga. Literalmente, tinham que escolher um princípio, um ponto de vista pelo qual lutar. Foi a partir desses princípios que se estabeleceram as vanguardas históricas e sua luta contra a tradição. Os críticos seriam os parceiros orientadores dos artistas nessas batalhas apaixonadas e políticas contra as tradições, o “bom gosto”, as “belas artes” ou qualquer outra forma de conformismo.
Crítica de arte passava a significar um exercício radical de engajamento e uma forma de atuar no mundo. Seu lugar privilegiado será o espaço público, as novas galerias e principalmente o jornal e os periódicos, muitas vezes criados pelos próprios críticos e artistas. Nesses meios, tentando influenciar, justificar e explicar a nova arte para o novo público, os críticos irão defender princípios, debater violentamente uns contra os outros, junto aos artistas e, ao mesmo tempo, contra os artistas cujo trabalho negasse os princípios que o crítico elegeu como fundamentais para o mundo moderno.
O que é ser de vanguarda, ou estar na vanguarda, passa a ser uma das questões mais explosivas. Para definir isso, o crítico precisava não apenas ter a capacidade de analisar e “julgar” um trabalho artístico, mas precisava fazer isso a partir de uma análise, de uma posição sobre o mundo moderno. Por isso, os críticos farão manifestos com base em diagnósticos sobre a vida cotidiana, sobre a hora histórica. Por isso, também, em seus melhores momentos, a crítica de arte será uma espécie de sociologia da vida moderna, será aliada das ciências, da filosofia, da política.
A partir dos anos 1960, a crítica passa a ser vista como uma atitude a ser ultrapassada. Em Contra a Interpretação, ensaio contundente e muito influente escrito em 1964, a crítica de fotografia Susan Sontag decretava a morte ou a impertinência não apenas da crítica de arte, mas da própria ideia de “interpretação”. Ali ela defendia que o exercício da crítica tornava a obra de arte “maleável, dócil”. A crítica seria assim um exercício de autoridade que afastava o fruidor dos mistérios da obra de arte em si mesma, impondo um discurso.
Começava a surgir daí a redefinição do papel do velho “curador”: não mais a tradicional figura do “conservador” da obra de arte ou de seu acervo, mas agora aquele que organiza a exposição dessa obra e desse acervo como quem faz um discurso, como quem cria sentido. No mundo moderno, o autor era o produtor. Agora o curador passa a ser autor e produtor. O acontecimento, já mitológico, do momento em que o curador passou a ser visto como autor de exposições e guia de sentidos e significados, foi a exposição When Attitudes Become Form (1969), “curada” por Harald Szeemann.
Ao longo dos anos 1970, os caminhos da arte contemporânea (pelo menos aquele que o mercado de arte definiu dessa forma) em sua “desmaterialização” foram também desmanchando a velha autoridade do crítico no debate sobre os sentidos e significados da arte e na tarefa de ser o guia dos processos de mediação. Essa autoridade, sobretudo por meio do novo mercado de arte, foi passando à figura do curador-autor. Os críticos foram perdendo seu lugar nos jornais, muitos migraram para as universidades. E os curadores foram se tornando cada vez mais os sujeitos exatos para o novo mercado, para as instituições museológicas e, sobretudo, para o circuito das megaexposições, como a Bienal de São Paulo ou a Documenta de Kassel.
No Brasil, essa reordenação na qual o crítico ia sendo substituído pelo curador como figura de autoridade tardou a chegar, até se firmar a partir dos anos 1980. O grande exemplo é a atuação da curadora (e também crítica de arte) Sheila Leirner. Ela instaurou no Brasil a discussão do novo modelo curatorial no qual o curador se sobrepõe ao artista – e não apenas ao crítico. E fez isso por meio da pintura dos anos 80.
Apesar da tendência de autogestão da chamada “Geração 80”, a década de 80 é lembrada pelo progressivo aumento no número de “exposições assinadas”, no Brasil e no mundo. Um caso exemplar foi a 18ª Bienal de São Paulo. Comentando a Bienal de 1983, a curadora Sheila Leirner afirmava uma “poética” da exposição em oposição a uma certa visão “historicista”, “academista” e politizante (como se ambas andassem sempre juntas). Bastante bem afinada com a crítica pós-modernista que se consolidava na época, afirmava que a “complexidade” do mundo e da arte pediam uma compreensão diferente da visão política do velho crítico militante. Tanto essa “poética” quanto essa visão pretensamente “holística” do fenômeno artístico e de sua exibição, na qual a política aparece como um particularismo “indesejável”, será a marca da ideologia da curadoria, tão em voga até hoje.
Numa visão otimista, e hoje claramente discutível, a curadora anunciava que a 18ª Bienal seria a mais “universal” de todas, porque aboliria as “fronteiras no tempo e no espaço”. Declarando “universal” o que na década seguinte ficará conhecido como “global”, ela via sua realização como “parte, afinal, de um processo político social e intelectual que – desde a Primeira Guerra Mundial – vem dissolvendo as tradições locais, regionais e nacionais, que são absorvidas cada vez mais pelos amplos sistemas universais”. Naquele contexto, e nesta visão, a globalização do capital era vista como uma verdadeira revolução. Tudo isso era visto no ângulo do espetáculo, mas um espetáculo compreendido por uma certa visão “pluralista”, “um espaço virtual de vivência, experiência e compreensão didática da arte pelo público”, que podia fugir do “rigor e neutralidade da ‘caixa branca’ como espaço do museu, galeria ou bienal”. A espetacularização, do mesmo modo que a “globalização”, era aclamada como efeito fundamentalmente positivo. Estava decretada e teorizada a era dos curadores e a morte da crítica engajada.
“Ao longo dos anos 1970, os críticos foram perdendo seu lugar nos jornais e os curadores foram se tornando cada vez mais os sujeitos exatos para o novo mercado, as instituições museológicas e o circuito das megaexposições”
Francisco Alambert é conselheiro do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico,
Artístico e Turístico e professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP)
O curador, o artista e o crítico
por João Spinelli
Como profissão, a função do curador de arte – diferentemente do imaginário – é muito antiga: imperadores, reis, grandes comerciantes, clero e a nobreza em geral utilizaram os seus préstimos. Cabia ao curador selecionar, comprar e preservar as coleções de objetos de arte dos palácios e castelos, que com o passar dos séculos se transformaram em inúmeros museus ativos até os dias atuais.
Além de adquirir a produção de artistas locais, muitos curadores viajavam por toda a Europa para visitar e comprar obras de importantes artistas e/ou de negociantes de arte, para serem incorporadas às coleções que eles administravam para os seus respectivos patrões. Em muitos países europeus, essas coleções se transformaram em museus nacionais, como é o caso do Museu Nacional de Praga.
Ao se apresentarem, aparentemente, como profissões opostas, crítica e curadoria muitas vezes se complementam. É função do crítico de arte apontar falhas e indiciar acertos, e a do curador é selecionar e estrategicamente posicionar as melhores obras à procura de uma situação ideal que se aproxime ao máximo do pensamento estético de cada artista.
A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, a função do curador, em especial nos Estados Unidos e Europa, consolida-se e adquire contornos cada vez mais relevantes. Em 1950, segundo o curador Pontus Hultén, “tudo era infinitamente mais fácil. As pinturas não tinham o valor que têm hoje. Você podia levar um Mondrian para o museu de táxi”.
As primeiras mostras de Franz Meyer, diretor do Museu de Arte da Basileia, Suíça – que, como Harald Szeemann, se considerava um organizador e não um curador de arte –, foram elaboradas (diferentemente do que acontece hoje) “com uma pequena equipe (...). Se estivéssemos preparando uma exposição com obras de Paris, íamos de caminhão até lá e trazíamos as pinturas nós mesmos”.
Esse procedimento também foi adotado nas primeiras Bienais Internacionais de São Paulo, que coletavam no Porto de Santos, em caminhões abertos, as obras que chegavam da Europa, Ásia e Estados Unidos, inclusive o grande painel Guernica, de Pablo Picasso – até hoje uma das obras mais representativas do século 20. A obra viajou de caminhão do Porto de Santos até São Paulo para participar, ao lado de outras 50 pinturas desse mesmo artista, da 2ª Bienal Internacional de São Paulo.
Uma das atitudes que caracterizam a figura do curador em oposição à do crítico de arte é a sua capacidade de privilegiar as ideias e não apenas o aspecto formal da obra. Por isso, Johannes Cladders afirmou: “Afinal de contas, com o devido respeito ao trabalho dos artistas, a arte deve seguir em frente! Eu sempre tentei descobrir onde estavam as ideias inovadoras, onde uma ideia nova estava surgindo... No sentido de que arte define a arte”. Ele também declarou “que é o artista que cria a obra, mas é a sociedade que a transforma em obra de arte (...). Nenhum artista cai do céu, todos surgem de alguma tradição”.
No Brasil, até os anos 80, a crítica de arte ocupou um lugar de destaque, não somente entre os museus, galerias de arte e nos principais jornais do país, mas em especial junto aos próprios artistas. Sérgio Milliet, Mário de Andrade, Maria Eugênia Franco, Quirino da Silva e, entre outros, Geraldo Ferraz, não apenas criticavam as exposições, mas atuavam muitas vezes como amigos que ajudavam os artistas menos favorecidos, indicando suas obras para serem adquiridas pelas famílias mais ricas da cidade de São Paulo. Mário de Andrade inclusive sugeriu que uma escultura de Victor Brecheret (na época com dificuldades econômicas), premiada em Paris, fosse adquirida pela família de Yolanda Penteado. Outros tempos... Hoje, os críticos de arte foram perdendo espaço nos principais jornais e revistas do país e progressivamente foram substituídos por jornalistas, que, salvo exceções, transformaram-se em meros replicadores de textos promocionais/releases de exposições.
Assim, a antiga função da verdadeira crítica quase foi extinta. Felizmente, conta na atualidade com a contribuição de pesquisadores de arte egressos dos cursos de pós-graduação, que, além de suas elaboradas pesquisas acadêmicas, fundaram em suas universidades inúmeras revistas que documentam não apenas a produção histórica, consagrada, da arte brasileira, mas em especial uma parcela significativa da produção dos principais artistas contemporâneos.
Um dos mentores da Documenta de Kassel, Jean Leering, destacava que os espaços expositivos deveriam ser usados como meio de construir pontes interdisciplinares, que dissolvessem as fronteiras entre a arte e a vida. Diálogos catalisadores, conexões entre a arte e o público. Para ele, o curador deveria ser um ajudante do artista. Já para Harald Szeemann, “o curador tem que ser flexível. Algumas vezes ele é o criador, outras vezes o assistente, às vezes ele fornece ao artista ideias de como apresentar seu trabalho; na exposição coletiva ele é o coordenador; nas exposições temáticas, o inventor. Mas a coisa mais importante sobre curadoria é fazê-la com entusiasmo, amor e um pouco de obsessão”.
Enfim, artistas, críticos, curadores, diretores de museus e colecionadores deveriam atuar em conjunto interdisciplinarmente. Em 2006, Anne D’Harnoncourt, diretora do Museu de Arte da Filadélfia, definiu o curador como alguém “que cria conexões entre a arte e o público (...). Claro que os artistas fazem isso muito bem e há alguns que, de certo modo, não precisam de um curador ou não querem um curador; que preferem um tipo de interação direta. Mas eu vejo os curadores como possibilitadores, como pessoas que são loucas por arte e querem dividir essa loucura com outras pessoas. Acho, porém, que eles também têm que ter muito cuidado para não impor suas reações, seus próprios preconceitos a outras pessoas (...). Os curadores abrem os olhos das pessoas para o prazer da arte, para a força da arte e para o seu caráter subversivo”.
No Brasil, a aliança entre artistas, curadores, críticos, diretores de museus e colecionadores ainda não foi totalmente cristalizada. Ela é constantemente agravada pela posição de uma parcela de artistas plásticos que, além de não aceitarem a legitimidade da profissão de curador, questionam a eficácia e a qualidade dos projetos curatoriais. No entanto, essa objeção já foi mais intensa e perdura entre os artistas de gerações anteriores. A aceitação mais evidente é dos novos artistas, que não só valorizam o curador, como fazem questão de incluir, com destaque, em seus próprios currículos, a efetiva participação deles.
Por isso, muitos curadores admitem valorizar ao máximo a liberdade do artista, se esforçam para, da melhor maneira possível, se apresentarem com a mente suficientemente aberta e lúcida para aceitar os novos mundos que os artistas revelam em sua dimensão mais radical.
Kasper König ressalta a invisibilidade como elemento fundamental de uma curadoria. Para ele, “de um lado estão tradicionalmente as obras de arte – não os artistas, mas as produções deles; e do outro, o público; e nós (curadores) estamos entre eles. Se fizermos bem o nosso trabalho, desapareceremos atrás deles”.
No entanto, ao constatar a recente marginalização de funções significativas do universo artístico, em 2008, Daniel Birnbaum afirmou que o crítico “foi marginalizado pelo curador, que, por sua vez, foi posto de lado pelo consultor, pelo administrador e – mais importante – pelo colecionador e pelo negociante de arte”. Em seguida, acrescentou: “E as bienais foram eclipsadas pelas feiras de arte”.
“No Brasil, a aliança entre artistas, curadores, críticos, diretores de museus e colecionadores ainda não foi totalmente cristalizada”
João J. Spinelli é professor doutor na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (USP), historiador e crítico de arte